• Sexta-feira, 31 de outubro de 2025
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Scot Consultoria

Sela e galope ou brete e curral? Não precisa decidir!

O engenheiro agrônomo e professor doutor Roberto Arruda (Esalq/USP) explica como o cavalo de lida é um recurso insubstituível e por que o pecuarista deve encará-lo com a mesma atenção de gestão dedicada a outros ativos de sua fazenda, unindo eficiência e segurança no campo.


Foto: Freepik

Historicamente, o cavalo é o motor de tração da fazenda; hoje, ele é também um ativo de alto valor, um pilar de inovação e uma fonte de diversificação econômica. Para mapear as múltiplas intersecções que transformam o "cavalo de lida" em um instrumento de eficiência e o "cavalo de esporte" em um laboratório de tecnologia, a Scot Consultoria entrevistou o Professor Doutor Roberto Arruda de Souza Lima. Trazendo uma visão estratégica que vai além do manejo, Arruda explica aspectos da pecuária que vão desde a gestão de ativos e bem-estar animal até o impacto da rastreabilidade e a transferência de tecnologia do esporte para o campo. Acompanhe a entrevista e descubra como a coexistência entre “galope” e “curral” é a chave para uma pecuária mais segura, rentável e eficiente.

Scot Consultoria: Quais são as principais intersecções que definem o elo entre a bovinocultura e a equinocultura? Em outras palavras, em quais casos “a sela e o galope" potencializam e complementam o trabalho “no brete e no curral"?

Roberto Arruda: Fazendo um paralelo com a indústria têxtil, a cadeia do algodão é muito relevante, embora ela seja apenas uma parte do setor, junto a fios sintéticos como o nylon, por exemplo. Da mesma forma, a bovinocultura tem inserida nela a equinocultura, que é um insumo utilizado na criação do gado. Nesse sentido, os dois se entrelaçam. O cavalo é muito importante para a pecuária: os animais são necessários para a lida e para um revezamento de montaria. Para poupar o animal, sempre há uma tropa dentro das criações, que não consegue ser totalmente substituída pela mecanização. Assim como na indústria têxtil eu não consigo substituir o algodão pelo tecido sintético, eu não posso substituir o uso do cavalo por motocicletas. É grande a diferença de segurança e custos entre os dois. Por exemplo, um acidente de moto tem consequências muito mais sérias do que um com cavalo, o que geraria dias parados e gastos com indenização. Isso deveria estar na conta do pecuarista e é, muitas vezes, deixado de lado. É necessário ter um olhar mais atencioso sobre o uso do cavalo como insumo produtivo, que é considerado um ativo de trabalho a ser utilizado na produção. Geralmente, o produtor cuida muito bem de um trator, fazendo manutenções preventivas e limpeza, mas o cavalo de lida fica sem nenhum tratamento adicional. Havendo cuidado em relação à tropa, o pecuarista dará uma vida útil maior a esse instrumento de trabalho dos peões, aumentando sua produtividade. Há, portanto, um grande espaço para melhorar a eficiência nas propriedades rurais com uma gestão mais profissional da tropa.

Scot Consultoria: A ampliação da vida útil do animal também depende do foco em bem-estar. Quais os pontos de atenção para o pecuarista em relação a esse tema, quando o assunto é tanto equinocultura quanto bovinocultura?

Roberto Arruda: Os dois grupos de animais caminham juntos: onde vai o boi, o cavalo acompanha, levando junto a ele toda sua cultura, já que boa parte dos pecuaristas tem o cavalo também como hobby, lazer e esporte. As questões de bem-estar do cavalo têm um impacto indireto na atividade pecuária. Em termos diretos, é possível que se imponham dentro das propriedades rurais as mesmas restrições e problemas judiciais que existem hoje em relação às provas de equinos, com proibições contra a condução do gado utilizando cavalos, o que poderia gerar um problema tanto no custo quanto na viabilidade operacional. A preocupação com bem-estar é importante, só não se pode exagerar nesses aspectos: temos de entender o cavalo como um animal e não o humanizar, como algumas pessoas fazem. Esse cuidado deve ser prioritário não apenas sob o ponto de vista ético e moral, mas também sob o econômico, já que um animal saudável e bem tratado entrega mais eficiência e longevidade.

Scot Consultoria: A exportação de carne equina, apesar de ser um nicho, gera preocupações sobre a rastreabilidade e até sobre uma potencial concorrência com a carne bovina. Como o senhor avalia a relação atual entre o mercado da carne de cavalo e o de carne bovina, e qual é o papel da rastreabilidade nesse cenário?

Roberto Arruda: O cavalo que vai para o frigorífico é o cavalo descartado, nunca um cavalo criado para o abate. O que existe hoje em relação à rastreabilidade, com o controle maior de chipagem, são tecnologias dedicadas a cavalos de raça, que não são os que vão para o frigorífico. Então, um dos grandes motivos de as exportações brasileiras de carne terem diminuído foi a maior dificuldade na rastreabilidade. O primeiro ponto é que a carne de cavalo não concorre de maneira alguma com a carne bovina, pois os frigoríficos são voltados a clientes finais diferentes e com tamanhos de mercado muito distintos. O grande produtor não é afetado, mas seria importante ampliar a clareza quanto à comercialização e à fiscalização, como uma saída para os pequenos produtores restritos ao nicho de produção de carne bovina. Os frigoríficos oficiais se preocupam com a sanidade e o bem-estar, mas existe toda uma parte clandestina, que acaba muitas vezes se misturando e contaminando a imagem do setor. Dificilmente o Brasil voltará a ser o grande exportador mundial de carne de cavalo que foi. No entanto, este é um nicho de mercado pequeno, que visa atender públicos muito específicos, dando alternativas de saída para um animal que é utilizado como complemento na criação de bovinos. Há sempre uma tropa conduzindo os bois, então o que é feito para melhorar essa tropa, ou viabilizar outros de seus usos, compõe um subproduto da pecuária tradicional.

Scot Consultoria: O esporte equestre, com sua ênfase em performance e alta genética, é frequentemente visto como uma atividade de lazer de elite. No entanto, o senhor enxerga uma utilidade prática para o dia a dia da fazenda? De que forma o desempenho e os avanços do “cavalo de competição” se revertem em ganhos de eficiência para o “cavalo de lida” e para a pecuária como um todo?

Roberto Arruda: Os animais de lida são maioria, principalmente nas criações de gado, mas ele está presente em outras situações: até na piscicultura vemos casos de cavalos de trabalho sendo usados para puxar uma carroça, por exemplo. A quantidade de animais de esporte e lazer está crescendo, mas os cavalos de lida são quatro vezes mais numerosos. Se considerarmos que as estatísticas oficiais não conseguem estimar com precisão o efetivo equídeo, e que o desporte e o lazer muitas vezes se tornam atividades paralelas do proprietário e dos funcionários, então os números são maiores ainda. Fazendo uma comparação, o cavalo de competição de esportes equestres está para um automóvel da Fórmula 1, assim como um cavalo de lida está para o carro popular. Tudo que é desenvolvido hoje no carro popular – como freio ABS e uma série de componentes de segurança que fazem parte do nosso cotidiano – teve origem nas provas de ponta. O que eu quero dizer com isso é: as práticas no esporte equestre são basicamente simulações de situações que acontecem no dia a dia com o gado bovino dentro da fazenda. Então, ao se alcançar um desempenho melhor no esporte, todos os avanços na tecnologia, em cuidados médicos e no manejo transbordam para a realidade dentro da porteira, como acontece na Fórmula 1 em relação ao carro popular. Então é interessante para a pecuária que essas provas existam, porque elas vão trazer novas visões para o desenvolvimento de toda a indústria de ração e de medicamentos, por exemplo. É um nicho de mercado que vai transbordando para o restante de toda a cadeia.

Scot Consultoria: Observa-se uma desconcentração territorial do efetivo equino, com uma tendência de aumento nas regiões Norte e Centro-Oeste. Essa mudança na distribuição da tropa equina está correlacionada com alguma tendência de mudança na pecuária bovina nessas regiões?

Roberto Arruda: Sim, os dois contextos estão muito atrelados e existe uma forte correlação entre a movimentação do gado bovino e a evolução do efetivo equino. À medida que a fronteira agrícola vai mudando, levando a pecuária para determinadas regiões, o cavalo acompanha. Até porque ele é um instrumento de trabalho para a bovinocultura, principalmente nessas áreas de fronteira. Pensando que o entorno da região amazônica cresceu bastante em relação à bovinocultura, a equideocultura também cresceu nessa região. Nesse sentido, destacam-se também os estados de Rondônia e do Acre, além do Centro-Oeste no geral. O cavalo de esporte acaba fazendo o mesmo trajeto, porque muitos praticantes de esportes equestres são ligados à bovinocultura, então você tem um cenário em que o avanço da pecuária em um estado faz com que as provas de laço cresçam nesse local também. Então, tanto o cavalo de lida quanto o de esporte caminham junto ao boi, um reflexo direto da interação entre galope e curral.

Roberto Arruda de Souza Lima

Engenheiro agrônomo formado pela Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em Economia Aplicada pela mesma instituição. É professor associado da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq/USP) e membro da Câmara Temática de Modernização do Crédito e Instrumentos de Gestão de Risco do Agronegócio (ModerCred) do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA). Foi prefeito do Campus USP “Luiz de Queiroz” e conselheiro do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado de São Paulo (CREA-SP). Coordena o Grupo Equonomia, voltado para o Complexo do Agronegócio do Cavalo.

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