Aos leitores que são mais veteranos do que eu na pecuária, peço que puxem pela memória quais eram as exigências, nas décadas de 70 e 80, que precisavam ser atendidas para que o boi pudesse ser enviado ao frigorífico.
A maioria vai lembrar de que era necessário, apenas, alcançar um peso mínimo ao redor de 15 ou 16 arrobas.
Hoje, porém, é preciso atender requisitos de sanidade, bem-estar animal, sustentabilidade (no que diz respeito às questões sócio-ambientais), RASTREABILIDADE, índices mínimos de produtividade... E ainda se defender de sem-terra, de índio, de ladrões de gado, de fiscais corruptos e de ministro língua solta.
Isso tudo sem se esquecer das pressões econômicas, já que, no longo prazo, os preços pecuários tendem a cair, ao passo que os custos de produção só fazem subir.
Há 30 ou 40 anos já não era fácil ser pecuarista. Hoje, porém, é dose pra leão.
Analisemos o caso da rastreabilidade. A burocracia é enorme, o custo é relativamente alto, a operacionalidade do sistema é toda atravancada e ninguém sabe quando a fazenda será auditada para ter a chance de entrar na bendita lista Trace (a lista das fazendas aptas a atender a demanda da União Européia).
Ainda assim o pecuarista investe, de olho no ágio pago pelo “boi Europa”.
Mas depois de tudo isso, corre-se o risco do frigorífico não pagar ágio algum, ou derrubá-lo de 10% para os atuais 3% a 4%. Até aí, tudo bem, pois o risco faz parte do negócio. Quem define o ágio é o mercado, de acordo com demanda da Europa versus a oferta de boi rastreado. Não é?
Não, não é bem assim. Acompanhe o raciocínio.
Até pouco tempo atrás, o pecuarista com gado rastreado era responsável por dar baixa dos animais no banco de dados do Sisbov, assim que eles eram negociados. Se um pecuarista com gado na lista
Trace não conseguisse ágio junto ao frigorífico, ele poderia dar baixa pelo Modelo B.
Para quem não sabe, existe o Modelo A, que enquadra o “boi Europa” (tem que estar na lista
Trace), e o Modelo B, que atende outros mercados (não precisa estar na lista
Trace).
Ou seja, o pecuarista desprestigiado poderia vender o gado sem direito a ágio, mas também não era obrigado a passar de graça, ao frigorífico, a opção de enviar a carne para a União Européia, mercado que sabidamente remunera melhor.
Agora, porém, o Ministério da Agricultura transferiu ao frigorífico a obrigação de dar baixa dos animais na base nacional de dados do Sisbov. Ela não pode mais ser feita pelo pecuarista.
Na prática, se o pecuarista que tem gado na lista
Trace não quiser vender os animais com a chancela da Europa para um frigorífico que não paga ágio, ele é obrigado a negociar com quem atende apenas o mercado doméstico.
E aí existe toda a dificuldade de se conseguir negociar num mercado onde os grandes frigoríficos exportadores possuem cada vez mais representatividade. Sem contar que, para vender para frigoríficos pequenos, o pecuarista vai procurar picar os lotes, perdendo na negociação e aumentando os custos operacionais.
Criou-se, assim, um mecanismo que facilita a obtenção de “boi Europa” pelos frigoríficos, ao mesmo tempo em que se reduz a pressão para pagamento de prêmio ou ágio.
Quando a maior parte das fazendas hoje habilitadas estava buscando espaço na lista
Trace, a regra não era essa. Ela foi alterada no meio do jogo. Sacanagem.
Depois tem gente que sai dizendo que “o pecuarista não é consciente”, que “não faz sentido essa baixa adesão ao Sisbov”... E outras baboseiras do tipo.
Não é pra cair fora mesmo?
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