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Scot Consultoria

Carta Conjuntura - Ensino a distância em medicina veterinária: um risco ao agronegócio e a saúde pública?


Quinta-feira, 22 de maio de 2025 - 18h00

Foto: Bela Magrela


A recente publicação da Portaria MEC no. 378/2025, que reformula a política de Ensino a Distância (EaD) no Brasil, reacendeu o debate sobre a formação em Medicina Veterinária. A norma define como cursos exclusivamente presenciais apenas Medicina, Direito, Odontologia, Enfermagem e Psicologia — excluindo a Medicina Veterinária dessa lista. Em resposta, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) protocolou ofícios no Ministério da Educação (MEC), solicitando esclarecimentos sobre os critérios adotados. Em manifestações públicas, o CFMV, reforçou que a entidade há quase uma década alerta para os riscos da formação a distância na área.

Como reforça o professor Enrico Ortolani, da FMVZ-USP e colunista da Scot Consultoria, cerca de 40,0% da carga horária de um curso de Medicina Veterinária envolve atividades práticas. “Principalmente nas disciplinas aplicadas, em que o estudante, ao lado dos animais e dos processos, é capaz de vivenciar e aprender técnicas, executá-las e interpretar os resultados por meio da leitura adequada do ambiente”, explica. Para o professor, soa como um contrassenso que o MEC proíba a modalidade EaD em Medicina, mas a permita em Medicina Veterinária, considerando que ambas compartilham fundamentos médicos semelhantes. “Na Veterinária, ainda há diversos aspectos essenciais que vão além da medicina clínica”, completa.

A importância da prática na formação veterinária

A formação em Medicina Veterinária envolve disciplinas como anatomia, fisiologia, clínica, cirurgia e manejo de animais, áreas que demandam experiência prática constante. O aprendizado efetivo dessas habilidades depende do contato com laboratórios, hospitais veterinários e fazendas-escolas, conforme previsto pela Resolução no. 595/1992. Em 2019, o próprio CFMV aprovou a Resolução no. 1.256, que veda a inscrição de egressos de cursos totalmente a distância, reforçando a importância da formação presencial.

Pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), até 20,0% da carga horária do curso pode ser realizada online, desde que limitada a conteúdos teóricos. Os demais 80,0%, incluindo atividades práticas e estágios supervisionados, devem ocorrer presencialmente.

Quando a quantidade tende a ultrapassar a qualidade

Com mais de 500 cursos de Medicina Veterinária no Brasil, número muito superior ao de países com território e população semelhantes, surgem dúvidas quanto à capacidade de todas essas instituições garantirem estrutura educacional adequada. Em muitos casos, os desafios já existem mesmo nos cursos presenciais, o que nos leva a questionar se a introdução do EaD em larga escala não pode acentuar ainda mais essas fragilidades.

Além disso, é importante destacar que essa preocupação vai além da inserção dos profissionais no mercado de trabalho, também está relacionada à expectativa dos estudantes e do compromisso com a qualidade do ensino oferecido. A formação em Medicina Veterinária representa um investimento significativo de tempo, recursos e disponibilidade emocional. Quando esse processo não garante os meios adequados para o desenvolvimento profissional completo, como a devida estrutura prática, cria-se um descompasso entre promessa e entrega.

A Medicina Veterinária exige habilidades específicas como julgamento clínico, manejo, leitura corporal dos animais e domínio de técnicas que só se desenvolvem por meio da prática direta.

Portanto, a ausência dessa vivência compromete não apenas a atuação do profissional, mas pode gerar riscos à saúde animal, à saúde pública e à segurança alimentar.

Afinal, por que isso afeta a pecuária?

Além do atendimento clínico, a atuação do médico-veterinário se estende a áreas fundamentais para a sociedade, como inspeção e fiscalização de produtos de origem animal, vigilância epidemiológica, controle de zoonoses, pesquisa científica, produção animal, formulação de dietas, bem-estar animal e segurança alimentar. O profissional também é peça-chave na defesa sanitária agropecuária, nas políticas públicas de saúde única e na certificação sanitária voltada à exportação de alimentos. Essa presença em múltiplos segmentos faz com que a qualidade da formação impacte diretamente cadeias produtivas, a saúde da população e a imagem do país frente aos mercados internacionais.

Segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio brasileiro atingiu R$2,72 trilhões em 2024, dos quais R$1,9 trilhão correspondem ao ramo agrícola e R$819,26 bilhões ao ramo pecuário. Em um setor que responde por cerca de 25,0% do PIB nacional, a formação de profissionais competentes e bem-preparados deve ser tratada como prioridade estratégica. Qualquer fragilidade nesse processo de formação pode comprometer etapas importantes da cadeia produtiva.

A Scot Consultoria acompanha com atenção e responsabilidade as discussões sobre o assunto. Reconhecemos o papel fundamental da inovação educacional e das tecnologias no processo de ensino, mas reforçamos a importância de critérios técnicos rigorosos quando se trata de profissões que exigem habilidades práticas e responsabilidades sanitárias.

Nesse contexto, destacamos a importância de que um debate qualificado e transparente exista entre os órgãos oficiais decisórios, e que considerem as necessidades da sociedade, dos estudantes e do setor produtivo de forma conjunta.

Julia Zenatti

Médica-veterinária graduada pela Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (FCAV/UNESP), com graduação sanduíche na Ecole Nationale Vétérinaire de Toulouse (ENVT). Certificada em Gestão de Projetos pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Integra a coordenação do departamento de Marketing da Scot Consultoria, sendo responsável pela gestão de pesquisas de campo e análise de dados setoriais no setor de pecuária de corte. Atua também no relacionamento com clientes, além de realizar a curadoria de conteúdo e a organização de eventos técnicos e corporativos promovidos pela Scot Consultoria.


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