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Scot Consultoria

Carnaval Rural


Quarta-feira, 1 de março de 2006 - 19h47


Terça feira de carnaval. Na ressaca da folia, não parece fácil despertar interesse na escrita. Época de certa amnésia coletiva, Momo inibe a pena do idealismo rural. Escrever sobre o que? Eureca! No rebolado da mulata sobressai a pena da avestruz. Sim, bem ali, valorizando traseiros e peitos sensuais, se estampa a marca da agricultura. Em pleno carnaval, quem diria, o adorno saído do campo se destaca na passarela do samba. Vem de longe essa mania das pessoas em se enfeitar com penas de pássaros. Generais romanos e gregos já adornavam seus elmos com plumas de avestruz. Faraós egípcios as utilizavam simbolizando a justiça e a verdade. Na Europa, a rainha Maria Antonieta adorava complementar suas vestimentas com penas vistosas. Por aqui, os indígenas foram pioneiros. Coloridas araras, entre tantos psitacídeos, sempre sofreram tal desventura de perder rabos e asas para a vaidade primitiva. Nas armas de guerra ou caça, o tufo de penas assegura a pontaria de flechas e lanças pontiagudas. Na pajelança, cocares vestem a cabeça para agradar ao sobrenatural. Modernamente, famosos se tornaram nos lares os espanadores de penas. Na faxina doméstica, entretanto, produtos sintéticos substituíram tradicionais apetrechos. Na vaidade humana, ao contrário, o atavismo sobressaiu. As penas da bicharada destacam orelhas e estimulam a luxúria. Faz aparecer. No carnaval tudo se perdoa. O comércio de plumas sempre dependeu da judiação animal e da economia clandestina. Até que chegou a tecnologia. Primeiro, no exterior. Há vinte anos o país passou a importar plumas da África do Sul. Em 1996, se iniciou a criação nacional de avestruzes, conhecida na zootecnia como estrutiocultura. O palavrão advém do nome científico da ave: Strutio camelus. Segundo a ACAB - Associação dos Criadores de Avestruzes do Brasil, a atividade conta atualmente 2.500 criadores e um plantel estimado de 335 mil aves. A avestruz, tanto quanto a ema brasileira, é classificada como uma ratita, quer dizer, ave corredora, que não sabe voar. Uma espécie adulta produz até 1,5 kg de plumas. Segundo a Cooperativa de Criadores de Ratitas do Estado de São Paulo, cada quilo de plumas tingidas é vendido, nessa época de carnaval, por R$ 450. Como se vê, produzir pena virou um ramo dos agronegócios. Moral da história: onde quiser, quem procurar amiude vai encontrar o trabalho do agricultor, entremeado nas frestas da sociedade de consumo. A pergunta é recorrente: por que, sendo assim, presente em tudo, até mesmo nas alegorias do carnaval, continua a agricultura tão desvalorizada, esquecida como forma original de riqueza? Difícil responder. Parte do fenômeno cultural se explica observando-se o próprio carnaval. Durante dias só aparecem luzes, festa, multidão, beleza, luxúria. O modo de vida rural é oposto a tudo isso. É quieto, distante, singelo. Quando o folião vai dormir, o trabalhador rural está acordando. Talvez nem o próprio agricultor se aperceba de sua força e importância para a sociedade moderna. As múltiplas conexões da economia o colocam distante do consumidor final e este, por sua vez, fica longe do labor na terra. Tome outro exemplo: a cerveja. Sem a cevada não existiria a gelada bebida que encharca mentes e embebeda a alma. Na região sul, especialmente no Paraná, 140 mil hectares de terras são cultivados anualmente para produzir o grão que, germinado e fermentado, se transforma na apreciada bebida. Nenhum jovem alegre ou barrigudo beberrão se lembra disso quando sorve seu gole. Mas lá dentro, misturada na espuma da cervejinha gelada, está o suor do agricultor. Na cachaça, que também corre solta nessas farras carnavalescas, mais fácil se percebe a relação entre a bebida e a terra. Todos sabem, embora nem sempre se lembrem, que a matéria-prima da aguardente é a cana-de-açúcar, típica lavoura agrícola. Cada gole da “mardita” esconde um pedacinho do trabalho rural. A Império da Casa Verde, escola de samba campeã em São Paulo, desfila neste ano enaltecendo o Boi-capim. Trata-se de justa homenagem aos 100 anos da introdução da raça Nelore no país, aquele gado branco, com cupim nas costas. Trazido da Índia, tornou-se a base do rebanho nacional. Diz o samba-enredo da Império: “pode aplaudir a saga desse gado brasileiro, hoje um orgulho nacional”. Faz assim justiça com a verdadeira epopéia protagonizada por audaciosos pecuaristas nacionais, que se aventuraram pela Índia atrás da genética do gado zebuíno, trazendo o bife para a mesa do operário urbano. O mundo rural, particularmente a pecuária, se felicita com a homenagem que recebe na passarela paulista. Parabéns à turma do Nelore brasileiro. Todavia, ainda é pouco. Bom mesmo será quando cada mulata enfeitada com pluma de avestruz tiver, ao entrar na avenida, plena consciência sobre a origem de seu adereço. Somente um bom marketing ruralista será capaz dessa proeza. Aos agricultores, portanto, não adianta lamentar seu esquecimento nesse mundo dominado pelo instantâneo. Cabe a eles descobrir a linguagem da comunicação e aprender a divulgar o valor de seu trabalho na terra. Afinal, ninguém valoriza aquilo que desconhece. No próximo carnaval, quem sabe, alguma escola do Rio sai vestida com o vermelho do grão de café maduro. E na Bahia, algum bloco se lembre do produtor de feijão, responsável pelo acarajé, ou de mandioca, que sem ele ninguém comia tapioca. Manda um axé na celebração. E viva o carnaval rural.
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