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Scot Consultoria

Cidades rurais


Terça-feira, 4 de julho de 2006 - 17h53


Mede-se, há tempos, o desenvolvimento das Nações através de sua taxa de urbanização. Quanto maior a população das cidades, mais evoluída está a sociedade. Esse critério, demográfico, começa a ser contestado. O espaço rural se projeta. A velha ordem fisiocrata, dominada pela nobreza sobre o campesinato, começa a se desmantelar com o florescimento das antigas cidades medievais. O nascente comércio origina a burguesia urbana. No século 18, a vitória da urbe sobre o campo se consagra com a industrialização capitalista. O processo de desenvolvimento exigia alterar a distribuição espacial da população. Assim ocorreu, com distinta velocidade. Na Europa, o êxodo rural se procedeu suavemente, durante gerações. No Brasil, configurou uma marcha acelerada, uma corrida rasa. As capitais se encheram de gente, expandindo-se impetuosamente. Caminhões paus-de-arara despencavam famílias buscando vida nova. Metrópoles ergueram imensas periferias num piscar de olhos. Moradias precárias, abastecimento sofrível, tantos senões, mas nada freava o ímpeto da mudança social. No interior, municípios disputavam entre si a primazia do crescimento. Aumentar a população urbana era sinônimo de progresso. Vereadores ampliavam o perímetro urbano do município, roubando área da agricultura para os “distritos industriais”. Loteamentos explodiram. Chique era o asfalto. Entre 1950 e 1970, inverteu-se a pirâmide populacional. Os habitantes rurais, majoritários em 63,8%, decaíram para 44,1% no período. O Brasil estava plenamente urbanizado em 1990, quando a população urbana atingiu 75,5%, elevando-se ainda mais, em 2000, para 81%. Hoje, estima-se que a população rural corresponda a 16% do total. A forte supremacia do “urbano” sobre o “rural”, entretanto, começa a ser discutida. Acontece que, conforme aceita o IBGE, quem estabelece a diferença entre esses dois contingentes é a Câmara de Vereadores. A prática jurídica vem desde 1938, com Getúlio Vargas, Os edis, simplesmente, legislam e fixam a área urbana dos municípios. O que sobra é rural. José Eli da Veiga, economista da USP, foi pioneiro no questionamento desse critério jurídico. Em seu livro “Cidades Imaginárias”, lançado em 2002, analisa o dinamismo dos municípios brasileiros, mostrando a relevância da economia rural sobre as cidades do interior. Adotando-se a classificação da OCDE, baseada na densidade demográfica regional, José Eli conclui que o Brasil rural envolve 4485 municípios, com 51,6 milhões de habitantes, ou seja, quase 30% da população. O dobro daquilo apontado pelo IBGE. Semelhante análise, advinda da Unicamp, no Projeto Rurbano, também rediscute esse artificialismo jurídico que transforma em urbano aquilo que continua rural. As estatísticas permitem concluir que não houve migração recente do campo para a cidade, mas sim ocorreu que “a cidade invadiu o campo”. Cresce a polêmica sobre o paradigma demográfico tradicional. O BNDES, em convênio com o Bandes-Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo, acaba de finalizar um estudo intitulado “Qualicidades”. Seu propósito era analisar a gestão das cidades com ênfase na qualidade de vida de seus habitantes. O próprio coordenador do trabalho, economista Luiz Paulo Vellozo Lucas, ex-prefeito de Vitória, se surpreendente com a conclusão do trabalho. As áreas urbanas mais dinâmicas, metropolizadas, pioram, enquanto que as cidades aparentemente estagnadas, agrícolas, melhoram a qualidade de vida. Baseado no “Qualicidades”, a equipe do BNDES sugere alterar a antiga classificação polarizada entre urbano e rural, propondo quatro novas categorias de cidades: agrorurais, agrourbanas, industriais e de serviços. Aqui reside o foco da moderna discussão: as cidades rurais. O paradoxo levanta uma questão fundamental: quem, e como, decide a separação entre o urbano e o rural? A Câmara de Vereadores, com interesses locais, ou o planejamento regional, contemplando o coletivo? Vem de longe a dificuldade em compreender as relações da agropecuária com a economia urbana. Formou-se uma cultura geral, nucleada no raciocínio econômico, que valoriza o urbano como “melhor” que o rural. Este, face à corrida para as cidades, virou sinônimo de atraso. Acabou Jeca Tatu. Agora, com a crise das metrópoles, descobre-se que o rural pode ser melhor, mais moderno, superior qualidade de vida. Chegou assim a hora de urbanizar o campo. Transporte, telefonia, energia, saúde, educação, moradia: é extensa a agenda da modernidade rural. A interiorização do desenvolvimento, puxada pela expansão do agronegócio, renova valores esquecidos da sociedade brasileira. Jovens preferem curtir Barretos que Guarujá. A sunga empata com a camisa xadrez. Estreitam-se as distâncias culturais. Ninguém melhor que as chácaras de final de semana e o ecoturismo testemunham esse fenômeno de revalorização do espaço rural. Com a facilidade na comunicação eletrônica, o computador substituirá a estrada. O campo se imiscui na cidade. “Se as cidades perecerem e os campos forem preservados, as cidades renascerão; mas se os campos forem destruídos, as cidades desaparecerão para sempre." Esta célebre frase, atribuída a Abraham Lincoln, permanece viva. No passado, poderia parecer heresia. Hoje, todavia, a “desurbanização” poderá aquilatar o desenvolvimento da sociedade. Afinal, viver no interior, ar limpo, barulho baixo, bandido distante, comida barata, ninguém duvide, as cidades rurais são melhores.
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