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Scot Consultoria

A pecuária australiana apresentada por um brasileiro


Sexta-feira, 24 de junho de 2016 - 06h00

Tiago Alves Corrêa é engenheiro agrônomo formado pela Esalq - USP. Atualmente é aluno de doutorado na University of Queensland (Austrália) e atua na área de nutrição e fisiologia de bovinos. Falou com a Scot Consultoria sobre as principais diferenças da pecuária no Brasil e na Austrália e o que devemos aprender com o sistema australiano.


 


Foto: Tiago Alves Corrêa(tiago.alvescorrea@uq.net.au)


Scot Consultoria: O senhor tem trabalhado na Austrália há alguns anos, comente sobre sua pesquisa e trabalho que tem feito no país.


Tiago Alves Corrêa: O foco da nossa pesquisa é o ganho compensatório e sua relação com o desenvolvimento esquelético de bovinos. O ganho compensatório, que também é bem conhecido pelos produtores brasileiros, basicamente trata-se de um ritmo de crescimento acelerado após um período de restrição alimentar. Na prática, esse processo se evidencia na transição do período seco para o período chuvoso, ou na entrada do confinamento quando os animais são oriundos de pastagens mal manejadas.


Aqui na Austrália, esse fenômeno tem um peso maior no sistema devido às condições climáticas do país. A pluviosidade média anual, nas áreas onde se encontra a maior parte do rebanho situa-se na faixa de 300 a 800mm por ano. Além disso, o custo de suplementação aqui é maior do que no Brasil, o que geralmente limita o acesso do produtor a essa tecnologia. Como a restrição no período seco passa a ser quase que um fator inerente desses sistemas, nosso objetivo é entender melhor como se dá esse processo, para que possamos propor técnicas para melhor manejá-lo. Este fenômeno já vem sendo estudado há mais de 100 anos. Porém, pouco se entende sobre os mecanismos fisiológicos que possibilitam sua ocorrência.


Nossas pesquisas tem o diferencial de unir alguns conceitos desenvolvidos por pesquisadores focados em medicina humana e aplicá-los aos bovinos. Durante o processo de restrição alimentar, as mudanças fisiológicas que afetam humanos e bovinos são semelhantes. Ao longo dos anos as duas linhas de pesquisa divergiram com seus propósitos. Em vista disso, nosso projeto une conceitos dessas áreas distintas para melhor entender esse fenômeno. Com isso, esperamos não somente desenvolver recomendações práticas para os produtores que enfrentam esse desafio todo ano, mas também desvendar alguns aspectos de fisiologia básica que possam nos ajudar a esclarecer os mecanismos que possibilitam a ocorrência desse fenômeno.  


Scot Consultoria: O que você destacaria como as principais diferenças entre a nossa pecuária e a australiana?


Tiago Alves Corrêa: O primeiro ponto que chama atenção é o fato que comentei anteriormente em relação à pluviosidade. Além, disso o custo da mão-de-obra aqui está muito acima dos encarados pelos produtores brasileiros. Esses fatores fizeram surgir por volta dos anos 60, quando se aboliu a diferença de salário entre brancos e aborígenes, um método de manejo que é muito comentado entre os produtores brasileiros como sendo sinônimo de riqueza ou extravagância, que é a utilização de helicópteros para o manejo dos animais. Na realidade, a utilização de helicópteros é justamente a maneira que eles encontraram de diminuir o custo por animal de cada recolhida de gado.


Para entender melhor essa situação, vou utilizar alguns dados levantados pelo Departamento de Indústrias Primárias e Pescados do Território do Norte, divulgado online. Segundo esse levantamento, o tamanho médio das propriedades desse território é de 279,4 mil ha, sendo que o tamanho médio de cada invernada é de 10 mil ha. O rebanho médio por propriedade é de 11.029 cabeças e a média de funcionários é de três permanentes e cinco funcionários temporários. Em média, um trabalhador rural ganha por mês aproximadamente R$5,2 mil. Já o custo da hora de voo de um helicóptero gira em torno de 450,00 dólares australianos e em uma hora de serviço é capaz de cobrir uma área de 1,2 mil ha. Ou seja, nesse ambiente fica muito mais barato e rápido pagar um helicóptero para recolher os animais do que ter um pelotão de vaqueiros para fazer o mesmo serviço.


Além disso, outro ponto curioso é a baixa frequência de manejo realizada em comparação com nossos sistemas. Em sistemas de cria no norte australiano, geralmente são realizados dois manejos por ano, sendo o primeiro em maio-junho e o segundo em setembro-outubro. Durante esses manejos, é feita a desmama dos bezerros e, pela primeira vez os bezerros recebem algum tratamento (exemplo: vermífugo, vacina, carimbo ou brinco de identificação). Isso se torna possível, principalmente devido ao fato de não se ter o problema de miíases por aqui. Tem-se também uma consciência muito grande em descartar animais com temperamento agressivo e de se realizar doma nos bezerros durante a desmama. Esse processo se desenvolve de maneira semelhante à doma racional de equinos e gera um bezerro que já na desmama, está mais acostumado e receptível ao manejo humano.


Scot Consultoria: Em uso de tecnologia, como é a pecuária? Assim como no Brasil, há uma grande amplitude de níveis tecnológicos, ou em geral, os sistemas variam menos quanto à intensificação?


Tiago Alves Corrêa: Sim, existe uma grande variação de adoção de tecnologias. Esta se dá de acordo com as características edafoclimáticas de cada região, além da proximidade de determinados mercados. A primeira grande divisão existente é a separação entre Austrália do norte e Austrália do sul, que é uma divisão teórica, feita no sentido longitudinal próximo ao trópico de capricórnio. De forma geral o sul é mais intensificado. Alguns dados levantados pelo governo australiano apontam que as propriedades no sul são menores (42,0% tem de 400 a 1.600 animais), tem maiores taxas de lotação (0,25 vs 0,10 UA/ha) e apresentam maiores taxa de desfrute (46,0% vs 30,0%).


A terminação de bovinos em confinamento representa 25,0% dos bovinos abatidos. Cerca de 85,0% destas operações estão concentradas próximas às áreas produtoras de grãos no sudeste do estado de Queensland e nordeste de Nova Gales do Sul. O transporte de insumos para agropecuária é de forma geral feita por caminhões, em vista disso, a adoção de tecnologias como a suplementação a pasto diminui de acordo com a distância das áreas produtoras de grãos.


Scot Consultoria: As exportações de bovinos vivos são relevantes na região onde você está? Ocorrem atritos entre a indústria local e os exportadores como no Brasil?


Tiago Alves Corrêa: Atualmente resido no estado de Queensland (QLD), mas durante meu trabalho de campo morei no Território do Norte (TN) por nove meses.


Em 2015 a Austrália exportou 1.377.492 animais, sendo 45,0% e 25,0% desse total oriundos do TN e QLD, respectivamente. No TN, esse modelo de comercialização é o principal adotado pelos pecuaristas, principalmente devido à distância das regiões produtoras de grãos e dos frigoríficos, o que inviabiliza a terminação; além da proximidade com o sudeste asiático, que representa 83,0% do volume de vendas.


Recentemente em 2015 a AACo (Companhia Australiana de Agricultura) inaugurou um abatedouro no sul da cidade de Darwin focado em boxed meat (recorte para indústria de processamento), o que começa a gerar novas oportunidades de negócios para os produtores locais, principalmente para bovinos de descarte. Já em QLD os produtores dispõem de mais opções, tendo o porto de Townsville para exportação de bovinos vivos e diversas plantas frigoríficas.


Os maiores desafios encontrados nesse setor estão relacionados ao bem-estar animal, tanto na viagem quanto no processamento desses bovinos nos países de destino. Em 2011 a exportação de bovinos vivos foi suspensa por um mês, após o surgimento de um vídeo mostrando o abate de animais oriundos da Austrália em condições irregulares na Indonésia.


Desde então, a indústria tem investido na conscientização e fiscalização de seus clientes, para que estes se enquadrem dentro das normas estabelecidas pela ESCAS (Sistema de Garantia da Cadeia de Suprimentos para Exportação).


Scot Consultoria: O que poderíamos aprender com a pecuária australiana? E o que poderíamos ensiná-los no que diz respeito à produção de carne?


Tiago Alves Corrêa: Antes de vir para a Austrália, minha concepção era de que nossos sistemas de produção eram de forma geral “atrasados”, e que chegando aqui me depararia com um novo mundo. Hoje vejo que não perdemos em técnica de produção ou conhecimento, e que, em determinadas áreas estamos mais avançados, como por exemplo as técnicas de manejo e fertilidade de pastagens tropicais, que poderiam ser aplicadas em diversos cenários por aqui.


Porém, acredito que temos muito que aprender com a estrutura organizacional da pecuária australiana. Três modelos que acredito que deveriam nos servir de exemplo são: 1) O sistema de rastreabilidade (Sistema de identificação da pecuária nacional) que abrange todo o rebanho nacional de forma simples e eficaz, diferentemente do nosso SISBOV; 2) O MLA (Meat & Livestock Australia) que é uma instituição privada financiada pelos produtores, mas que opera em colaboração com o governo. Sua atuação é de pesquisa e desenvolvimento de mercados e tecnologias para a carne australiana e 3) E os DPIF’s (Departamento de Indústrias Primárias e Florestas) que atuam como centros de pesquisas regionais focados em ciência aplicada, levando informações técnicas de uma forma mais direta e com uma conexão maior entre os pesquisadores e produtores rurais.


Além disso, realiza-se um trabalho muito importante de levantamento de dados e caracterização dos sistemas de produção. O que direciona o foco das pesquisas para os problemas mais relevantes de cada determinada região.



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