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Scot Consultoria

Ensinando e aprendendo


por Otaliz

Segunda-feira, 28 de dezembro de 2009 - 10h18

É médico veterinário e instrutor do Senar – RS.


Santa Luzia é o nome de uma comunidade rural localizada no município de Paim Filho,na região Norte do Rio Grande do Sul. O nome já nos faz pressupor a origem étnica das pessoas que vivem nessa comunidade – italianos, é claro. As conversas em voz alta, acompanhadas de gestos largos, as gostosas gargalhadas e a simpatia com que recebem os visitantes são características marcantes do comportamento dos colonos italianos, ou dos “gringos”, como são conhecidos por aqui. Tudo isso eu constatei quando fui ministrar, em Santa Luzia, um curso sobre pecuária leiteira. Já no início do treinamento chamou a minha atenção um senhor idoso, calvo, de estatura mediana, calças remangadas, deixando à mostra as canelas finas. Alegre, comunicativo, dirigia-se aos demais participantes e a mim falando com voz alta e fina, contando histórias e relatando experiências, algumas engraçadas, que eram recebidas com simpatia e respeito pelos demais participantes que o chamavam de “nono”, que em português significa “vovô”. Nutrição do rebanho leiteiro era o tema do curso. No momento em que eu abordava a questão da mineralização do rebanho surgiu a pergunta referente a uma doença conhecida no meio rural como “caruncho da cola”. Em bovinos nessas condições, ao pressionarmos as vértebras da cauda, observamos que as mesmas estão amolecidas. Daí a ingênua interpretação de pessoas leigas que passaram a fazer uma correlação com o que ocorre em madeiras atacadas pelo caruncho. Disse que se tratava de uma interpretação errada, sem nenhuma fundamentação técnica, ou seja, o tal caruncho da cola não existe. Fui além, criticando de forma jocosa alguns métodos curiosos de tratamento utilizados pelos leigos no sentido de combater o caruncho. No segundo dia do treinamento, o “nono” não apareceu. No final da tarde, eu estava no bar e restaurante da comunidade quando percebi a chegada de um casal. Ela, a senhora, era participante do curso. Ao me ver, fez questão de apresentar o seu esposo. Ela disse que o “nono” era seu avô. Perguntei-lhe então se ela conhecia o motivo pelo qual o “nono” não tinha comparecido no curso aquele dia. Sem esconder o constrangimento, ela falou: Pois olhe, professor, eu acho que o “nono” ficou magoado com o senhor. Mas por quê? Perguntei surpreso. Acontece que ele sempre acreditou na existência do caruncho da cola e se sente orgulhoso de, com frequência, ser chamado por vizinhos para tratar de animais doentes. Fiquei indignado comigo mesmo! Como pode um instrutor ser tão insensível a ponto de ferir a auto-estima de um participante de treinamento? Sobre mim caiu um pesado sentimento de culpa. Na manhã seguinte, ainda com a consciência pesada, cheguei ao local do treinamento para ministrar as últimas aulas do curso e notei a presença do “nono”. Mas agora ele estava contido, quieto e arredio. Nem de longe lembrava o velho ativo e simpático do primeiro dia. Eu sentia que precisava corrigir o meu erro. No decorrer dos debates, aproveitei o “gancho” de uma pergunta e falei que muito dos conhecimentos consolidados pela pesquisa científica tem sua origem nas observações, conhecimentos e experiências das pessoas que vivem no campo. Notei que aos poucos o “nono” foi recuperando a sua postura normal. Encerrado o curso, durante as despedidas de praxe, observei que o “nono” estava retardando a sua saída. Convidado pela neta para ir embora, respondeu num dialeto italiano algo que eu interpretei como “vai indo que eu já vou”! Ficamos a sós na sala. “Nono” levantou-se da cadeira e me olhando diretamente perguntou: O senhor é “dotor vitirinário”? Sim...Respondi. Então “qué dizê” que o senhor entende muito de bicho? Mais ou menos.. .e depende da espécie de animal Mas o senhor também entende muito de gente. Posso lhe dar um abraço? E me abraçou apertado, um abraço amigo. Dizendo gratie mile...gratie mile, dirigiu-se em direção ao carro onde sua neta o esperava. Não olhou para trás. Foi bom, pois se o fizesse teria visto que eu estava paralisado no meio da sala, com os olhos úmidos. Emocionado. Redimido.
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