Não houve um evento isolado que tivesse provocado a sensação de abatimento no produtor mineiro José Luiz Pereira. Mas, naquele dia, 15 de maio de 1999 (ele se lembra bem), o pecuarista disse a esposa Nilce que se precipitava a última gota d’água – gota de leite, na verdade – no negócio que mantinham. Debruçada sobre o trato das vacas há mais de 40 anos na cidade de Astolfo Dutra, a 280 quilômetros de Belo Horizonte, a família se via às voltas com uma dívida que só crescia, num prejuízo mensal de 700 a 1,5 mil reais. Naquele exato dia, desanimado, José Luiz concluiu que era hora de vender a propriedade.
Nilce, entretanto, pensava diferente. E agiu rápido: foi pedir socorro à Embrapa Gado de Leite, que fica em um município vizinho. Dias depois, a ajuda chegou por meio do engenheiro agrônomo Paulo Viana, que visitou a fazenda munido de olhar clínico e um bloco de papel. Ele tomou nota sobre o manejo aplicado, a silagem fornecida aos animais e as condições do curral.
Ao final da inspeção, sugeriu que o cotidiano da propriedade passasse a ser documentado, para controlar coisas simples como o custo de produção de um litro de leite ou o andamento da folha de pagamento. Nilce, com a tarimba de supervisora escolar aposentada, tomou para si a tarefa. “Trato os animais como alunos, sei a história de cada um deles”, diz. A atenção à organização, aliada à assistência técnica, fez a criação evoluir de 400 mil para 800 mil litros diários.
Cinco anos depois, já com as contas em dia e afastada a idéia de vender a fazenda, José Luiz conseguiu colocar em prática um antigo desejo do pai, seu Zely, também pecuarista: envasar o leite. Do pequeno laticínio montado na propriedade agora saem diariamente cerca de 400 saquinhos do leite Vovô Zely, vendidos aos supermercados da cidade a 1,40 real o litro. O restante da produção segue para uma cooperativa, a 90 centavos por litro.
A nova dinâmica de Nilce e José Luiz traduz o momento ímpar pelo qual passa o setor leiteiro. Solapado por sucessivas crises desde o início dos anos 2000, os produtores do país assistem hoje a uma retomada, com recuperação de preços e abertura de oportunidades. O que tem dado fôlego novo aos criadores.
Para Rodrigo Alvim, presidente da Comissão Nacional da Pecuária de Leite da CNA – Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a queda de volume em importantes países produtores e a estagnação em outros (veja Problemas na via láctea) fez com que faltasse leite ao redor do planeta, situação agravada pelo aumento da demanda – no último triênio, o consumo mundial de lácteos cresceu em torno de 4% ao ano. Com isso, os preços não mais obedecem às amarras da União Européia, que subsidia sua produção: no bloco, o custo de uma tonelada de leite em pó é de 4,5 mil dólares, mas as vendas externas eram feitas a dois mil dólares. “Como detinham 35% do mercado, os europeus formavam o preço internacionalmente e todo o mundo era obrigado a obedecer”, afirma Alvim. A elevação do preço de commodities como milho e soja, principais matérias-primas para biocombustíveis naquele continente, está sendo entendida como um motivo adicional para a elevação do valor do leite em âmbito mundial, já que estes produtos agrícolas também servem como alimento para o gado leiteiro.
No Brasil, o período de entressafra (no qual o leite se valoriza) e as exportações estimuladas pela escassez do produto no mundo conspiraram para a alta do mercado. “O que ocorre lá fora não alavanca diretamente nossos preços, porque vendemos pouco ao exterior. Contudo, isso enxuga a oferta interna”, diz Gustavo Beduschi, pesquisador do Cepea – Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada. Também teve influência a reação do consumo nacional, que recentemente saltou de 135 para cerca de 140 litros per capita ao ano, embora esse volume esteja muito aquém do desejável – a recomendação do Ministério da Saúde é que cada pessoa beba ao menos 220 litros por ano.
Entre janeiro e agosto deste ano, houve uma variação média de 53,7% nos preços recebidos pelo pecuarista brasileiro. No pagamento de setembro, a
Scot Consultoria monitorou que 58% dos laticínios previam alta, 36% estabilidade e apenas 6% queda. “Tudo indica que rumamos para a estabilidade, com valores não tão baixos quanto em 2006, quando fechamos com a pior média da história”, afirma
Cristiane Turco, consultora da empresa.
O sentimento preponderante no setor é o de que o preço ao produtor está agora em um patamar justo. E o Brasil, pelo potencial que apresenta para ampliar a oferta de leite a partir da base produtiva já existente, deve aproveitar a brecha aberta pela crise internacional. “Independentemente do porte, quem investir em tecnologias e ferramentas para racionalizar a produção conseguirá despontar”, diz Rodolpho Torres, pesquisador da Embrapa Gado de Leite.
Exemplo de profissionalização no setor é a bacia de Castro, no Paraná, responsável por uma das maiores produtividades do país. Ali, as vacas produzem média de 3.527 litros por ano, índice que se iguala ao das matrizes neozelandesas, uma referência no mundo do leite. Os membros da Castrolanda, cooperativa que há mais de 50 anos atua na região, obtêm um produto com qualidades bem superiores às exigida pela Instrução Normativa 51, que lista os requisitos a serem obedecidos para a produção de leite. Na média, o produto obtido nessa região do Paraná tem contagem bacteriológica de 15 mil ufcs (unidades formadoras de colônias), 300 mil células somáticas por mililitro e 3,5% de gordura, enquanto que o governo exige um máximo de um milhão de células somáticas e de bactérias, e no mínimo 3% de gordura. A cooperativa vende seu excelente produto a grandes indústrias como Batávia, Danone, Vigor e Nestlé.
Além da tradição européia na criação e a condição ambiental favorável, outro traço marcante na região é o forte auxílio tecnológico. Lucas Rabbers, um dos 215 pecuaristas de leite ligados à Castrolanda, consegue cerca de 14 mil litros diariamente, em uma fazenda com sistema de confinamento e totalmente informatizada. Durante a ordenha mecânica, feita três vezes por dia, Rabbers acompanha do computador de seu escritório o desempenho do plantel, de acordo com o número de identificação que cada animal possui. A média diária por vaca é de 40 litros, obtida com o emprego da raça holandesa pura, considerada a mais eficiente entre as leiteiras. Mas também a mais exigente: responde à tecnificação, mas requer muitos cuidados, principalmente comida farta. “Não é barato, mas o resultado compensa”, diz Rabbers. O custo para deixar cada vaca pronta para ser ordenahada aos dois anos é de quase mil dólares, o que inclui da alimentação à prevenção de doenças. Como a raça também é suscetível ao clima quente, é necessária a adaptação das instalações com ventiladores e aspersores de água.
Os altos investimentos do produtor, no entanto, foram literalmente pelo ralo há dois anos, quando a descoberta de focos da febre aftosa no estado fez o preço do leite despencar. “Cheguei a receber 40 centavos de real, enquanto meu custo de produção era de 50 centavos”, lembra o criador, que ainda utiliza parte do lucro atual para amortizar a dívida contraída no período de vacas secas.
Mas, para alguns pecuaristas, nem mesmo quando a cotação do leite ficou abaixo dos 50 centavos houve impedimento à criação. Nivaldo Michetti é um desses obstinados pela competitividade, que gasta pouco mais de 30 centavos para produzir um litro. “Hoje, o laticínio pode me pagar um centavo a mais, mas amanhã pode ser diferente; já o centavo que abaixo no meu custo ninguém tira”, diz.
Esse pensamento começou a lhe rondar a cabeça em 1997, quando teve o primeiro contato com um técnico em pecuária leiteira, sete anos depois de ter iniciado a criação em Santana do Itararé, PR. À época, Michetti fazia ordenha manual em seis vacas, conseguindo 36 litros por dia. “Cortar, picar, misturar e servir o alimento era a rotina de todo o santo dia, pura escravidão”, afirma. Com a assistência, conheceu práticas “abolicionistas”.
A primeira delas foi o pastejo rotacionado: em uma área de nove hectares são distribuídos os piquetes, onde estão espécies como capim-elefante e mombaça, destinadas a alimentar o gado na época das águas, de outubro a março. Antes, Michetti tratava os animais no cocho todos os dias; com o advento das pastagens, o serviço foi reduzido a abrir a porteira para que as vacas entrem e se alimentem no cercado. A comida farta nos pastos é também uma forma de combater o estresse dos períodos de calor, já que, poucos minutos depois de entrar no piquete, os animais vão satisfeitos para a sombra.
Outra técnica implantada com sucesso foi a alimentação do gado à base de cana e uréia. Em quatro hectares de canavial, o criador obtém 800 toneladas – o volume conseguido em um único hectare fornece comida suficiente para 40 animais, durante todos os 180 dias de seca na região. “Para os produtores de menor porte, o uso da cana em lugar da silagem é interessante, porque a plantação é viável mesmo com pouca mão-de-obra e baixa mecanização”, afirma.
Até o comedouro das vacas na propriedade é revolucionário. O chamado cocho-trenó, criado pela Embrapa e implantado de maneira pioneira pelo pecuarista, é um equipamento que faz rodízio nos piquetes durante a seca, para que as vacas comam e deixem o esterco no local onde estiverem, fertilizando a área e descontaminando o meio ambiente. “Meus animais não comem mais confinados, fazendo aquela poluição e deitando-se na sujeira, onde poderiam inclusive pegar doenças”, diz.
Com organização e simplicidade, o pecuarista montou um rebanho baseado em mestiços de jersey com holandês, que traduzem alimentação e manejo adequados em muito leite: 2.400 litros por dia. De fato, segundo o pesquisador Rodolpho Torres, a atenção ao melhoramento genético, importante para elevar os índices de produtividade do gado, não pressupõe que o produtor se especialize em uma raça pura, mas na que melhor se ajuste à sua região e às condições da produção.
Manoel Theodoro Pereira de Carvalho Neto, de Muriaé, MG, por exemplo, não abre mão de animais cruzados, como o girolando, do qual mantém duas mil cabeças. “A raça concilia característica leiteira e resistência, essencial para suportar o intenso calor da zona da mata mineira e se adequar ao perfil montanhoso do terreno”, afirma.
A família de Tininho, como é conhecido o criador, foi uma das primeiras a fazer inseminação artificial no país, em 1956. “À época, o governo fornecia o sêmen, que vinha de trem de Juiz de Fora duas vezes por semana”, lembra. A inovação virou tradição: até hoje, ele recebe a assistência de uma empresa especializada em genética e não descuida do aperfeiçoamento do plantel. A fazenda obtinha inicialmente 200 litros de leite por dia, mas teve um crescimento exponencial após investir no uso maciço da técnica: hoje, alcança seis mil litros. Já foram 11 mil por dia, antes da venda de 300 animais do lote, em um leilão em maio. “Num momento mais apertado como esse, precisava diminuir os gastos e fazer caixa”, diz o produtor.
O aperto a que ele se refere tem estreita ligação com a forte pressão que a seca vem exercendo sobre a região. “Grande parte do valor adicional que o produtor está recebendo não é para capitalização, mas para a compra de mais alimento para o gado”, afirma Francisco Junqueira, zootecnista da Parmalat, empresa que capta quase 500 mil litros de leite ao dia nos arredores de Muriaé. Na fazenda de Tininho, o canavial que mantém não está sendo suficiente para compor o volumoso dos animais; outro tanto precisa ser trazido da cidade de Campos, distante 200 quilômetros da propriedade.
O mercado de leite parece estar mesmo se assentando depois do recente rebuliço, inclusive em relação aos preços ao consumidor. O tipo longa vida, carro-chefe do setor, chegou a subir 65% nos oito primeiro meses do ano. Até agosto, o atacado e o varejo conseguiram repassar a alta do produtor; daí em diante, começou a haver queda no consumo. “A população foi assimilando essa elevação porque viemos de um ano de preços muito baixos. Porém quando o atacado subiu da casa dos dois reais o litro, o freio de mão foi puxado”, afirma
Cristiane Turco, da
Scot Consultoria.
Mas a engrenagem deve continuar a girar a favor do Brasil. As expectativas dão conta de que a produção interna será crescente, enquanto no exterior o volume deve continuar caindo. Hoje, ocupamos a sexta colocação mundial, com a oferta de 26,5 bilhões de litros. Minas Gerais é o principal fornecedor nacional, com quase 30% do total, seguido de Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul. Além desses estados que já se consolidaram, o norte do país ainda tem um potencial a ser desenvolvido.
Rondônia, por exemplo, tem período de seca muito curto, o que facilita a manutenção de boas condições de pastagens. “Se aumentarmos nossa média por lactação por animal (hoje em 1.300 litros ao ano; nos Estados Unidos, são dez mil litros), o Brasil pode se transformar no maior produtor de leite do mundo e ganhar mais espaço no mercado externo”, diz Alvim, da CNA.
A exportação brasileira de leite ainda é pequena. De janeiro a julho deste ano, somou 107 milhões de dólares, enquanto as importações ficaram em 82 milhões de dólares – em 2006, houve um déficit de 16 milhões de dólares na balança comercial do segmento. Os dados soam tímidos, mas revelam uma bela vitória: há seis anos éramos um dos maiores importadores do mundo.
A Castrolanda não vende ao exterior, mas pode tornar isso possível com a indústria de transformação que vem construindo e que propiciará ao produto viajar distâncias maiores, sem perder qualidade. “Retiraremos a água do leite, o que proporcionará economia logística pela diminuição do volume transportado”, afirma Rogério Wolf, coordenador de produção pecuária da cooperativa.
Por ora, com a safra da Nova Zelândia entrando no mercado, haverá aumento da oferta de lácteos no mundo. Mas isso não será suficiente para que as cotações caiam de forma substancial. De acordo com Alvim, o preço do leite em pó não deve ficar abaixo de quatro mil dólares por tonelada. O fundamental é que o patamar de preços dos produtos lácteos mudou: provou-se que não é possível manter situações irreais, sustentadas por subsídios, durante muito tempo. “Há um momento em que a lei de oferta e demanda se sobrepõe, e o mercado vai para onde tiver que ir”, diz.
O recipiente para alimentar vacas usado por Nivaldo Michetti, de Santana do Itararé, PR, tem quatro metros de comprimento e é apoiado sobre duas vigas. Onde o solo está degradado, o cocho-trenó permanece por até dez dias, depois é colocado cinco metros adiante, e assim sucessivamente. Com isso, o esterco enriquece o solo por igual, o que ajuda a reter umidade. “Hoje, os veranicos já não prejudicam tanto as pastagens como antigamente”, diz o criador.
Cada vaca desse país produz em média 3,7 mil litros de leite por ano, recebendo pasto adequado e comida de qualidade. No Brasil, a média anual por cabeça é de 1,3 mil litros. Com melhoria nas pastagens, a pecuária nacional poderia alcançar o patamar neozelandês e pular para 75 bilhões de litros por ano, encostando nos EUA, maior produtor mundial. Além disso, o tipo de pasto usado na Nova Zelândia aceita três vacas por hectare; no Brasil, é possível até dez vacas no mesmo espaço. Então, se forem animais semelhantes, produzindo 15 litros de leite cada por dia (média neozelandesa), em vez de se obter 45 litros por hectare, como ocorre lá, o Brasil conseguiria 150 litros por hectare.
Fonte:
Revista Globo Rural. Edição 264. Outubro de 2007.
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