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Scot Consultoria

Zoneamento da cana e credibilidade


Segunda-feira, 6 de julho de 2009 - 15h05

Engenheiro agrônomo formado pela ESALQ-USP, com doutorado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Desde julho de 2003 é Diretor Geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE).


por André M. Nassar Alguns eventos ocorridos recentemente, embora não necessariamente relacionados entre si, conduzem-me à mesma conclusão sobre as implicações de algumas ações postas em marcha pelo governo brasileiro. Vou descrever esses eventos antes de discutir as questões que, a meu ver, precisam ser aprimoradas e mais bem trabalhadas pelo governo federal, sob pena pôr em descrédito políticas que são de vital importância para o País. O tema a que me refiro é o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar. O assunto voltou a ser discutido no início de junho por conta de um grande evento sobre etanol que foi realizado na cidade de São Paulo. O que me chamou a atenção foi o fato de a ministra Dilma Rousseff ter feito menção ao zoneamento da cana-de-açúcar como mecanismo para garantir a sustentabilidade ambiental do etanol brasileiro. A realidade é que, conceitualmente, concordo com o argumento usado pela ministra, o que não poderia ser diferente. De que estou reclamando, então? Do fato de que o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar, tão falado pelo governo há mais de um ano, ainda não foi publicado e, por tabela, tampouco convertido em ações concretas. No afã de mostrar que está fazendo a sua parte para garantir a sustentabilidade do etanol, o governo prometeu fazer o zoneamento da cana a fim de apontar as áreas que poderão ser plantadas no País, mas, na prática, a falta de clareza quanto ao famigerado zoneamento tem sérias implicações. É a história do lobo e das ovelhas. Depois de ser chamada três vezes por um dos seus filhos que fingia ver o lobo rondando o curral, na quarta, com a real presença do lobo, a mãe ovelha decidiu não atender ao chamado de seus filhotes. Os filhotes caíram em descrédito e pagaram um alto preço por isso. O segundo fato que me chamou a atenção, e que foi noticiado pela imprensa, foi a alegação do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, de que ele estava "recebendo pressão" de grupos interessados em plantar cana-de-açúcar em áreas limítrofes do Pantanal sul-mato-grossense. Se há um zoneamento agroecológico para essa lavoura - e parece razoável imaginar que ele defina o Pantanal e suas áreas limítrofes como não apropriados para a cana-de-açúcar -, por que sentir-se pressionado? A única razão que consigo encontrar é que não há zoneamento algum, ou, se há, o compromisso de implementá-lo não é consistente. O terceiro evento tem que ver com a visita de um grupo de funcionários da Comissão Européia que andou por aqui há dois meses. O objetivo da visita era justamente discutir os aspectos de sustentabilidade dos biocombustíveis brasileiros. Acertadamente, o governo procurou demonstrar aos representantes da Comissão Européia as políticas que o governo está desenvolvendo e implementando para garantir que o etanol de cana-de-açúcar brasileiro é, de fato, sustentável. No caso das questões ambientais, a política que foi apresentada com maior ênfase diz respeito ao zoneamento agroecológico. Os europeus ouviram a apresentação com bastante interesse, mas não se contentaram com ela. Eles revelaram duas preocupações: que a política estava sendo desenhada sem uma meta clara de quando e em quanto tempo seria posta em prática; e que não havia uma definição para a estratégia de implementação de tal política. Ou seja, a preocupação da Comissão Européia - que está bastante acostumada a definir, negociar e implementar políticas dentro do bloco europeu - era que o zoneamento não teria credibilidade se não fosse implementado num período de tempo aceitável. Uma vez que o governo não parece ter a estratégia de implementação definida, e os exemplos que citei anteriormente reforçam esse argumento, a minha preocupação é que a idéia do zoneamento seja desperdiçada, como já aconteceu anteriormente, a exemplo da rastreabilidade bovina. Um zoneamento agroecológico para a cana-de-açúcar é importante por diversas razões. Uma delas é garantir algo que, para nós brasileiros, parece óbvio, mas para os estrangeiros não é. Dado que a expansão da cana-de-açúcar para a produção de etanol ocorre ao mesmo tempo em que são verificados novos desmatamentos, sobretudo na Amazônia brasileira, existe uma tendência irresistível para os estrangeiros de associar uma coisa à outra. O argumento não seria de todo absurdo, pelo menos quando se usa um referencial econômico para abordar esse problema. É, no entanto, essencial contextualizar o problema num plano mais amplo. E aí é evidente que o avanço da produção agropecuária na fronteira é apenas uma das razões que explicam o desmatamento, bem como a falta de regularização fundiária, de políticas sociais e econômicas inclusivas que tragam opções para os mais de 20 milhões de moradores da região. Isso significa que existe uma elevada possibilidade de o desmatamento continuar a ocorrer, mesmo diante de um cenário de não-expansão do setor agropecuário. Assim, uma política de zoneamento que defina - obviamente, de forma negociada com o setor produtivo - que na Amazônia e no Pantanal não se pode produzir cana seria uma forma relevante de gerar a confiança dos estrangeiros em que essa relação de expansão da cana-de-açúcar e desmatamento não é automática. A segunda razão é que o zoneamento da cana-de-açúcar geraria externalidades positivas em outros setores. A mais importante é que, se bem feito e se defendido também pelo setor produtivo, poderia pavimentar o caminho para se criar o zoneamento de outros setores que estão cada dia mais em foco, como a pecuária de corte. Seria bom se já estivéssemos preparados para enfrentar o estabelecimento de um zoneamento da pecuária como forma de estimular a intensificação de pastagens. No entanto, infelizmente, penso que a lição aprendida com o zoneamento da cana-de-açúcar terá pouca serventia.
André M. Nassar, engenheiro agrônomo formado pela ESALQ-USP, com doutorado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Desde julho de 2003 é Diretor Geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE). As principais áreas de atuação no ICONE são: negociações internacionais multilaterais e extra-regionais; desenho de cenários quantitativos e de projeções de longo prazo de comércio agrícola; política comercial agrícola em países desenvolvidos e em desenvolvimento; contenciosos da Organização Mundial do Comércio.
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