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Scot Consultoria

Sobre a necessidade de desumanizar o homem


Quinta-feira, 8 de setembro de 2011 - 13h11

Amazônida, engenheiro agrônomo geomensor, pós-graduado em Gestão Econômica do Meio Ambiente (mestrado) e Geoprocessamento (especialização).


A fronteira sempre me atraiu. Não é apenas uma atração física, mas um tipo estranho de atração espiritual. Nasci em plena ebulição de uma fronteira quando a sociedade brasileira avançou sobre a região norte do país. Minha vida caminhou junto com esta fronteira. Cresci neste processo. Mas essa relação transcende a vida material. Filmes como Sombra e Escuridão, Dança com Lobos, The Proposition e Open Range; livros como Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, os primeiros volumes de O Tempo e Vento, de Érico Veríssimo, Blood Meridian, de Cormac McCarthy; as teses de doutorado de Susana Hacht e João Santo Campari sempre me atraíram e tocaram de forma especial. Passei momentos saborosíssimos sorvendo textos e vídeos como esses. Todos têm em comum um olhar sobre a fronteira da humanidade em direção ao mundo, por assim dizer, desumanizado. Desde que um tipo particular de macaco africano adquiriu humanidade, nossa espécie coloniza, na acepção ecológica da palavra, continuamente, o planeta. É um comportamento natural, faz quase parte da biologia do homo sapiens expandir os limites de seu domínio sobre as outras espécies. Vivemos dias incomuns. Faço talvez parte da primeira geração de seres humanos que se vêem diante da necessidade de parar uma fronteira, de mudar um comportamento talvez inerente à própria natureza humana. Todas as vezes em que esse processo salta aos meus olhos é como se eu tomasse um soco no estômago. A foto que ilustra esse post foi tirada por mim pouco depois do meio dia de hoje, sete de setembro de 2011. É uma ponte erguida sobre o rio Gurupi que separa o Pará do Maranhão. Atravessei essa mesma ponte onze anos atrás, no final da tarde de um domingo. O desmatamento na Amazônia experimentava um pico histórico. Havia um cheiro forte de poeira, de fumaça dos fornos de carvão, de pó de madeira das serrarias com pátios lotados de toras. Um único bar, que usava energia elétrica do gerador a diesel de uma das serrarias, vendia cerveja quase gelada. Entrei e bebi algumas. Conversei com gerentes de fazendas próximas e funcionários das serrarias. O local, um casebre de tábuas pintadas de verde com piso de cimento queimado, fervia. O assunto do momento era um cadáver roxo e inflado de um homem que havia sido morto numa briga de festa na noite anterior e que boiava alguns metros abaixo dessa ponte aí da foto. A polícia havia sido avisada, mas ainda não havia aparecido. Ninguém sabia o sobrenome do defunto e não havia parentes conhecidos para reclamar seus restos e ele estava lá, boiando indiferente com os olhos fixos no lodo do fundo do rio. Num determinado momento entraram no bar três ou quatro homens sobressaltados e começou um alvoroço. Os homens traziam notícia sobre uma briga que acabara de acontecer no prostíbulo local. Segundo a história deles, três juquireiros haviam quebrado os isopores e derramado todo o gelo, deram panadas de facão em algumas das mulheres e quebraram o rádio de pilhas, ou seja, destruíram o cabaré. O clima ficou tenso e, embora tivesse disposição para mais algumas cervejas, decidi tomar o meu rumo. Sempre fui medroso. Nunca mais voltei no lugar. Até hoje. Tudo estava como há onze anos. O casebre continua lá. É possível vê-lo, mal-e-mal, dando zoom na foto. Exceto pela pintura azul bebê das tábuas, continua exatamente igual há onze anos. Estava fechado, então não pude entrar, nem tomar uma cerveja, nem conversar com as pessoas. Havia um silêncio angustiante. Quase todas as portas estavam fechadas, não havia carros, nem movimento de caminhões. Três homens estavam sentados numa sombra diante de mochilas provavelmente esperando um ônibus ou coisa parecida. Manobrei o carro na frente do casebre e voltei para casa. Quando decidi ir até lá hoje fiquei empolgado com a expectativa de rever aquele lugar e relembrar essa história, mas voltei de lá com um nó no gorgomilo. A fronteira parou. De lá até a minha casa são mais de cem quilômetros de estrada de terra. Foram quase duas horas ouvindo Cowboy Junkies e ruminando aquela esquisitice de uma fronteira que não caminha. Não é que eu queira que ela ande até o fim. A angústia vem da evidência de que o fim chegou e de que nós teremos que lidar com o comportamento inumano de não colonizar, de não ocupar novos nichos. Foi o sentimento de finitude, de aprisionamento e a necessidade evidente de nos desumanizarmos, de corrompermos nossa própria natureza humana que me atou a boca do estômago.
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