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A lei do Pantanal


Sexta-feira, 1 de setembro de 2023 - 06h00

Advogado (OAB/MS 16.518, OAB/SC 57.644) e Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. É membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e membro das comissões de Direito Ambiental e Direito Agrário da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco.



No diário oficial do estado de Mato Grosso do Sul, do dia 16/8/23, foi publicado o Decreto Estadual nº 16.248 que suspendeu a concessão de licenças ou autorizações de supressão vegetal para uso alternativo do solo na área de uso restrito da planície pantaneira e do bioma pantanal. Em outras palavras, suspendeu licenças para desmate no Pantanal sul-mato-grossense.


Para aqueles que já haviam tirado suas licenças em data anterior ao decreto, nada altera, poderão continuar com a supressão já autorizada, em respeito ao ato jurídico perfeito.


Importante ainda comentar que a suspensão também foi aplicada ao corte de árvores nativas isoladas (CANI) e que não se aplica ao caso de limpeza de pastagens nativas e exóticas em locais que antes eram, comprovadamente, áreas de campo limpo e desde que sejam caracterizadas as espécies invasoras descritas no decreto: as nativas cambará, pateira, pimenteira, aromita, lixeira, canjiqueira, entre outras e as exóticas regeneradas ou invasoras, com circunferência na altura do peito (CAP) inferior a 32 cm (trinta e dois centímetros).


O decreto considera como motivo e como condição para suspensão das licenças, a edição de uma “lei estadual” que deverá regulamentar a orientação do artigo 10 do Código Florestal. Em outras palavras, bastaria transportar as atuais regras normativas de um decreto para uma lei.


O referido artigo do Código Florestal, por sua vez, diz o seguinte:


“Nos pantanais e planícies pantaneiras, é permitida a exploração ecologicamente sustentável, devendo-se considerar as recomendações técnicas dos órgãos oficiais de pesquisa, ficando novas supressões de vegetação nativa para uso alternativo do solo condicionadas à autorização do órgão estadual do meio ambiente, com base nas recomendações mencionadas neste artigo”.


Para esclarecer juridicamente esta nova situação aos pantaneiros, a Constituição Federal, lei de maior hierarquia sobre as demais leis estaduais e federais, determina o seguinte no artigo 225, §4º:


“A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.


Este é o primeiro ponto gerador da polêmica suspensão, ou seja, a Constituição Federal orientou regulamentação do pantanal por lei, o que foi feito por Decreto no estado do Mato Grosso do Sul.


E o Código Florestal, como lei que é, não fez regulamentação específica do bioma pantanal, mas apenas orientou sobre a possibilidade de “exploração ecologicamente sustentável” e supressões por meio de autorização do órgão ambiental e recomendação dos órgãos oficiais de pesquisa.


Ficou uma lacuna na promulgação de uma lei com regulamentação do bioma pantaneiro, como foi feito na lei da Mata Atlântica, Lei Federal nº 11.428/2006, o que não significa que o bioma pantaneiro estava desprotegido, muito pelo contrário.


Explorando então estas lacunas, a polêmica passou a ser inflamada pela Advocacia Geral da União junto ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que em 17/07/23, emitiu o Parecer nº 00349/2023, que em suas conclusões recomendou que “o Decreto Estadual nº 14.273/2015, do Mato Grosso do Sul, deve ser revisado com urgência”.


O parecer da AGU, ao analisar a legislação sul-mato-grossense no que diz respeito à supressão, parte de uma equivocada premissa de que “o emprego, pelo Estado do Mato Grosso do Sul, de critérios inconsistentes ou desprovidos do devido respaldo científico consubstancia uma também questão jurídica”, o que será explicado logo mais e toma por base uma nota técnica do MMA (1349/2023), de que deveriam ser reavaliados os parâmetros da norma estadual a cada cinco anos.


Em seguida, inflamando ainda mais a questão, sobreveio a nota técnica 1520/2023 do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, trazendo dados para corroborar com sua conclusão de que haveria “necessidade imperativa de se estabelecer critérios comuns, em todo o Pantanal, para a realização de estudos técnicos que visam fundamentar a exploração ecologicamente sustentável” prevista no Código Florestal, em seu artigo 10.


A nota técnica citada sugere, também de maneira equivocada e maliciosa, que o pantanal deveria ser regulamentado por “resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente no âmbito do colegiado”, formando então o contexto necessário para polemizar as atividades agropecuárias pantaneiras a nível nacional, mesmo que sem a inclusão de informações acerca do eixo socioeconômico do bioma, o que é importantíssimo ao tratar da exploração ecologicamente sustentável, na mais ampla concepção da sustentabilidade.


A intenção é clara, ignorar legislações locais para permitir uma intervenção ambientalmente radical do CONAMA, disputando espaço com os governos estaduais em suas competências, agindo em desconformidade com a Constituição Federal e com o Código Florestal que, em momento algum permitem regulamentação do pantanal por resolução do CONAMA, mas em verdade, por lei.


Existem recomendações da Embrapa no sentido de que exploração ecologicamente sustentável é aquela que obedece a alguns critérios como: manutenção de biodiversidade, manutenção de processos ecológicos chave (inundações), manutenção de serviços ecossistêmicos, manutenção de áreas representativas de tipos de vegetação originais, possibilidade de equilíbrio ecológico com alterações na vegetação e permissão atividades agropecuárias.


As recomendações do Código Florestal para a exploração ecologicamente sustentável e para supressão de vegetação nativa, são duas: 1) recomendações técnicas dos órgãos oficiais de pesquisa; e 2) autorização do órgão estadual do meio ambiente.


Vale lembrar também que foi realizada uma tentativa de regulamentação do bioma pantaneiro por meio do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 750/2011, o qual viria a regulamentar o Pantanal como um todo, não apenas em um ou outro estados, que teve por fim o seu arquivamento em 21/12/18 com o final daquele período legislativo, tendo sido realizadas audiências e discussões ao longo de seus quase sete anos de tramitação pelo Congresso.


O PLS 750/2011 resolvia a questão dos órgãos oficiais de pesquisa esclarecendo no artigo 9º que:


“Para fins de apoio técnico-científico à conservação e uso sustentável do Pantanal, são consideradas como instituições oficiais de pesquisa:


I - Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal – INPP;


II - Universidades federais e estaduais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; e


III - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA Pantanal”.


A exploração ecologicamente sustentável, por sua vez, neste mesmo projeto de lei, orientava que os usos do bioma seriam definidos pelos órgãos oficiais de pesquisa devendo “observar os diferentes macrohabitats do bioma pantanal podendo indicar restrições ao funcionamento de determinadas atividades”.


Há também uma tentativa de regulamentação sobre a conservação e o uso sustentável do Bioma Pantanal na Câmara dos Deputados, por meio do PL nº 9950/2018, em andamento, em fase de recebimento de emendas parlamentares.


Conforme comentado, o estado do Mato Grosso do Sul, regulamentou o uso do Pantanal, através do Decreto Estadual nº 14.273/2015, sendo importante perceber que a suspensão anunciada, não foi de todo o decreto, mas somente das novas supressões a partir de 16/08/23, quando foi publicado o Decreto Estadual nº 16.248.


Apresentando em maiores detalhes a legislação pantaneira sul-mato-grossense, o decreto estadual citado, reconhece, de maneira sutil e indireta, a exploração ecologicamente sustentável, sem mencioná-la expressamente ao dizer no seu artigo 4º que:


“A utilização da Área de Uso Restrito da planície inundável do Pantanal não poderá comprometer as funções ambientais das áreas que as compõem, quais sejam, as de: I) ­preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade; II)­ facilitar o fluxo gênico de fauna e flora; III) proteger o solo; e IV)­ assegurar o bem-estar das populações humanas locais.”.


No caso das supressões, o decreto estadual não determinava que as supressões fossem concedidas de maneira genérica, mas de acordo com o artigo 13, é necessário, além de comprovar a inscrição no CAR, comprovar também ausência de infrações administrativas, realizar processo de licenciamento e demonstrar manejo do gado nas pastagens nativas conforme recomendações técnicas; e a “relevância ecológica”, uma criação normativa sul-mato-grossense, recomendada pela Embrapa antes da publicação deste decreto.


Segundo a regra de relevância ecológica para supressão, devem ser resguardadas amostras representativas da diversidade dos tipos de vegetação, florestais/cerrados (50%) e campestres (40%), portanto, uma legislação exemplar em relação à produção sustentável.


O decreto também proíbe alteração dos regimes hidrológicos com a construção de diques, canais, barragens e outros, exceto tanques, poços e utilidade pública. Por outro lado, traz curiosas proibições como do pernoite de gado em salinas pantaneiras, uma regra que acreditamos apresentar dificuldade em seu cumprimento.


E de acordo com este mesmo decreto comentado, a pecuária é considerada “atividade de baixo impacto ambiental para o bioma como um todo”, também considerando recomendações da Embrapa e da deliberação do Conselho Estadual de Controle Ambiental (CECA) nº 31/2015.


Antes da edição deste decreto, a Embrapa Pantanal emitiu duas notas técnicas, respectivamente em 18/10/13 e 14/08/14, equilibrando questões de sustentabilidade, como o risco de incêndios se houver remoção total do gado com o consequente acúmulo de matéria vegetal combustível por falta de herbivoria, o que deu origem ao texto do artigo 9º, §2º, do mesmo decreto, autorizando pastoreio extensivo em áreas de reserva legal, com intuito de reduzir tal biomassa vegetal.


A nota técnica até citou casos como da fazenda Nhumirim, com histórico de incêndios intensos motivados pela exclusão completa do gado.


E afinal, o que representa o Pantanal para a sustentabilidade?


Sob o ponto de vista ambiental, uma bacia hidrográfica – do Paraguai – que corresponde a 4,3% do território brasileiro; o menor déficit de vegetação nativa em APPs e RLs entre os biomas, sendo a menor parte no Mato Grosso do Sul (Fonte: Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Rio Paraguai, março/2018); além de uma infinidade de serviços ecossistêmicos.


Sob o ponto de vista social, é a segunda menor densidade demográfica do país, apresentando 6,10 hab/km² na planície pantaneira, onde moram 2,16 milhões de pessoas na Região Hidrográfica do Paraguai, 87% destas pessoas em áreas urbanas (Fonte: IBGE); uma região de grande idiossincrasia e traços culturais, ou seja, uma característica comportamental ou estrutural peculiar do povo pantaneiro, merecendo toda proteção e reconhecimento enquanto “povos e comunidades tradicionais”, previsto no Decreto Federal nº 6.040/2000, onde o uso do território e recursos naturais são fundamentais para reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, com conhecimentos transmitidos pela tradição.


E sob o ponto de vista econômico, é uma região que abriga aproximadamente 4 milhões de cabeças de gado, segundo a Embrapa Pantanal, distribuídas entre quase 8 mil imóveis rurais com 13,7 milhões de hectares segundo o CAR.


Segundo consta em material divulgado pela Embrapa Pantanal em parceria com a WWF Brasil, chamado “Pecuária de Corte no Pantanal”: “Não há dúvida de que a conservação dessas paisagens está atrelada ao manejo adequado dos recursos naturais realizado pelo homem pantaneiro. Ou seja, o modelo de pecuária bovina extensiva chegou a um “equilíbrio” entre o gado e a natureza”.


E segundo a WWF, a tradição pantaneira possui mais de 200 anos, destacando-se a “pecuária orgânica certificada” como uma alternativa sustentável para a região. A afirmação da WWF se confirma nos livros do historiador Hildebrando Campestrini.


Seguindo o exemplo do pesquisador Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray (2017, Pantanal Legal: A Tutela jurídica das áreas úmidas e do Pantanal Mato-grossense), que em seu livro traz interessantes sugestões para a regulamentação do Pantanal, deveria ser proposta uma definição expressa de “fazenda pantaneira sustentável” e de “fazendeiros tradicionais” no seguinte sentido:


XVII - fazenda pantaneira sustentável - FPS: imóvel rural localizado na planície pantaneira onde sejam adotadas práticas conservacionistas, admitido o uso sustentável dos recursos naturais e o exercício de atividades econômicas tais como, o ecoturismo e a pecuária extensiva, com respeito às fitofisionomias, aos macrohabitats e à conservação dos processos hidro-ecológicos que regem o ecossistema Pantanal. Os requisitos para qualificação de uma propriedade rural como fazenda pantaneira sustentável e sua certificação serão definidos na forma do regulamento, ouvidos os órgãos oficiais de pesquisa;


XVIII - fazendeiros tradicionais: aqueles que praticam o uso sábio, realizando uma pecuária extensiva, mantendo a diversidade dos macrohabitats e valores não comerciais pelo tipo de manejo que praticam;


A manutenção de todo este rebanho no bioma Pantanal, evidentemente, representa uma enorme habilidade dos produtores pantaneiros, sejam pequenos, médios ou grandes, pois diferente de muitos outros biomas, a produção agropecuária pantaneira exige respeito ao meio ambiente, sob a mira de um exigente mercado consumidor, motivo pelo qual o manejo de pastagem para garantir alimentação suficientemente nutritiva é fundamental.


Caso contrário, com uma legislação que inviabilize a disponibilidade de alimentação adequada para todo este rebanho, os produtores incorrem até mesmo em penalidades criminais por maus-tratos, como em 2022, quando a fiscalização autuou em R$330 mil um produtor rural da região de Iguatemi/MS, que deixou 285 animais sem alimentação, além de outros quase 80 animais mortos ou incapacitados.


Desde 2003, o Mato Grosso do Sul já possui o Programa de Avanços na Pecuária (PROAPE), criado por lei para promover o desenvolvimento da pecuária sul-mato-grossense, com produtos de qualidade, resultantes de cadeias produtivas competitivas, socialmente justas, ambientalmente corretas e economicamente viáveis.


Carne orgânica, carne sustentável, protocolo ABPO, processos de certificação, incentivos fiscais, cujo lema das políticas públicas estaduais é carne vermelha de produção verde, movimentam um mercado efetivamente sustentável, remunerando melhor o produto pantaneiro em relação à outras categorias de produtos, até mesmo nobres e até mesmo em relação aos preços mundiais.


Recentemente, o projeto inovador “REDD+ Serra do Amolar” ganhou a primeira certificação de crédito de carbono do bioma, com atividades de conservação em uma área de 135 mil hectares.


E por fim, em nossa antiga e esquecida Lei da Política Agrícola, vigente há mais de trinta e dois anos, a Lei Federal nº 8.171/1991, temos como pressupostos garantidos pelo artigo 2º, a atividade agrícola “onde os recursos naturais envolvidos devem ser utilizados e gerenciados, subordinando-se às normas e princípios de interesse público, de forma que seja cumprida a função social e econômica da propriedade”.


E em maior evidência do que a antiga política agrícola, temos o Código Florestal de 2012, que no seu artigo 1º-A, Parágrafo Único, orienta que tal legislação, “Tendo como objetivo o desenvolvimento sustentável”, deve atender a alguns princípios, dentre eles (inciso II):


II - reafirmação da importância da função estratégica da atividade agropecuária e do papel das florestas e demais formas de vegetação nativa na sustentabilidade, no crescimento econômico, na melhoria da qualidade de vida da população brasileira e na presença do país nos mercados nacional e internacional de alimentos e bioenergia;


Sendo assim,


Saudações pantaneiras!



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