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Carta Conjuntura: Brasil-China: excelentes oportunidades com o poderoso dragão, sendo mais saci e menos mula-sem-cabeça


Segunda-feira, 22 de junho de 2020 - 18h00


No último dia 3 de junho, foi lançado o livro “China-Brasil partnership on agriculture and food security, no qual chineses e brasileiros dividem igualitariamente seus 12 capítulos para colocar luz na situação atual da parceria entre os países na agropecuária e segurança alimentar, bem como apresentar oportunidades e sugerir caminhos para o aprofundamento da parceria que tragam benefícios para todos os envolvidos.


Essa publicação é fruto do trabalho do segundo ocupante da “Cátedra Luiz de Queiroz”, Marcos Jank pelo período de um ano entre 2019-2020. Ele foi precedido pelo ex-Ministro Roberto Rodrigues, que inaugurou o posto, também legando uma fundamental publicação para entender o agronegócio brasileiro cujo título se inicia com um verdadeiro mantra criado por ele: Agro é Paz: análises e propostas para o Brasil alimentar o mundo. Agora, terminado seu mandato, Jank cede a Cátedra a outro notável brasileiro, a que o agro tanto deve, o também ex-Ministro da Agricultura Allyson Paolinelli, ou seja, podemos já esperar outra contribuição de peso para inteligência do agro daqui um ano. A “Cátedra Luiz de Queiroz” criada em 2017 pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), vai cumprindo sua missão à altura do nome que ostenta.


O lançamento, de acordo com os tempos pandêmicos que passamos, ocorreu em uma “live” e, abaixo, são colocados alguns pontos relevantes apresentados. Sugerimos, a quem se interessar, a assistir as mais de duas horas de apresentação no Youtube e, especialmente, que leiam o livro. Ao final deste texto, é feita uma provocação especificamente da nossa cadeia da carne bovina e os desafios para atingir o enorme mercado chinês e além.


Destaques da participação de Marcos Jank (Cátedra Luiz de Queiroz, 2019-2020):

A parceria Brasil-China une dois países de extensões continentais e populosos, que, mais ou menos na mesma época, tiveram gigantescas migrações da zona rural para a zona urbana. Também nesta mesma época, a agricultura desses países sofreu um forte estímulo de modernização. Em função das particularidades de cada país, contudo, com perfis bem distintos. Por exemplo, no Brasil, vicejaram as atividades intensivas em terra e capital, como grãos, carnes, celulose, açúcar e biocombustíveis, enquanto na China foram estimuladas aquelas intensivas em mão de obra, como hortifrutigranjeiros e aquicultura.


A China usa 10% das terras agriculturáveis para alimentar 20% da população mundial e, sem surpresa, é o maior importador de alimento do mundo. Faz parte da estratégia da China, desde 2007, “ir para o exterior” (“Going Global”), um esforço de internacionalização do agronegócio, com participação da iniciativa privada e que procura ter maior controle das cadeias de suprimento.


O aumento de comércio entre os dois países nos últimos 20 anos foi estratosférico: Em 2000, as importações para a China representavam apenas 2,7% das exportações brasileiras, contra 36% no ano passado. Nesse mesmo período, o faturamento de carne bovina saltou de US$ 42 milhões para US$ 3,7 bilhões. Hoje, a carne bovina brasileira representa mais de 20% do consumo interno da China. A soja importada do Brasil representa a metade da demanda chinesa. Esses dados mostram como há um país com capacidade de produzir muito e outro altamente demandante, o ponto mais evidente que se trata de uma parceria óbvia e no interesse de ambas as partes.


Como desafios e oportunidades, destaque para (a) questões sanitárias que garantam alimento seguro, como criação de protocolos e harmonização de legislação, (b) investimentos em infraestrutura e logística, (c) produção com uso intensivo de tecnologia (agricultura 4.0), (d) os desafios de produção sustentável em cada país (escassez hídrica na China e desmatamento no Brasil, por exemplo) e (e) o estabelecimento de parcerias de longo prazo, o aumento de fluxo de comércio, com eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias, bem como a diversificação da pauta e agregação de valor. No caso da diversificação da pauta, a exportação de lácteos e produtos de aquicultura brasileiros são boas oportunidades. Na agregação de valor, o momento é particularmente oportuno para o setor de carnes pela falta de oferta em função da tragédia que foi a peste suína africana para a China. Do ponto de vista de aumento de exportação de grãos e diversificação de produtos, Jank explica que ainda há uma considerável produção de “fundo de quintal” de suínos, mas que, devido a peste suína deverão ser proibidas e haverá, portanto, uma migração para sistemas intensivos, o que deve fazer aumentar a demanda, não só de soja, mas também de milho, que ainda exportamos pouco para lá.


Destaques da participação de José Vicente Caixeta Filho (ESALQ/USP):

A China tem uma infraestrutura de logística gigantesca e, mesmo tendo muito transporte de carga por ferrovia e hidrovia, tem uma malha rodoviária 23 vezes maior que o Brasil e quase cinco vezes mais caminhões (14 milhões vs. 3 milhões).


A logística é um ponto em que o Brasil tem problemas de competitividade, ainda que nos últimos anos tenha evoluído. Há grandes oportunidades para o setor privado, como na criação de portos privados. Os portos de exportação tradicionais brasileiros têm canais pouco profundos, o que limita a operação com navios de médio porte. Novos empreendimentos, com canais mais profundos se beneficiam da economia de escala, ao poder receber navios maiores. Outro exemplo interessante de oportunidade de redução de custo é a exportação pelo Arco Norte (escoamento pelos estados de Roraima, Amapá, Amazonas, Pará e Maranhão), encurtando o caminho para a China via Canal do Panamá, rota pela qual já temos um quarto da exportação de grãos brasileiros.


Para aproveitar as oportunidades da parceria Brasil-China, Caixeta salientou a importância de políticas de Estado de mais longo prazo que garantam previsibilidade, investimento na melhoria da infraestrutura e esforço contínuo para produção a preços competitivos. De 2007 até hoje a China investiu US$ 58 bilhões em infraestrutura no Brasil, sendo a maior parte em energia e pouco no setor agrícola, mas há toda a chance disso mudar e, muito além de ser uma parceria apenas de produtor/ comprador, há grandes oportunidades de investimentos com ganhos mútuos em diversas áreas.


Destaques da participação de André Pessoa (Agroconsult):

O consultor André Pessoa comentou sobre os fatores chave para o sucesso da indústria de grãos e carnes no Brasil que ele elencou como: (a) abundância de recursos naturais (água, terra, etc.) , (b) disponibilidade de tecnologia, (c) políticas públicas (estabilidade econômica, isenção de impostos de exportação, linhas de crédito, etc.), (d) o empreendedorismo dos produtores e (e) organização das cadeias de valor (cooperativas, fazendas empresariais de larga escala, associativismo, etc.).


Ele mostrou uma interessante linha do tempo, dos últimos 40 anos, destacando a criação do programa de crédito rural e da Embrapa, em 1973, passando pelo Plano Real em 1994, pelo Moderfrota em 2000, para citar alguns, até o Plano ABC em 2010, mostrando como cada um desses pontos foi fundamental para transformar o Brasil em uma potência agrícola.


Além desses fatores, algo que ajudou o Brasil foi que as rendas em áreas de abertura ficam mais com o arrendatário do que para o proprietário, o que favoreceu essa parceria. Ocorre o inverso em áreas consolidadas, pois com a valorização da terra a participação do proprietário aumenta.


Com relação aos desafios e oportunidades, comentou que há muito a se aproveitar, mas chama a atenção para a importância da questão de diplomacia para que as alianças e alinhamentos estratégicos fluam de maneira adequada para o aumento das relações comerciais, tecnológicas e acadêmicas.


Respondendo à pergunta sobre a preocupação com a “invasão chinesa” e a ameaça às empresas brasileiras, comentou que, desde que submetidas ao regramento legal do Brasil, bastante exigente e restritivo, prevê maiores ganhos do que perdas. Enfim, o próprio exercício de nossa soberania, pela imposição e aplicação das nossas regras, garantiria o equilíbrio necessário para uma relação com saldo positivo.


Destaques da participação de Rodrigo Tima (Agroícone):

Rodrigo listou vários aspectos do agro brasileiro, como a grande quantidade de empreendimentos rurais de pequena escala, que seriam 77% do total, mas que ocupariam apenas 23% da área e com problemas de acesso às tecnologias e de titulação, que podem ser uma grande oportunidade de melhoria com a diversificação e adoção de práticas mais modernas de produção. Comentou também sobre a questão do desmatamento, pontuando que, apesar da dificuldade de apurar informações, tudo indica que quase a totalidade seja ilegal e muito dele em terras públicas. Em contraposição a isso, citou o Código Florestal e os 120 milhões de hectares em áreas privadas, cuja conservação é bancada pelo proprietários, e a agricultura de baixo carbono que tem ajudado a reduzir o índice de emissão de gases de efeito estufa (GEE), isto é, os quilogramas de GEE por quilograma de produto. Fez um paralelo entre os sérios problemas erosão que ocorrem na China e a ocorrência de grandes extensões de pastagem degradada no Brasil, sendo ambos exemplos de oportunidade de aplicação de técnica sustentáveis que, ao mesmo tempo aumentem a produtividade e reduzam a pressão por novas áreas. O Brasil teria, então, em suas iniciativas de sucesso, como as integrações lavourapecuária- floresta, algo a oferecer aos chineses que têm, além do problema com os solos, restrições hídricas cada vez mais severas. De maneira semelhante, também temos os biocombustíveis como um bom exemplo para a China. Junto com demais tecnologias adaptativas (melhoramento genético, por exemplo), China e Brasil podem se ajudar a se tornarem mais resilientes às mudanças climáticas.


Comentários finais do ex-ministros da agricultura, Dr. Roberto Rodrigues e Dr. Allyson Paolinelli:

Roberto Rodrigues, destacou pontos da fala de cada apresentador (já incluídos acima), que, segundo ele, mostram como essa parceria é natural e espontânea, unindo quem pode ofertar alimento que garanta a segurança alimentar de quem tem uma enorme demanda por alimentos. Frisou, contudo, que ela vai muito além disso, mas envolve o desenvolvimento de infraestrutura e logística, de produção com sustentabilidade e toda questão histórica de formação de políticas e estratégias, sobre as quais essa relação foi e continua a ter que ser construída.


Para a pergunta recorrente do risco de nos tornarmos dependentes da China, a resposta é um categórico “não”, pois somos muito grandes para isso, mas precisamos que esse relacionamento seja entendido por todos, inclusive, e sobretudo, pelo governo, para se traduzir numa relação diplomática bem estruturada para que as estratégias garantam relações fluídas em benefício de seus povos.


Por fim, o também ex-Ministro da Agricultura, Allyson Paolinelli comentou que, em 1975, atuando no MAPA foi instado pelo então presidente Geisel, a participar da reaproximação do Brasil com a China, no reconhecimento, já em 1974, que seria importante aproveitar nossas complementariedades, a despeito de resistências ideológicas à época. Ele considera a publicação uma verdadeira cartilha para ajudar a guiar esses grandes países a intensificarem a colaboração mútua, numa possível relação ganha-ganha, convidando a todos que estejam envolvidos com o tema em não deixar de lê-la.


Considerações finais com uma provocação para a cadeia da carne

Fica claro que combater a relação comercial entre Brasil e China, não só é contraproducente, como provavelmente inútil, dado às forças que nos aproximam serem gigantescas. No caso da nossa cadeia da carne bovina, as perspectivas são extremamente interessantes, mesmo se limitarmos apenas a questão de possibilidade de ampliação do volume exportado. Um dado da publicação que evidencia bem isso é o consumo per capita de 4 kg de carne bovina por habitante na China, contra cerca de 25 kg por brasileiros.


A provocação que faria, começa pelo entendimento que esse potencial aumento deverá ocorrer concomitantemente com o aumento da renda da população chinesa. Assim, ao mesmo tempo que temos mais gente podendo comprar mais carne, temos cada vez mais pessoas que possam pagar por qualidade. O ponto central aqui, então, seria considerar fazer um exercício de, baseado em nossas vantagens competitivas, estabelecer uma carne “premium” brasileira para além das exigências atuais dos chineses, na tentativa de agregar valor. Nossas vantagens competitivas são uma carne produzida quase a totalidade com base em pastagens, naturalmente “light” e com maior bem estar animal. Devidamente amparados por profissionais do marketing com amplo conhecimento da alma chinesa, essas vantagens poderiam ser exploradas e “empacotarem” o “bife do Brasil” para conquistarem a mente e os paladares daquele povo. Essa experiência, poderia ser replicada para os demais países asiáticos que apresentam também amplo potencial para aumento desse mercado, pelos mesmos motivos que a China.


O Dragão é o símbolo mítico duradouro da milenar sociedade chinesa, significando proteção, sabedoria, força, poder e riqueza. A bem mais jovem sociedade brasileira tem também sua rica mitologia. O que a apresentação do livro deixou claro é que, para nos beneficiarmos dessa parceria vai ser importante nos inspirarmos na astúcia do Saci Pererê, evitando o voluntarismo inconsequente da Mula-Sem-Cabeça.



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