• Terça-feira, 11 de novembro de 2025
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Responsabilidade ambiental: o que vem com a propriedade rural

Ao comprar uma fazenda, o produtor assume não apenas a terra, mas também obrigações ambientais deixadas por antigos proprietários.


Quando um produtor compra uma fazenda, espera assumir a posse, o uso da terra, os direitos sobre a produção e, é claro, os deveres formais como tributos e registro. 

O que muitos ainda desconhecem é que, no pacote invisível dessa aquisição, podem vir também obrigações ambientais legais, mesmo que o novo dono nunca tenha cometido qualquer infração. 

Trata-se do que o direito chama de obrigações propter rem (significa ‘por causa da coisa’), um tipo de obrigação acompanha o imóvel rural e não quem causou o dano.

Para o produtor, isso significa que se a terra já estava degradada, com desmate antigo, nascente mal preservada ou reserva legal desmatada, a conta da recuperação pode vir para ele.

As chamadas obrigações propter rem são obrigações legais que acompanham a titularidade de um bem, geralmente de natureza real (como a propriedade de um imóvel), e não decorrem necessariamente de um ato ilícito. 

Elas são vinculadas a alguma coisa, e não à pessoa, ou seja, quem detém o bem assume automaticamente essas obrigações, independentemente de ter causado qualquer dano.

A obrigação propter rem não tem uma origem jurídica única e específica, mas decorre da relação entre o direito real (a propriedade ou posse de um bem) e o dever de uma pessoa perante a coisa, o que a torna acessória a um bem.

A obrigação surge da lei, não da conduta do atual proprietário.

O Código Florestal faz várias destas previsões ao tratar de maneira geral¹, especificamente em áreas de preservação permanente² e em áreas de reserva legal³.

Essas regras claras que se trata de obrigações legais de fazer alguma coisa, não dependente de culpa, que acompanham a posse ou domínio do imóvel, mesmo que o atual proprietário não tenha causado qualquer dano ambiental.

Ocorre que, ao confundir essas obrigações com responsabilidade civil indenizatória é um erro comum por parte do Ministério Público, do Ibama ou dos órgãos ambientais, que gera consequências práticas graves.

A obrigação propter rem é regulatória e administrativa, não indenizatória, ou seja, uma obrigação de fazer, como recompor vegetação nativa ou preservar uma área, e não pressupõe nexo causal com dano ambiental.

Sendo assim, se um produtor rural compra um imóvel com reserva legal degradada por antigo proprietário, ele não responde civilmente pelo dano passado (indenização ambiental), mas tem o dever legal de recompor a vegetação, independentemente de ter contribuído para o dano.

No entanto, se o mesmo produtor não cumpre essa obrigação legal e continua a negligenciar a área degradada, poderá, aí sim, ser responsabilizado civilmente, pois passa a contribuir, por omissão, para a continuidade do dano ambiental.

As “indenizações ambientais” (não são multas ambientais), não são equiparadas a recuperação da área danificada, mas são verbas indenizatórias e, neste caso, significa que é necessário provar que houve culpa (negligência, imprudência ou imperícia) por parte do agente causador do dano, com a presença de: 1) Conduta — uma ação ou omissão (por exemplo, supressão irregular de vegetação nativa); 2) Dano — lesão efetiva ao meio ambiente (como assoreamento de um rio ou destruição de área de preservação); e 3) Nexo de causalidade — uma relação direta entre a conduta e o dano (o que distingue o autor do dano de terceiros não envolvidos).

O erro surge quando se tenta transformar essa obrigação legal (propter rem) em responsabilidade civil automática, já que se exige os requisitos já comentados (conduta, dano e nexo de causalidade), e a obrigação propter rem dispensa esses requisitos, pois está ligada à coisa, não à conduta.

Apesar da intenção de garantir efetividade na reparação ambiental, a tese deixa em aberto o risco de converter obrigações reais em formas de imputação automática de responsabilidade, criando uma zona cinzenta entre a reparação ambiental e a responsabilização civil sem culpa ou nexo causal.

Essa leitura amplia o risco jurídico nas transações imobiliárias e viola o princípio da segurança jurídica, especialmente no agronegócio.

Apesar da responsabilidade civil poder coexistir com a obrigação propter rem, confundi-las implica punir alguém sem qualquer vínculo com a causa do dano, comprometendo o equilíbrio do sistema de justiça ambiental.

O Tema Repetitivo 1204 julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)⁴ é um marco recente e importante para o Direito Ambiental, por tratar da possibilidade de cobrança de obrigações ambientais do atual e dos anteriores proprietários de um imóvel, independentemente de quem causou o dano.

Em outras palavras, o STJ confirmou que obrigações ambientais propter rem (como recomposição de APP ou reserva legal) podem ser cobradas de quem detém ou detinha a posse ou propriedade, salvo se ficar provado que o antigo dono não teve nenhuma relação com o dano, onde há um risco grave: a confusão de obrigações legais com responsabilidade civil.

E assim, há o risco de tratar toda obrigação ambiental como se fosse automaticamente uma responsabilidade por dano; ignorar a necessidade de prova de conduta, nexo e dano, exigida pela responsabilidade civil ambiental; e ampliar de forma indevida a responsabilização de ex-proprietários, inclusive quando não houve culpa ou vínculo direto com o dano.

Também se confunde a essência de ambos os conceitos, no sentido de que a obrigação propter rem se prende à titularidade da coisa; enquanto a responsabilidade civil se prende ao comportamento do agente causador do dano ambiental.

Com isso, se exigem indenizações financeiras de terceiros, sem conduta danosa nem nexo causal com o prejuízo, algo que só caberia ao verdadeiro infrator, sob pena de se responsabilizar o inocente.

Isso pode comprometer a segurança das transações imobiliárias e gerar temor entre compradores de imóveis, que passam a temer responder integralmente por passivos ocultos, mesmo que nunca tenham degradado o ambiente, uma perigosa ficção jurídica.

Na prática, ocorre dupla penalização do atual proprietário, que cumpre a obrigação de fazer e ainda pode ser forçado a indenizar sem culpa; gera risco de transferência de passivos ambientais indefinidos; e cria insegurança jurídica para compradores de boa-fé, inclusive quando não se beneficiaram da degradação anterior.

Mas o que permanece e o que se transfere com a propriedade?

No contexto da compra e venda de imóveis rurais ou urbanos, atualmente há insegurança jurídica a respeito do que o novo adquirente de um imóvel herda em termos de obrigações ambientais e o que permanece vinculado ao causador original do dano.

As obrigações propter rem são transmitidas automaticamente ao novo proprietário ou possuidor, mesmo que este não tenha causado a degradação. Isso significa que, ao adquirir o imóvel, a pessoa assume a responsabilidade de realizar ações de regularização, como recomposição florestal; regeneração natural; ou compensação.

Um exemplo recorrente é a aquisição de imóveis com projetos de recomposição ambiental em curso, como os Projetos de Recomposição de Áreas Degradadas e Alteradas (PRADA), que geralmente são exigidos em razão de infrações ambientais anteriores, como desmatamento em Área de Preservação Permanente (APP) ou Reserva Legal.

Caso o imóvel esteja vinculado a um PRADA já homologado junto ao órgão ambiental, o novo proprietário assume integralmente a obrigação de continuar sua execução.

Isso inclui a manutenção de plantios, o cumprimento de cronogramas e o acompanhamento por técnico responsável, devidamente habilitado.

Além dos projetos de recomposição, é fundamental examinar a situação da Reserva Legal do imóvel, especialmente nos casos em que esta tenha sido objeto de compensação por meio de cotas de reserva legal.

O Código Florestal prevê que essas cotas, quando emitidas, vinculam a área ao título e impõem ao proprietário a responsabilidade pela conservação da vegetação nativa que deu origem à cota.

O problema surge quando o imóvel vendido possui cota negociada pelo proprietário anterior sem que a área compensada tenha sido devidamente averbada ou homologada.

Nesse caso, o novo proprietário pode se deparar com uma área desprovida de Reserva Legal suficiente e ser compelido a recompor, compensar novamente ou até responder por descumprimentos ambientais anteriores.

A cautela deve ser redobrada em situações em que existem apenas contratos particulares de compensação de Reserva Legal ou promessa de transferência sem respaldo no Cadastro Ambiental Rural (CAR) ou averbação em matrícula.

Embora esses instrumentos possam ter valor entre as partes (proprietário anterior e compradores de cotas), eles não isentam o imóvel de suas obrigações legais enquanto não houver regularização formal junto aos órgãos ambientais competentes, pelo novo proprietário em relação aos compradores de cotas.

Há ainda casos em que o imóvel transmite passivos relacionados a compromissos firmados em Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), exigindo do comprador a verificação de eventuais responsabilidades assumidas e ainda em vigor.

Diante dessas possibilidades, é recomendável consultas junto aos órgãos ambientais e de fiscalização, consultas ao CAR do imóvel, cláusulas específicas no contrato de compra e venda que resguardem o direito de regresso em caso de passivo ambiental não declarado, dentre outras situações. Em resumo:

Aspecto Responsabilidade Civil Ambiental Solidariedade Passiva Obrigação Propter Rem
Depende de culpa? (intenção ou negligência, imprudência ou imperícia) Não, é objetiva Não, mas pressupõe relação com a conduta Não, decorre da coisa (propriedade/posse)
Requisitos Conduta + dano + nexo causal Presença de vários coautores do mesmo dano Propriedade/posse de imóvel com obrigação legal
Transfere com a coisa? Não (salvo culpa ou participação anterior) Não necessariamente, depende da relação com o dano Sim, sempre
Exemplo prático Desmate irregular Proprietário + arrendatário que desmataram juntos Novo dono que herda obrigação de recompor
Consequência típica Obrigação de indenizar e/ou reparar Obrigação de indenizar e/ou reparar e obrigação de fazer Obrigação de fazer (projeto de recuperação de área)
Direito de regresso Aplica-se contra outros causadores Sim, entre coobrigados Sim, quando o dever deriva de culpa de terceiro

Fonte: Pedro Puttini

Em tempos de rastreabilidade, certificações ambientais e exigências cada vez mais rígidas para acesso a crédito rural, mercados internacionais e licenciamento, ignorar obrigações pode sair caro.

O risco não está só na autuação. Está no embargo, na negativa de financiamento, na restrição para participar de programas públicos e na desvalorização da terra. Para quem vive da produção e precisa planejar a longo prazo, segurança jurídica e regularidade ambiental são patrimônio.

Por isso, mais do que nunca, o produtor rural precisa compreender que terra vem com história e essa história pode incluir pendências ambientais invisíveis, mas legalmente exigíveis.

Saber identificar, se proteger e agir preventivamente é o caminho para garantir que a aquisição da propriedade continue sendo um passo seguro, e não o início de uma dor de cabeça jurídica.

¹Art. 2º, §2º: As obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural. [...]

²Art. 7º A vegetação situada em Área de Preservação Permanente deverá ser mantida pelo proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado.

§ 1º Tendo ocorrido supressão de vegetação situada em Área de Preservação Permanente, o proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título é obrigado a promover a recomposição da vegetação, ressalvados os usos autorizados previstos nesta Lei.

§ 2º A obrigação prevista no § 1º tem natureza real e é transmitida ao sucessor no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural. [...]

³Art. 66. O proprietário ou possuidor de imóvel rural que detinha, em 22 de julho de 2008, área de Reserva Legal em extensão inferior ao estabelecido no art. 12, poderá regularizar sua situação, independentemente da adesão ao PRA, adotando as seguintes alternativas, isolada ou conjuntamente:

I - recompor a Reserva Legal;

II - permitir a regeneração natural da vegetação na área de Reserva Legal;

III - compensar a Reserva Legal.

§ 1º A obrigação prevista no caput tem natureza real e é transmitida ao sucessor no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural.

⁴Tema 1204: As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente.

Pedro Puttini Mendes

Advogado (OAB/MS 16.518, OAB/SC 57.644), Consultor e Professor em Direito Agrário e Ambiental. Doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2025), Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008), ambos pela Universidade Católica Dom Bosco. É comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. É membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e membro das comissões ativo de comissões de Direito Ambiental e Direito Agrário da OAB desde 2013, tendo exercido a função de Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS (2013/2015).

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