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  • Quarta-feira, 3 de setembro de 2025
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Scot Consultoria

O futuro da pecuária brasileira: tecnologia, produtividade e sustentabilidade

A tecnologia tem sido essencial para a produtividade e sustentabilidade da pecuária brasileira nas últimas décadas, e seu protagonismo deverá aumentar no futuro.


Foto: Bela Magrela

Scot Consultoria: Considerando as mudanças nos hábitos de consumo, o crescimento das preocupações socioambientais e o avanço das proteínas alternativas, qual sua perspectiva para a demanda global por carne bovina na próxima década?

Geraldo Martha: Para os próximos 10-15 anos, o crescimento da população, da renda e da urbanização, em particular nos países em desenvolvimento, deve sustentar o crescimento na demanda por carnes. Mudanças de preferências motivadas pelo envelhecimento da população e por pleitos relacionados a uma alimentação mais saudável e a questões ambientais podem reduzir essa taxa de aumento na demanda por proteína animal. Entretanto, transformações estruturais e em grande escala nos padrões de consumo são processos complexos e levam décadas para serem efetivados.

Para o horizonte 2023–2040, estudos da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) projetam uma queda de 0,2kg per capita no consumo de carne bovina nos países de alta renda. Para os países de renda média-alta, média-baixa, e baixa as projeções são de aumento no consumo per capita de, respectivamente, 0,78, 0,44, e 0,11kg. Esses valores referem-se à carne sem osso, que no caso da carne bovina corresponde a 67,0% da métrica usual de equivalente-carcaça. No agregado do mundo, essas variações no consumo devem representar uma taxa geométrica de crescimento na demanda de carne bovina da ordem de 0,8% ao ano até 2040, equivalente a uma demanda absoluta adicional no período de 10,7 milhões de toneladas de equivalente-carcaça.

Scot Consultoria: Quais são, na sua visão, os principais desafios e oportunidades que devem moldar a produção pecuária brasileira nos próximos dez anos, considerando fatores como mudanças regulatórias, exigências de sustentabilidade, avanços tecnológicos e transformações no mercado consumidor?

Geraldo Martha:  O Brasil, como grande player global na produção de carnes, e com potencial de avançar em produtos mais elaborados e de maior valor adicionado, tem grandes possibilidades para se consolidar em mercados já atendidos e para expandir suas exportações para outros mercados ao longo da próxima década. Como já estamos observando, a geopolítica global deverá ganhar peso crescente na definição dessas relações comerciais.

Pela ótica da produção, a carne brasileira deverá enfrentar exigências crescentes dos compradores, tanto domésticos como de outras regiões do mundo. Não bastará apenas produzir. Será necessário aumentar a produção segundo critérios de sustentabilidade, respeitando as exigências da lei, como o Código Florestal. A perspectiva ambiental deverá ser fortalecida, o que implica em buscar a economia no uso de recursos naturais, como terra e água, a redução das emissões de gases de efeito estufa e a redução do desmatamento. A “Lei Antidesmatamento da União Europeia", que proíbe a entrada de mercadorias na União Europeia provenientes de áreas desmatadas a partir de 30 de dezembro de 2025, é um exemplo recente de fortalecimento dessa perspectiva ambiental no comércio internacional. Pela ótica do produto, as exigências dos consumidores (domésticos e internacionais) focarão em alimentos (carne) com preços competitivos, seguros e com qualidade.

Quanto aos avanços tecnológicos, estes serão cada vez mais protagonistas. Duas vertentes tecnológicas, com foco no “dentro da porteira”, seriam a combinação de conhecimentos e tecnologias que permitam: (1) ampliar a produtividade (com aumento na eficiência de uso de insumos e recursos) e (2) reduzir as despesas com os principais componentes do custo de produção. Serão essenciais os avanços em genética de plantas, animais, microrganismos (para maior produção, tolerância/resiliência à pressão de fatores bióticos e abióticos, qualidade etc.), em práticas agropecuárias e manejo das plantas, pastagens e animais, e também, na conservação do solo e da água (práticas conservacionistas). O desenvolvimento de novos (bio)insumos, cada vez mais eficientes, passa ser estratégico, por exemplo para apoiar a nutrição e a proteção tanto de plantas como de animais.

Olhar atentamente para a transformação digital torna-se cada vez mais importante. Os impactos potenciais da transformação digital são transversais, podendo ser observados desde as ações de planejamento (modelagem e análises avançadas) e de tomada de decisão, passando por contribuições nos avanços em genética, em manejo, até as melhorias dos processos de gestão e de operações na propriedade. Com essas transformações, a expectativa é de elevação nos ganhos de eficiência nas diferentes etapas produtivas. O uso ampliado dessas soluções digitais ainda permitirá aumentar a quantidade de informações sobre origem, segurança e qualidade dos alimentos, bem como sobre modelos de produção agropecuária e seus impactos potenciais na dimensão ambiental e social. Essas ações atendem à demanda de consumidores cada vez mais exigentes. Entretanto, em última análise, o uso dessas soluções digitais será determinado pela sua relação benefício/custo, que é contexto – específica.

Cabe ressaltar que por mais importante que seja a dimensão tecnológica, ela não ocorre em um “vazio político-econômico”. A dimensão não-tecnológica, como a infraestrutura (estradas, armazenagem, portos, infraestrutura digital etc.) e a qualificação do capital humano são essenciais na definição do potencial futuro da agropecuária brasileira. Também será estratégico trazer a dimensão da energia para essa discussão sobre o futuro da agropecuária. Muitos dos ganhos projetados com as novas tecnologias, e com a transformação digital em particular, dependerão de data centers e inteligência artificial, que são consumidores ávidos de energia (e água, para funções de resfriamento). Assim, por uma perspectiva estratégica, o país também precisa estar atento para as fontes de geração de energia e sua localização, e para como se dará a competição de energia entre os setores econômicos. E tudo isso sem desconsiderar a importância de se avançar efetivamente na transição energética nas próximas décadas.

Scot Consultoria: Existe tendência de concentração produtiva e financeira na pecuária, com aumento de grupos mais integrados, como na avicultura e suinocultura? Esse movimento ameaça a sobrevivência de sistemas familiares ou pode abrir espaço para modelos colaborativos e associativos mais eficientes?

Geraldo Martha: O fenômeno da concentração e consolidação setorial vem ocorrendo há décadas. No segmento de sementes e agroquímicos, as cinco maiores empresas respondem por mais de 60,0% do mercado. Para fertilizantes e máquinas agrícolas, as “top 5” respondem por 15,0% a 30,0% do mercado. Tendência semelhante de concentração vem ocorrendo, e de modo rápido, para as tecnologias digitais. Esses movimentos podem promover impactos positivos ou negativos e devem ser acompanhados de perto. Por um lado, esse elevado poder de mercado na agroindústria e nos serviços para a agropecuária pode fomentar e acelerar a inovação. Por outro, essa concentração de mercado pode atuar negativamente sobre o avanço tecnológico, em razão de barreiras ao acesso de tecnologias e conhecimento e do direcionamento do desenvolvimento tecnológico.

No “dentro da porteira”, um trabalho liderado há alguns anos pelo Dr. Eliseu Alves, um dos fundadores da Embrapa, a partir de microdados do Censo Agropecuário (do IBGE), mostrou que há uma forte concentração do produto agropecuário em poucos estabelecimentos – 11,4% do total de estabelecimentos respondia por 87,0% do Valor Bruto da Produção agropecuária brasileira. O ponto a ser destacado aqui é que uma das principais barreiras à adoção mais ampla de tecnologias modernas diz respeito às imperfeições de mercado, sentido amplo (preços relativos e fatores não-tecnológicos, como educação e disponibilidade de infraestrutura). Reduzir essas imperfeições de mercado é uma condição necessária para ampliar o universo de tecnologias disponíveis para o produtor e o retorno ao investimento em tecnologias, favorecendo a diminuição da desigualdade produtiva. Modelos de colaboração e de associativismo, se bem desenhados e de execução eficientes, são estratégias importantes para reduzir as imperfeições de mercado na agropecuária de pequena e média escala.

Uma iniciativa bastante interessante nesse contexto, sob a liderança da Embrapa Agricultura Digital e com o apoio da Fapesp, é o Projeto Semear Digital. Esse trabalho também conta com o apoio da administração pública (em níveis federal, estadual, municipal), empresas privadas e associação de produtores. O projeto considera grandes eixos de atuação, como conectividade, inteligência artificial, agricultura de precisão, e impactos socioeconômicos, em dez Distritos Agrotecnolo?gicos em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará. O principal objetivo dessas ações de pesquisa de desenvolvimento, com foco na inovação, é na ampliação da capacidade produtiva, competitividade e sustentabilidade da agropecuária desenvolvida em pequena e média escala.

Scot Consultoria: Com o avanço das exigências internacionais sobre desmatamento, rastreabilidade e emissão de carbono, como a pecuária brasileira pode se posicionar estrategicamente para atender essas demandas sem perder competitividade? Ainda sobre o tema, quais dados você pode nos trazer para desmistificar essa visão de que a pecuária é a vilã?

Geraldo Martha: Pressões econômicas, políticas e incentivos são, frequentemente, os fatores determinantes por trás do processo de tomada de decisão dos produtores rurais. Cumprir a legislação é uma demanda que vem tanto da esfera internacional como da doméstica. A dimensão técnico-econômica terá protagonismo crescente na ampliação da produção e será chave para a redução de impactos ambientais negativos e para a promoção de avanços sociais. Entretanto, a adoção de conhecimentos e tecnologias passa pelas perspectivas quanto aos custos de oportunidade e aos riscos envolvidos na tomada de decisão, que são únicas para uma dada combinação produtor-propriedade. Isso ocorre porque a quantidade e a qualidade dos recursos (terra, trabalho, capital físico e humano) e de insumos disponíveis, sujeitos aos preços relativos pertinentes, variam caso a caso.

A segunda parte da sua pergunta traz uma reflexão interessante, e necessária, sobre as visões distorcidas da atividade pecuária no Brasil e a realidade dos fatos. Críticas vêm sendo feitas à pecuária no sentido de que ela precisa trilhar o caminho da sustentabilidade. Claro, sempre há espaço para se avançar nas múltiplas dimensões da sustentabilidade e a pecuária precisa buscar esse caminho. Entretanto, em que pesem problemas ambientais e sociais localizados, a análise de dados e estatísticas oficiais permite concluir que a pecuária brasileira já vem buscando esse caminho da sustentabilidade há décadas, e que esse esforço do setor tem produzido benefícios socioeconômicos e ambientais significativos para a sociedade.

O modelo de produção pecuária no Brasil mudou sensivelmente ao longo das últimas décadas e passou a priorizar tecnologias mais intensivas em capital, que geraram significativos ganhos de produtividade. A partir de dados dos Censos Agropecuários e de outras estatísticas oficiais, é possível calcular que os ganhos de produtividade explicaram cerca de 79,0% do crescimento da produção pecuária no país entre 1950-2017. A expansão da área de pastagens respondeu por menos de 21,0% desse avanço da produção pecuária no período. Sem esses ganhos de produtividade, uma área adicional de aproximadamente 600 milhões de hectares seria necessária para obter a mesma produção de carne bovina registrada em 2017. Para as lavouras, nesse mesmo período, os ganhos de produtividade produziram um efeito poupa-terra da ordem de 220 milhões de hectares. Esse gigantesco efeito poupa-terra da agropecuária brasileira nas últimas décadas – da ordem de 820 milhões de hectares, equivalente a quase um Brasil –, reflete o efetivo comprometimento do setor privado, e o apoio de políticas, entre outras a pesquisa agropecuária, o crédito, o Programa ABC+ (com foco na intensificação sustentável) e o Código Florestal. Essas ações público-privadas explicam o porquê de 65,0% do imenso território brasileiro (dados de 2024, MapBiomas) estar coberto com vegetação nativa. Um caso certamente de sucesso entre as potências agropecuárias mundo afora.

Scot Consultoria: Na sua opinião, qual será o perfil do pecuarista do futuro? Que tipo de capacitação, visão de negócio e integração tecnológica ele deverá desenvolver para continuar competitivo em um ambiente cada vez mais complexo e exigente?

Geraldo Martha: O pecuarista do futuro será cada vez mais exigido quanto à sua capacidade de tomada de decisão. Essa necessidade de capital humano cada vez mais qualificado na agropecuária também ocorre pela necessidade de se sair da “receita de bolo” e fazer as adaptações necessárias no sistema de produção. A importância do capital humano qualificado deverá ganhar relevância no futuro, dado o contexto mais incerto que se espera para as próximas décadas com a perspectiva de cenários de mudanças climáticas mais desafiadores. Quanto mais deficiente o planejamento, mais tardia a tomada de decisão e menos eficiente a execução, as opções disponíveis restantes começarão a ficar mais complexas, potencialmente com benefícios reduzidos no caso de sucesso e com riscos mais acentuados no caso de falhas.

Será necessário ampliar o grau de instrução e capacitação continuada em níveis básico, intermediário e avançado. Para produtores com menor grau de instrução, em que pesem as deficiências de crédito para a produção, e de assistência técnica, é importante notar que a aplicação de conhecimentos e tecnologias, cada vez mais necessários para a agropecuária do futuro, tem pouca chance de ter sucesso sem o desenvolvimento de habilidades mínimas em leitura e matemática. Entretanto, progressos efetivos na formação e no fortalecimento do capital humano não são triviais, demandam tempo e esforços continuados para serem observados na prática. Esses produtores possivelmente precisarão de apoio para tomar decisões mais complexas e intensivas em análise de dados, sinalizando a necessidade de maior engajamento da assistência técnica e de modelos colaborativos e associativos de produtores. Para o grupo de produtores mais avançados, soma-se ao fortalecimento do conhecimento técnico específico das ciências agrárias e veterinárias, paulatinamente mais sofisticado, o treinamento em ciência de dados e em ferramentas digitais.

Como a agropecuária brasileira é exposta aos sinais de mercado (baixo nível de incentivos), independentemente do produtor e do contexto em que está inserido, torna-se cada vez mais importante ter treinamento adequado para avaliar o desempenho econômico da atividade e seus riscos, bem como ampliar as capacidades em gestão (sentido amplo). Essas etapas são essenciais no processo decisório.

Scot Consultoria: O Encontro de Intensificação de Pastagens está se aproximando. O que o público pode esperar da sua palestra durante o evento?

Geraldo Martha: Nossa conversa já adiantou muitos dos elementos que eu gostaria de apresentar com um pouco mais detalhe na palestra do Encontro de Intensificação de Pastagens. A ideia será focalizar nesses tópicos e trazer mais números, agregar elementos adicionais para ampliar a base para discussão. Se houver tempo, eu acho que seria interessante trazer algumas reflexões sobre outros dois tópicos que não discutimos muito por aqui, porém, acredito que são fundamentais para se pensar algumas estratégias para a nossa agropecuária nos próximos 10-15 anos: a desaceleração nas taxas de ganhos de produtividade na última década; e alguns dos potenciais impactos dos choques resultantes dessa nova geopolítica mundial.

Geraldo Martha

Engenheiro agrônomo formado pela ESALQ/USP e doutor pela mesma instituição. É pesquisador da Embrapa desde 2001, atualmente lotado na Embrapa Agricultura Digital, em Campinas. Seus trabalhos de pesquisa focam na análise bioeconômica e de risco na agropecuária, na dinâmica de uso da terra e no desenvolvimento regional.

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