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Scot Consultoria

Relação entre caroço de algodão e alterações organolépticas na carne


Sexta-feira, 4 de novembro de 2011 - 16h23

é médico veterinário mestrando em ciências pelo centro de energia nuclear na agricultura (CENA/USP), com foco em nutrição e reprodução de ruminantes.


Atualmente, temos um grande problema na indústria da carne brasileira que é o aparecimento de carnes com odor e sabor de fígado. Este problema aparentemente começou a ocorrer cerca de 2 a 3 anos, sendo motivo de discussão entre produtores, frigoríficos e pesquisadores. Muitas pessoas envolvidas na cadeia da carne se mostram indignadas pelo fato de até o momento a pesquisa brasileira não ter dado uma resposta, indicando qual o motivo dessa alteração de sabor. No entanto, para quem conhece o processo de pesquisa no Brasil, isso é totalmente esperado. Como temos uma pequena participação privada no financiamento da pesquisa e também no processo de experimentação, a pesquisa brasileira é dependente de financiamento público, principalmente através dos órgãos de fomento (CNPq, CAPES e as FAPs estaduais). Desta forma, entre escrever um projeto, ter o projeto aprovado, realizar um experimento e ter resultados publicados, têm-se um período de no mínimo 3 a 4 anos. Uma das principais hipóteses para este odor e sabor de fígado na carne é o uso de quantidades elevadas de caroço de algodão na dieta dos animais em confinamento. Portanto, estamos trabalhando com uma questão multidisciplinar, o que exige uma abordagem experimental compatível para responder a questão, o que, neste caso, deve envolver profissionais das áreas de nutrição de ruminantes, qualidade de carne e química. E aí está outra grande dificuldade, trabalhar com interdisciplinaridades. É muito difícil conseguir que equipes de pesquisa de diferentes ramos do conhecimento trabalhem juntas e de maneira coordenada. Talvez por esse motivo, os resultados publicados até o momento falham em estabelecer alguma relação de causa/efeito para o problema. Como exemplo do quão difícil é a questão, podemos analisar um pouco do que é preciso considerar nessa questão do caroço de algodão. O caroço de algodão possui um fator antinutricional denominado gossipol, que é bastante conhecido pelos profissionais de produção animal por seus efeitos antifertilidade masculina. No entanto, este composto apresenta uma grande quantidade de efeitos biológicos, como: atividade antiviral, atividade anticancerígena, atividade antiparasitária (principalmente antimalárica). Estes efeitos biológicos decorrem do seu mecanismo de ação que está relacionado a reação de dois grupos aldeídos funcionais na molécula, a qual pode facilmente se ligar a grupos aminos livres de várias proteínas de importância biológica, levando à formação de bases de Schiff’s estáveis (CLARK, 1928). Entre os aminoácidos, a lisina é fortemente preferida nesta reação, o que geralmente leva a uma redução da quantidade de lisina disponível para os animais recebendo dietas com gossipol. Outra ação danosa do gossipol no metabolismo animal são as reações cruzadas com uma grande variedade de enzimas oxido-redutases, principalmente desidrogenases (BURGOS et al., 1986; VANDER JAGT et al., 2000). Conhecendo estes mecanismos de ação é possível imaginarmos que o gossipol possa realmente interferir na qualidade de carne dos animais. Primeiro, a reação com proteínas e formação de moléculas estáveis indicam que o gossipol poderia se ligar as proteínas do músculo esquelético. Segundo, a sua ação de inibição sobre enzimas desidrogenases, que são enzimas envolvidas no metabolismo energético das células e, portanto, altamente envolvidas no metabolismo muscular e na conversão de músculo em carne. Além disso, já foi demonstrado o acúmulo do gossipol no músculo de ovinos por Kim et al. (1996), o que reforça a hipótese e vislumbra um possível resíduo desse composto na carne para os consumidores. No entanto, estas alterações organolépticas e sensoriais da carne também poderiam ser causadas pelo excesso de ácidos graxos insaturados que escapam à biohidrogenação ruminal, visto que, o caroço de algodão é rico nesse tipo de ácido graxo (MADRUGA et al., 2008). Portanto, a alteração de sabor e odor estaria relacionada com uma modificação no perfil de ácidos graxos, o que também pode ser justificado, já que o odor e sabor são fortemente determinados pelos ácidos graxos insaturados presentes na carne. Isso ocorre porque esse tipo de ácido graxo possui ponto de ebulição menor que os saturados e, durante o cozimento da carne, boa parte dos ácidos graxos insaturados volatilizam, o que caracteriza o odor da carne (WOOD et al., 2003). Tendo estabelecidos esses possíveis de meios de ação do caroço de algodão nas características organolépticas e sensoriais da carne, temos que partir para o processo de experimentação buscando comprovar estes efeitos. No entanto, temos aqui uma série de desafios que precisam ser superados. O primeiro deles, e talvez um dos mais complicados, é que não temos métodos padronizados para determinação de gossipol (livre e total) tanto na dieta dos animais, quanto nos tecidos biológicos. E ainda, enfrentamos alguns problemas quanto ao fato do gossipol sofrer degradação pela luz e se ligar muito facilmente a outros compostos, o que faz com que os métodos de detecção utilizados não sejam capazes de determinar o seu exato teor original. Isto é extremamente importante, porque o teor de gossipol no caroço de algodão é altamente variável, sendo encontrados valores de 0,4 a 1,6% de gossipol na matéria meca (MS). Por isso, antes de começar qualquer avaliação temos que saber qual o teor de gossipol na dieta. Outro problema, é que estamos trabalhando com animais ruminantes e grande parte do gossipol livre que chega ao rúmen se liga a proteínas e não é absorvido pelo animal. É isto que permite que os ruminantes tolerem dietas com níveis mais elevados de gossipol que os monogástricos. Mas isto indica também que dependendo da fisiologia ruminal, há uma variação na quantidade de gossipol que se liga a proteínas e consequentemente na quantidade que é absorvida pelo animal. Em geral, dietas com baixa taxa de passagem ruminal permitem que o gossipol seja extensivamente ligado e a absorção seja muito baixa. Por outro lado, dietas com alta taxa de passagem, proporcionam grande absorção de gossipol. Portanto, a composição das dietas experimentais pode proporcionar grandes diferenças nos resultados. Isso também reforça a ideia de que o gossipol possa ser o causador da alteração de sabor, pois a principal indicação é de que o problema tem ocorrido em animais de confinamento, no qual, em geral, as dietas possuem elevada quantidade de grãos, o que leva a uma maior taxa de passagem, e, portanto, maior absorção de gossipol. E por último, outra questão diz respeito aos painéis sensoriais que são utilizados para determinação das características organolépticas e sensórias da carne. Este sistema é muito subjetivo, envolvendo grande número de pessoas, que por sua vez possuem percepções diferentes em relação a sabor, odor e cor dos alimentos. Além disso, a variação é muito grande, o que torna difícil a identificação de diferenças estatísticas entre tratamentos. Por isso, para a resolução desta questão, talvez tivéssemos melhores resultados utilizando abordagens mais refinadas, buscando alterações moleculares, como o perfil de ácidos graxos e o perfil protéico (proteômica) da carne. Assim como, determinar o teor de gossipol no músculo e outros tecidos dos animais, e avaliar a ligação do gossipol com as enzimas e proteínas musculares, verificando possíveis efeitos que isto pode ter no processo de conversão do músculo em carne. Portanto, essas três fontes de variação juntas nos dão um indicativo do motivo de alguns experimentos feitos até o momento não serem capazes de determinar alguma relação entre a dieta com caroço de algodão e alterações organolépticas na carne. Além de que podem existir outros fatores não mencionados influenciando os resultados dos experimentos.
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