Médico-veterinário formado na Pontifícia Universidade Católica, Sérgio Pflanzer Júnior concluiu o mestrado e o doutorado em Tecnologia de Alimentos na Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp. Atualmente, é professor doutor na Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp e tem atuado nas áreas de higiene e características de processamento de carnes.
Foto: Envato
Scot Consultoria: Pensando em qualidade de carne, podemos considerar a carne bovina brasileira como uma carne de excelência?
Sérgio Pflanzer Júnior: A produção de carne bovina no Brasil vem recebendo muito destaque nas redes sociais e na mídia nos últimos anos. Não podemos falar de qualidade sensorial sem antes destacar que a produção precisa ser sustentável, nos quesitos ambientais, sociais e econômicos. Quanto a isso, temos que continuar melhorando (e melhorar a comunicação), para que nossa carne seja sinônimo de sustentabilidade e não de destruição, como é veiculado de forma errônea, muitas vezes, pela mídia e redes sociais.
Nós temos tudo para fazer isso acontecer, e de forma muito rápida, basta querer. Outro quesito da qualidade é a questão sanitária e nesse ponto precisamos nos orgulhar de ter um sistema de inspeção muito forte e atuante, o que nos permite assegurar a qualidade do alimento, tanto para o mercado interno, como para mais de 160 países.
Já na qualidade sensorial, aquela percebida no momento do consumo, o país vive um momento singular. Nunca se falou tanto em marcas e projetos de carnes especiais, além do aparecimento de churrasqueiros profissionais, especialistas em carnes com milhares de seguidores, boutiques, steak houses e eventos (interrompidos pela pandemia) regados a uma vasta variedade de cortes e preparações que envolvem mais de duas mil pessoas.
Uma carne produzida no Brasil pode ser de excelente qualidade. Ainda não é a regra, mas temos ótimos exemplos de sucesso, com produtos que fazem inveja a qualquer país com tradição nesse mercado.
A tarefa para fazer esse produto sair do campo e chegar à mesa do consumidor não é fácil. Depende de uma longa cadeia produtiva, que começa mesmo antes do animal nascer, podendo ser quebrada até mesmo no momento do preparo, como em um churrasco.
De maneira geral, o termo “qualidade” está atrelado a uma expectativa. No caso da carne, a qualidade sensorial está ligada aos atributos sensoriais desejados, que são a maciez, sabor e suculência, normalmente nessa ordem para a maioria dos consumidores. Entender a demanda do consumidor e entregar um produto que atenda ou supere suas expectativas é o que os produtores, as indústrias, o varejo e o food service precisam conhecer e executar com maestria.
Scot Consultoria: Sérgio, quais os principais fatores pré e pós-abate que influenciam na qualidade da carcaça bovina?
Sérgio Pflanzer Júnior: Pergunta muito interessante e que sempre aparece nas conversas. A ciência está sempre evoluindo e novas descobertas surgem a cada dia. Na ciência da carne não é diferente. Os pesquisadores estão sempre buscando compreender o que faz uma carne ser melhor que outra, e quando se descobre isso, o que podemos fazer para intensificar essa melhoria, seja na maciez, no sabor ou na suculência.
De forma simplificada, só pensando em maciez, que ainda é nosso calcanhar de Aquiles, temos que pensar em três estruturas do músculo, que são: tecido conjuntivo (colágeno principalmente), proteínas miofibrilares (responsáveis pela contração e relaxamento) e no tecido adiposo (gordura).
Para aumentar as chances de se ter uma carne macia, o ideal é ter cortes com pouco colágeno e se possível, que esse colágeno seja mais fácil de ser gelatinizado com o calor. No caso da gelatinização, o abate de animais jovens e castrados ajuda nesse quesito.
Quanto às proteínas miofibrilares, temos que pensar no comprimento do sarcômero, ou seja, quanto a “carne” contraiu após o abate e quanto essas proteínas serão quebradas durante a maturação. Para isso, a escolha de animais pesados e com boa cobertura de gordura, ou um resfriamento mais lento, de preferência com estimulação elétrica de carcaças, podem ajudar a evitar o encurtamento excessivo das fibras musculares.
Quanto à maturação, o que manda é a genética e o tempo. Animais com “maior velocidade” de maturação (genética taurina) e maturação por mais de 15 dias podem ser boas escolhas para melhorar a maciez da carne.
Por último, mas não menos importante, a gordura intramuscular, conhecida popularmente como “mármore” ou “marmoreio”, também ajuda na percepção da maciez. Quanto maior a quantidade de gordura, quando respeitados os pontos anteriormente descritos, maior a chance de a carne ser macia, além de melhorar a percepção da suculência e intensificar o sabor.
Mas vale ressaltar que não existe um fator mais ou menos importante nessa matemática, e que garantir apenas um deles também não garante que a carne será macia. O importante é saber usar esse conhecimento de forma eficiente para ter um bom produto e com preço acessível.
Scot Consultoria: Quais são os processos de maturação existentes e quais são as diferenças nos resultados obtidos?
Sérgio Pflanzer Júnior: Conforme citado anteriormente, a maturação é uma das etapas da cadeia de produção que podem ser utilizadas para melhorar a qualidade sensorial da carne bovina.
Por definição, maturação é o processo natural (nada é adicionado) em que ocorrem transformações físicas e bioquímicas durante a estocagem da carne resfriada. Esse processo se inicia logo após o abate, mas as principais mudanças e melhorias sensoriais só são percebidas após alguns dias de estocagem.
A palavra-chave para esse processo é “protease”. As proteases, que são enzimas, agem quebrando algumas proteínas miofibrilares e com isso a carne vai ficando mais macia.
A maturação acontece nos cortes cárneos ainda presos na carcaça, ou na carne desossada, e independente do tipo de armazenamento. Quando a carne não é embalada a vácuo, ou seja, quando puder acontecer uma desidratação superficial, damos o nome de maturação seca (dry aging). O oposto, quando embalamos a vácuo, chamamos de maturação úmida (wet aging). Nos dois processos existe um ganho semelhante na maciez, se o mesmo tempo de maturação for respeitado. A diferença entre os dois se dá no rendimento do processo, sendo bem menor para maturação seca, e no desenvolvimento e intensificação do sabor da carne, o que acaba justificando sua produção.
Scot Consultoria: Quais as principais modificações apresentadas na carcaça pelo frio e os pontos de atenção para realização de um resfriamento adequado da carcaça e congelamento da carne?
Sérgio Pflanzer Júnior: Os alimentos perecíveis são aqueles que se deterioram rapidamente quando conservados em condições ambientais normais de temperatura e pressão de gases. A carne é um desses alimentos, pois tem uma alta atividade de água e é rica em nutrientes. Assim, o resfriamento passa a ser uma barreira fundamental para sua conservação.
Logo após o abate, a carcaça bovina apresenta uma temperatura próxima a 37ºC, a qual deve ser reduzida o mais rápido possível, quando pensamos na questão sanitária. Por outro lado, quando o resfriamento é muito intenso, principalmente nas primeiras horas após o abate, a carne pode ficar dura devido a um encurtamento excessivo dos sarcômeros. Isso deve, sempre que possível, ser evitado. Para isso, a indústria pode retardar um pouco o resfriamento, apenas nas primeiras horas, ou usar a estimulação elétrica de carcaças, a qual acelera a glicólise. Quando não se tem estimulador elétrico, o dilema aparece: “resfriar rápido ou lento?”.
Após a carcaça plenamente resfriada e liberada para desossa, os cortes são embalados a vácuo, podendo ser maturados ou encaminhados para o congelamento. Diferente do que muitos pensam, o congelamento não prejudica a qualidade da carne, pelo contrário, quando bem executado, pode deixar a carne mais macia.
Existe a premissa que o congelamento deveria ser realizado de forma rápida e eficiente e que o descongelamento deveria ser lento e gradativo. Para carne, isso é verdade quando se fala nas questões microbiológicas. Mas, para os quesitos sensoriais, poucas diferenças são percebidas entre as diferentes formas de congelamento e descongelamento. Dentro de um cenário ideal, o que vale é não haver quebra da cadeia de frio, principalmente para evitar a formação de muitos cristais de gelo, o que levaria a uma perda da qualidade sensorial.
Scot Consultoria: Sérgio, poderia comentar sobre avanços tecnológicos nos processos de maturação da carne bovina nos últimos anos?
Sérgio Pflanzer Júnior: Pouca coisa mudou no que diz respeito à maturação. O processo a vácuo já é bem consolidado cientificamente e praticado por todas as indústrias, mesmo que isso não seja colocado no rótulo e conhecido pelos consumidores, pois toda carne é maturada. Mas tem algo novo acontecendo, que é do ponto de legislação.
Uma consulta pública foi aberta mês passado para que as empresas, ou qualquer pessoa interessada, possam sugerir adaptações de um PIQ (Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade) que está sendo proposto pelo Ministério da Agricultura. Vem coisa boa e atual por aí, pois a única legislação que tratava deste assunto era uma Circular de 1988. Esse PIQ tratará apenas da carne maturada a vácuo, mas parece existir uma movimentação para começar a discussão também sobre a carne maturada a seco. Sobre isso, ainda teremos que aguardar. Entretanto, para quem quiser se atualizar sobre como a carne maturada a seco é produzida no país, nosso grupo de pesquisa publicou esse mês um artigo sobre o perfil da produção e dos produtores de dry aged no Brasil.
Muitas pesquisas estão sendo desenvolvidas mundo afora sobre maturação seca. Os pesquisadores estão tentando entender mais a fundo o que leva um produto ser diferente do outro. Também querem saber quais seriam as melhores condições de processo, seja para rendimento ou qualidade sensorial. Com isso em mãos, o próximo passo será traduzir isso para a indústria e para o varejo, os quais colocarão em prática.
Scot Consultoria: O Brasil pode melhorar ainda mais a qualidade de sua produção de carne? Como?
Sérgio Pflanzer Júnior: Sempre podemos fazer mais quando tratamos de qualidade. Lembrando-se da definição que usei “qualidade vs expectativa”, sempre que atingimos a expectativa do consumidor, ele passa a demandar algo ainda melhor. Assim, a melhoria da qualidade é e sempre será constante.
Nós ainda somos um país em desenvolvimento e com uma grande parcela da população carente de recursos. No passado, mesmo com poucos recursos, mas com preços mais atrativos, as refeições festivas do brasileiro eram regadas a carne, onde o importante era a fartura e não necessariamente a qualidade sensorial. Isso mudou e nos fez pensar: “será que podemos comer menos, mas comer melhor?”.
Em um mundo perfeito, onde todos possam ter acesso à carne, é nisso que eu acredito. Um consumo consciente, no qual a qualidade viria antes da quantidade. E para suprir essa demanda, todos os elos da cadeia precisam estar, literalmente, unidos.
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