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Scot Consultoria

Os incêndios na Austrália e suas consequências para o mercado de bovinos de corte

Entrevista com o pesquisador, Tiago Alves Corrêa Carvalho da Silva

Terça-feira, 28 de janeiro de 2020 - 10h00
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Engenheiro agronômico pela Universidade de São Paulo (ESALQ/USP), bolsista de pós-doutorado na Escola de Meio Ambiente e Ciências Rurais. Se tornou PhD em ciência animal pela Universidade de Queensland. Atualmente vive na Austrália e tem trabalhado em inúmeros projetos de pesquisa na Austrália, Nova Zelândia e Brasil, em diversos assuntos relacionados à ruminantes e produção de pastagens.

Foto: pixabay.com


Na rodada de entrevistas da semana, nosso convidado é Tiago Alves Corrêa Carvalho da Silva, que abordou sobre os incêndios ocorridos na Austrália, seus impactos e sua correlação com os incêndios ocorridos no Brasil.

Tiago Alves é engenheiro agronômico pela Universidade de São Paulo (ESALQ/USP), bolsista de pós-doutorado na Escola de Meio Ambiente e Ciências Rurais. Se tornou PhD em ciência animal pela Universidade de Queensland. Atualmente vive na Austrália e tem trabalhado em inúmeros projetos de pesquisa na Austrália, Nova Zelândia e Brasil, em diversos assuntos relacionados à ruminantes e produção de pastagens.

Scot Consultoria: Quais os motivos para que os incêndios, que são naturais na Austrália, tenham se tornado tão catastrófico neste ano?

Tiago Alves: Grande parte da região afetada pelos incêndios tiveram uma pluviosidade abaixo da média histórica já em 2017 e 2018 (figura 1). Em 2019 esse problema se agravou, sendo que algumas dessas áreas bateram o recorde histórico. De maneira semelhante, a temperatura já vinha sendo mais elevada que a média desde 2017 aumentando ainda mais em 2019. Dessa forma, o efeito do tempo muito seco aliado a temperaturas recordes levou a condições que pioraram muito a ocorrência e intensidade dos incêndios.

Figura 1.
Variação da pluviosidade (parte superior) e temperatura anual (parte inferior) em relação à média histórica. Da esquerda para a direita temos os gráficos referente aos anos de 2017, 2018 e 2019.

Fonte: www.bom.gov.au

Scot Consultoria: Qual o número de áreas queimadas e morte de animas que se tem registrado até o momento?

Tiago Alves: A estimativa de área queimada encontra-se ao redor de 17 milhões de hectares, que é um número impressionante, mas está longe de ser o recorde. O maior incêndio florestal registrado aqui na Austrália ocorreu no período entre 1974 e 1975, e queimou 117 milhões de hectares, que representam 15% do total do território australiano. Porém, este evento ocorreu na área central do país, que é pouco povoada e não apresenta uma cobertura vegetal muito densa.

Diferentemente, este ano os incêndios ocorreram na área mais populosa e com uma cobertura vegetal de florestas de eucalipto, que quando secas, se tornam combustível para a ocorrência de incêndios intensos.

As estimativas existentes em relação ao número de animais de produção (bovinos, equinos, ovinos etc..) mortos mostram uma variação muito grande, o que gera dúvida em relação a qualidade dessas informações. Alguns apontam para morte de 13 mil animais de produção no estado de New South Wales, outros relatam mais de 100 mil ovelhas apenas em Kangaroo Island e outros 25 mil animais no continente, enquanto que, artigos mais recentes já abaixam a estimativa para cerca de 32 mil animais mortos em Kangaroo Island. Ou seja, ainda não é possível ter uma boa estimativa e provavelmente vai levar algum tempo até que essas perdas sejam contabilizadas. Apesar disso, devido a predominância na região, é provável que o número de ovinos mortos seja maior que o de bovinos, e que a quantidade de bovinos mortos pelos incêndios seja bem inferior ao registrado durante a enchente ocorrida em fevereiro de 2019 que matou 600 mil cabeças de gado no norte de Queensland.

Scot Consultoria: Quais as principais consequências do incêndio para o mercado de bovinos de corte?

Tiago Alves: Contrário ao que algumas análises estão apostando, não acredito que os incêndios em si vão causar algum abalo significativo no mercado de bovinos. Pois esse problema, apesar de devastador, tem um efeito local, o que proporcionalmente não representa uma grande perda de animais quando comparado a outras tragédias como a enchente de 2019. Porém, acredito que os fatores que causaram os incêndios extremos esse ano (seca prolongada e temperaturas altas) tenham um efeito muito mais significativo e devem ser considerados.

Nos últimos dois anos houve uma alta considerável na porcentagem de fêmeas abatidas (figura 2). Desde fevereiro de 2018 a proporção de fêmeas encontra-se acima da média histórica e em 2019 esses valores foram os maiores já registrados desde 1976. Além disso, os dados mais recentes mostram que até agosto de 2019 já se havia registrado um aumento de 7% no número total de cabeças abatidas em relação ao total de 2018. O aumento na participação de fêmeas e do volume de animais abatidos ocorrem em decorrência da tentativa dos produtores de diminuir a taxa de lotação e liquidar o estoque de animais durante períodos de seca. Esses fatores, estão causando uma contração no rebanho, que agora retorna para a casa de 25 milhões de cabeça, patamar esse que é igual ao observado nos anos 90.

Figura 2.
Porcentagem da participação de fêmeas no número total de bovinos abatidos. Os valores máximo, médio e mínimo foram calculados para cada mês utilizando a série histórica com início em 1976.
Fonte: https://www.abs.gov.au/AUSSTATS/abs@.nsf/DetailsPage/7218.0.55.001Nov%202019?OpenDocument

Os fatores mencionados estão gerando uma expectativa de subida de preços assim que o regime de chuvas se normalize, e a demanda por animais de reposição aumente. Uma análise feita pela Mercado Consultoria, estimou os preços médios do indicador EYCI de 553, 600 e 690 Ac/kg CWT (valores que representam 238, 259 e 298 R$/@ com o dólar australiano a R$2,88) durante o ano de 2020 para as situações de prolongamento da seca, pluviosidade igual a média histórica ou pluviosidade acima da média histórica respectivamente.

Scot Consultoria: Você acredita que o incêndio na Amazônia foi explorado de maneira política? Esse efeito também ocorreu na Austrália?

Tiago Alves: Acredito que sim, tenho a impressão de que no caso brasileiro a mídia tentou gerar uma relação direta entre os incêndios na Amazônia e o início do atual governo. O primeiro ministro Scott Morrison, também foi atacado em decorrência dos incêndios, porém de maneira menos intensa do que observamos no Brasil. As razões pelas quais eu acredito que a situação da Amazônia foi explorada politicamente devem-se aos seguintes pontos:

1. Tanto proporcionalmente quanto em números absolutos, a Amazônia não foi o bioma mais afetado pelas queimadas de 2019. De acordo com os dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o bioma Amazônico apresentou o segundo menor incremento (67%) em área queimada quando comparado ao ano de 2018, perdendo apenas para a mata atlântica que teve um aumento de 46%. Proporcionalmente o bioma que teve o maior aumento de área queimada em relação a 2018 (573%) e também em relação a média dos últimos 10 anos (204%) foi o Pantanal. Enquanto as queimadas da Amazônia representaram 1,7% do território amazônico, as queimadas de 2019 destruíram 13,9% do Pantanal. Além disso, a área total queimada na Amazônia em 2019 foi de 77.501km2, enquanto no cerrado foi de 148.646km2. Em vista disso, fica claro que em relação a 2018 houve um aumento significativo de queimadas de todos os biomas brasileiros, principalmente no Pantanal e que a área queimada no cerrado foi o dobro da área Amazônica. Apesar disso, pouco ou nada se escuta na mídia sobre as queimadas em outros biomas.    

2. A área desmatada por ano na Amazônia legal vem aumentando desde 2014. O principal motivo apontado como causador de áreas queimadas na Amazônia foi o crescimento de 29.5% da área desmatada em relação ao ano de 2018. De fato, os dados históricos apontam para uma associação positiva e significante (R2=0.52, P=0.001, n=16) entre área desmatada e a queimada na região da Amazônia legal (figura 3). 

Figura 3.
Relação entre área anualmente desmatada e queimada na região da Amazônia legal. A análise utilizou dados do período de 2004 a 2019.

Fontes: http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/aq1km/
http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes

Porém, é importante ressaltar que não é de hoje que a área desmatada na Amazônia vem aumentando. Na figura gerada (figura 4), com dados do Projeto PRODES, podemos observar que existe uma tendência de crescimento da área desmatada desde 2014. Nos últimos seis anos, excluindo os anos de 2017 e 2014, todos os outros anos apresentaram incrementos que variaram de 8,4 (2018) a 27,1% (2016) em relação ao ano anterior. Ou seja, de fato houve um aumento na área desmatada na Amazônia em 2019 e este evento está positivamente associado com área anualmente queimada, porém, o incremento na área desmatada em 2019 (29,5%) não foi muito diferente dos dados observados em 2016 (27,5%), 2015 (23,8%) ou 2013 (28,8%).

Figura 4.
Área anualmente desmatada na Amazônia legal entre o período de 2004 a 2019.

Fonte: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes

3. Acredito que assim como no caso australiano, as mudanças de temperatura e pluviosidade no Brasil ajudem a explicar parte deste problema. Essa afirmação está baseada primeiramente no fato de que todos os outros biomas brasileiros sofreram aumento na área afetada por queimadas em 2019. O que aponta para uma desconexão entre causa e efeito. Fosse o desmatamento a principal causa das queimadas, esse aumento não deveria existir em biomas onde a ocorrência de desmatamento não é expressiva. Contudo, isso não quer dizer que o desmatamento não possa ser um dos fatores que contribuam para as queimadas no bioma Amazônico como apontado na figura 3.

Segundo as séries históricas brasileira de variação de pluviosidade (figura 5) e temperatura (figura 6) anuais apontam para um incremento em temperatura e diminuição na pluviosidade na região centro-norte a partir de 2017. Mudança essa que durante a última década foi mais expressiva em relação à temperatura do que pluviosidade. Infelizmente os dados de 2019 ainda não se encontram disponíveis. Porém, baseado em observações empíricas, posso afirmar que pelo menos no Pantanal, a ocorrência das queimadas desse último ano esteve associada com um período de estiagem mais longo que o normal.

Vale ressaltar que esta é uma análise sem crivo científico, porém construída em cima em dados oficiais disponíveis ao público. O objetivo aqui não é de fazer nenhuma apologia ao desmatamento (principalmente ilegal), mas de levantar uma discussão em relação aos fatores que contribuíram para aumento de queimadas em 2019.

Figura 5.
Variação da pluviosidade anual em relação à média histórica entre os anos de 1965 e 2018.

Fonte: Inmet

Figura 6.
Variação da temperatura anual em relação à média histórica entre os anos de 1965 e 2018.

Fonte: Inmet


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