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Scot Consultoria

Touro repórter


Sexta-feira, 27 de maio de 2022 - 12h00

Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.


Foto: Scot Consultoria


Aconteceu, de novo! Ano passado, quando tive a experiência exotérica de entrevistar um boi, desafiei o bom senso, reportando isso neste mesmo espaço e expondo-me a uma justificável desconfiança sobre minha sanidade mental. O erro maior, contudo, seria esconder tão fabulosa oportunidade. Nessa mesma linha, segue o relato dessa nova experiência, ainda mais mística. 


Segue o fio:


Retornando ao lar, trafegava por uma rodovia vicinal quando, subitamente, o carro começou a puxar com força à direita. Com aquele misto de surpresa e insatisfação, me resignei a estacionar de pronto. Beirando o acostamento, um pasto em boas condições e um belo touro Nelore. Apesar de grande, não impressionava tanto pelo tamanho, mas pela pelagem até meio reluzente.


Antes mesmo de verificar a hipótese mais provável de um pneu furado, escutei alguém, muito próximo, me chamar. A essa altura leitor, claro, já sabe que só podia ser o próprio touro. Desta vez, porém, era uma experiência ainda mais extrema. Estávamos nos comunicando telepaticamente!


Após nos apresentarmos, ele me informando ter chegado há pouco tempo na fazenda e eu explicando que ganhava a vida na pesquisa em nutrição de bovinos de corte, tivemos uma longa conversa, na qual fui entrevistado. Abaixo, compilamos as partes mais importantes da entrevista:


Touro: Por que esse interesse em nos estudar? Temos alguma importância para vocês?


Pesquisador: Muita. Principalmente por fornecerem um alimento muito importante na nossa nutrição. Além disso, vocês produzem esse alimento à base de capim, competindo muito pouco conosco por alimentos que nós dois podemos comer.


Apesar de pouco mais de metade da sua carcaça virar carne, de você nada se perde, seja como alimentos para outras espécies animais ou matéria-prima para uma infinidade de produtos. O seu couro é usado desde sempre pelo ser humano. O esterco vira adubo e substrato para gerar energia em biodigestores.


Bovinos são usados, também, como força de tração para transporte de carga e trabalhos em geral no campo. Para o pequeno produtor em locais ermos, sem banco, vocês também são a poupança para ser usada em caso de necessidade. Pela soma de tudo isso, ruminantes, como você, sempre foram parceiros fundamentais para a expansão de novas áreas. Até dizem que a humanidade se espalhou sempre na pegada dos cascos dos ruminantes.


Touro: Tudo isso? Então todo mundo só fala bem da gente?


Pesquisador: É... Sabe que hoje não tem sido bem assim não. Tem gente até que diz que vocês não deveriam mais existir e que produzir carne bovina seria um luxo que temos que abrir mão.


Touro: Puxa, desse jeito? Por quê?


Pesquisador: Uma boa parte das pessoas recebe informações muito distorcidas da realidade do campo. Para elas, a produção de carne é feita às custas da devastação da natureza, com crueldade animal e para produzir um alimento que reduz o tempo de vida das pessoas.


Touro: Do que eu tenho culpa?


Pesquisador: Você, não tem culpa de nada, afinal, quem os cria, somos nós humanos. Felizmente, a grande maioria trabalha direito, tanto porque há cada vez menos chance de fazer errado, como porque ao trabalhar de forma mais racional, ele melhora seu negócio.


Touro: O que está distorcido?


Pesquisador: Então, no caso do desmatamento, por exemplo, o boi é o que quem desmata coloca na área, pois é a opção mais conveniente para essa primeira ocupação. Pode até ser um mal fazendeiro, mas, em geral é uma pessoa que é mesmo especuladora imobiliária. O ganho, de verdade, não é produzindo, mas com a venda da área.


Já com relação a fazer mal à saúde, o que a ciência mostra é que, se consumida com moderação e fazendo parte de uma dieta variada, ela só ajuda. Por fim, quanto à crueldade, o produtor sabe que quem mais perde se não tratar bem seus animais é ele mesmo.


Há pessoas que não aceitam o fato de sacrificarmos animais para usar como alimento o que, apesar de achar antinatural, respeito. O fato é que só estou tendo essa conversa com você porque os criamos para ter mais uma opção de alimento.


Touro: Alimento, logo existo?


Pesquisador: A filosofia da coisa é essa mesma! 


Touro: Vamos deixar eu de lado, o que um pesquisador faz?


Pesquisador: Pesquisadores em produção de ruminantes, como eu, trabalham tentando formas de produzir mais e melhor. Produzir alimento para toda a humanidade sempre foi um grande desafio. Por um bom tempo a grande preocupação era produzir para não passar fome. Hoje, persiste a busca por produzir mais, mas a palavra-chave é eficiência. Produzir mais (ou o mesmo tanto) usando menos recursos. Isso tanto reduz custo ao produtor, como o impacto ambiental da atividade.


Touro: E como vocês conseguem aumentar a eficiência?


Pesquisador: De muitas maneiras, inclusive porque há várias áreas de atuação. Para simplificar, vamos pegar o que chamam de tripé da produção: sanidade, genética e nutrição!


No caso da sanidade, por exemplo, os colegas dessa área investigam formas mais baratas e eficientes de evitar doenças, inclusive com menor necessidade de medicamentos ou até evitando seu uso, por exemplo, com o desenvolvimento de vacinas ou novas práticas de manejo.


Os colegas da genética animal, também a título de exemplo, selecionam animais mais eficientes em converter o alimento que consomem ou linhagens mais resistentes às doenças. Os de genética vegetal, no melhoramento de forrageiras ou outras plantas consumidas pelos animais.


Os nutricionistas, criando formas de aumentar o aproveitamento dos alimentos ou encontrar novas opções de ingredientes.


A busca por novas maneiras de produzir é incessante, quando o melhor da criatividade e engenhosidade se coloca à disposição, quase ilimitada. Veja o caso da reprodução, que hoje é extremamente tecnológica com transferência de embrião, inseminação artificial em tempo fixo e fertilização in vitro. Os colegas do “sexo animal” continuam bolando novos protocolos e técnicas ainda mais ousadas.


Touro: E como vocês têm certeza de que vai melhorar?


Pesquisador: Certeza, mesmo, só depois que vai para o campo e é aplicado em maior escala. Mas para reduzir a chance de erro, a pesquisa usa o método científico. De maneira bem simples, a gente tem um problema e, para resolver, propomos alguma intervenção. Vamos dizer que seja um fator X que incluída na dieta reduza a emissão do metano produzido no seu rúmen.


Touro: Me... o quê?


Pesquisador: Metano. É um gás que você produz ao digerir os alimentos e que, na atmosfera, contribui para reter calor. Assim, ele agrava num problema que temos a enfrentar que é o aquecimento acelerado da temperatura da Terra.


O aquecimento global está causando mudanças climáticas de forma mais rápida que a vida sobre ela tem condições de se adaptar e gerando extremos climáticos (muita chuva, muita seca, furacões etc.) que têm causado grandes prejuízos e perdas de vida.


Touro: Depois você explica melhor isso. Quero saber do método científico.


Pesquisador: Combinado! Voltando ao método científico: eu pego um grupo de animais e divido em dois grupos, o mais semelhantes possível entre si. Então, eu sorteio um grupo para ficar no lote que vai receber o fator X e, o outro, que não o receberá. Essa é a única diferença entre os dois grupos, que a gente chama de grupo tratamento (a dieta com o fator X) e grupo controle (a dieta sem o fator X).


Terminado o período do experimento, comparamos a produção de metano de cada grupo e é avaliado se a intervenção, no caso o fator X, fez com que os animais tratados tenham produzido menos metano. Se o valor for igual ou mais alto, já tenho certeza de que ele não funcionou. Todavia, mesmo conseguindo reduzir o metano, ainda tenho que me assegurar que essa diferença não foi por acaso. O filtro usado para isso é a estatística. Ela nos provê com ferramentas que permitem avaliar a chance da diferença não ser obra do acaso, isto é, por exemplo, se dei azar de, ao separar os lotes, ter ficado com mais animais que produzem muito metano no grupo controle. Isso aumenta a chance de eu tirar conclusão de que o fator X foi efetivo, quando não foi.


Touro: Vixe... rigoroso, hein?


Pesquisador: Faz parte! Aliás, pela teoria estatística nunca podemos ter 100% de certeza, ainda que seja 99,99%. Trabalhamos com probabilidades e, usualmente, por convenção, consideramos diferente apenas quando temos mais de 95% de chance de acertar, ou seja, que há apenas 5% de chance de a diferença ter sido pelo acaso e não pela intervenção. É o que chamamos de diferença significativa. Nos trabalhos científicos é comum a notação “p < 0,05”, significando que há apenas 5% (5/100 = 0,05) de chance de estarmos errados ao aceitar que diferença é real.


Touro: Agora entendi, se é significativa, só usar e tudo certo?


Pesquisador: Calma aí! Há ainda alguns pontos a se considerar. A primeira é que nem sempre uma diferença estatisticamente significativa é, na prática, relevante. Um exemplo, que já vi acontecer, foi com a maciez da carne medida por instrumentos. Os resultados de vários testes mostravam diferenças estatisticamente significativas entre algumas raças (isto é, não podiam ser atribuídas ao acaso, sendo fruto do tratamento, no caso, raça). Apesar disso, com as diferenças encontradas, quase nenhum consumidor conseguiria notar a diferença na prática. A segunda, e mais importante, é entender que a significância se restringe aos dados do experimento.


Touro: Só vale para o experimento, então?


Pesquisador: Exato. O importante é evitar o erro de achar que, por ser “estatisticamente significativo”, não tem como ele não funcionar na prática. É, sim, uma evidência muito forte que permite esperar que se repita, mas precisam ser feitos mais estudos semelhantes para ver se a resposta é robusta e pode ser recomendada com mais segurança.


Touro: E como essa informação chega aonde deve?


Pesquisador: Boa pergunta e vou ter que continuar cansando você com respostas longas. Meu medo é você dormir! Vamos em frente!


Tem um passo anterior importantíssimo, colocar os resultados em um artigo que explique: (1) a importância e o motivo da escolha daquela intervenção e o objetivo a ser alcançado, (2) detalhar como o experimento foi feito, de forma que ela possa ser repetido, incluindo as metodologias usadas como, por exemplo, como o metano foi medido e quais modelos e ferramentas estatísticas foram usados, (3) uma parte que se apresentem e se discutam os resultados e (4) uma parte de conclusão, na qual se informa se o objetivo foi alcançado ou não. Esse artigo é submetido à publicação e, se o editor concordar que ele merece ser publicado...


Touro: Ele publica!


Pesquisador: Não tão rápido! Ele manda para, em geral, dois revisores, de preferência especialistas no assunto que têm a tarefa de esmiuçar todo o trabalho em busca de falhas, bem como propor melhorias e solicitar a inclusão de informações faltantes. Após terem sido aceitas as alterações necessárias dessa revisão feita pelos pares, o editor pode, enfim, publicar.


Touro: Certo, daí o meu dono lê o trabalho e fica sabendo?


Pesquisador: Na verdade, raramente um pecuarista têm acesso às revistas científicas. O trajeto natural, nesse caso, é essa nova opção ser incorporada pelas empresas que as divulgam pelas suas estruturas de marketing. Já se fosse um trabalho propondo um manejo para reduzir o metano, a divulgação seria feita pelas equipes de transferência de tecnologia dos institutos de pesquisa.


Touro: Agora já sei o que um pesquisador faz: coloca um pozinho no que eu como, mede se faz diferença e publica numa revista científica se sim ou não. Por aí, né?


Pesquisador: Olha isso foi só um exemplo. Mesmo nesse experimento simples a gente mede muito além do metano, até para entender como o fator X age. Por exemplo, se ele reduz o metano por reduzir o consumo, precisa ver se reduziu também o ganho, pois pode não valer a pena. A tendência hoje é, inclusive, fazer tantas medidas quanto possível, como forma de aumentar o retorno do investimento no trabalho. Assim, se conseguirmos avaliar se as dietas foram igualmente digeridas e como os teores de metabólitos no rúmen, na urina e no sangue variaram, tanto mais podemos aprender e usar essas informações para aperfeiçoar as intervenções, seja do fator X ou outra, mesmo que não envolva colocar nada na dieta.


Touro: Entendo...outros pesquisadores podem usar seus resultados para outras coisas?


Pesquisador: Exatamente! Tanto para outras inferências que sejam possíveis, como para criar modelos de como as coisas funcionam dentro de você. Na prática, é o caso de programas de formulação de dietas. Seja o que for, sempre serve para o entender melhor os mecanismos envolvidos e para ver o que está faltando pesquisar para conseguir os entender melhor. Isso, inclusive, faz com que até novas áreas de estudo sejam criadas.


Touro: Não fica cada um dentro da sua caixinha, então?


Pesquisador: Quanto mais conseguirmos trabalhar juntando diferentes competências, mais conseguimos entender o todo e avançar mais rápido. Um caso interessante é o de um empresário americano que, ao doar uma grande estrutura de laboratórios para a universidade próxima ao seu negócio, colocou como uma das exigências, na medida do possível, de não haver paredes entre os diferentes laboratórios, para aumentar a interação entre os pesquisadores. Já com vários anos de uso, os usuários desses laboratórios concordam que o doador estava certo, com benefícios a todos e à pesquisa. As tecnologias que vêm chegando, como a genômica e , também são naturalmente bastante integradoras e exigem que várias disciplinas sejam usadas simultaneamente.


Touro: Genômica e bioinformática? O que isso tem a ver comigo e com interdisciplinaridade?


Pesquisador: Tudo! A genômica é o estudo do genoma, ou seja, de toda informação que suas células precisam para você existir e continuar vivo. A bioinformática, a ferramenta usada para conseguir lidar com a imensidão de dados que a genômica trás. Por exemplo, no caso do fator X a gente pode estudar o que mudou na população de seus microrganismos, identificando cada população pela análise do genoma delas. Esse é um exemplo de um estudo que depende de um nutricionista para fazer o experimento base, do pessoal da genômica que vai conseguir identificar como se comportaram as diferentes populações e os bioinformatas que ajudam a dar sentido aos achados. Outros podem se juntar, com o melhorista animal que vai tentar achar marcadores genômicos dentro do seu genoma que permitam identificar, até antes de nascer, se o animal vai ter a interação com a população de microrganismos naturalmente menos produtora de metano ou que diminui mais ainda em conjunto com o fator X.


Touro: Marcadores genômicos? Como assim?


Pesquisador: O melhorista animal já usa marcadores visuais para selecionar. Por exemplo, há uma boa relação entre a qualidade do touro e o tamanho da sua bolsa escrotal, por isso que medem o perímetro escrotal de vocês. Se o melhorista animal encontra marcadores (pedaços do DNA) que no seu conjunto são capazes de antecipar qual o touro mais fértil, nem precisa apertar seus bagos.


Touro: No inverno essa medida é um saco! Não tem como dar uma aquecida naquela fita métrica, não?


Pesquisador: Vou avisar meus colegas do melhoramento. Pode deixar!


Touro: Tudo muito complexo, mas muito interessante. Conte mais! Além de pesquisa, o que vocês fazem?


Pesquisador: É importante, primeiro de tudo, se manter atualizado. Parar de estudar não é uma opção. Para isso, ler muito, participar de eventos científicos e dos ligados à produção, bem como de qualquer outra oportunidade de reciclar conhecimento e aprender. Ajuda nisso, também, ser revisor de revistas científicas.


Atuamos, também, na divulgação científica e transferência de tecnologia, que também é uma oportunidade de receber informações do nosso cliente alvo, o produtor, que é quem usa as tecnologias. Essas informações frequentemente revelam algum problema que nos levará a próxima questão de pesquisa que precisamos responder.


Há, também, a parte burocrática de fazer relatórios, fazer a gestão técnica-financeira de projetos de pesquisa etc... que é a parte que nenhum pesquisador gosta. Agora, deixa eu tirar uma curiosidade, por que você está sozinho aqui?


Touro: Tive problemas com outro animal. Disseram que estava fazendo “manning” com ele...


Pesquisador: Você quer dizer “bullying”?


Touro: Hein?


Pesquisador: Opa...deixa para lá! Na verdade, eu esqueci da hora e preciso levar a comida que fui buscar para casa...


Touro: Puxa, que pena! Volte qualquer dia para gente continuar trocando pensamentos!


Pesquisador: Será bom poder voltar, sim, falar mais sobre você da próxima vez.


E foi assim...



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