• Domingo, 28 de abril de 2024
  • Receba nossos relatórios diários e gratuitos
Scot Consultoria

Qual ministério decide a demarcação?


Sábado, 21 de janeiro de 2023 - 08h00

Advogado (OAB/MS 16.518, OAB/SC 57.644) e Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. É membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e membro das comissões de Direito Ambiental e Direito Agrário da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco.


Foto: Scot Consultoria


No primeiro dia de expediente do novo/velho Governo, foi publicada, em 01/01/2023, a Medida Provisória no. 1154/2023, estabelecendo a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, a qual deverá ser convertida em Lei Federal no prazo de até 60 dias prorrogáveis por mais 60, trazendo consigo uma estrutura inovadora diante da criação, extinção e modificação de diversos ministérios.


Com relação às questões fundiárias, principalmente nas demarcações de terras indígenas foram promovidas modificações significativas em ministérios, ao exemplo da modificação de competências do Ministério da Justiça e a criação do Ministério dos Povos Indígenas.


Qual o cerne da discussão? A demarcação das terras chamadas de “tradicionalmente ocupadas”, que também são objeto da discussão do marco temporal no Supremo Tribunal Federal.


Quanto aos tipos de terras indígenas definidas por lei, é assunto que já foi comentado em outros quatro texto escritos para esta coluna entre março/2019 e junho/2019 (listados ao final deste artigo), esclarecendo que o artigo 17 do Estatuto do Índio (Lei Federal no. 6.001/1973) registra três tipos de terra: 1) as "tradicionalmente ocupadas"; 2) as "áreas reservadas"; e 3) as “terras de domínio das comunidades indígenas”.


As terras indígenas chamadas de “tradicionalmente ocupadas” são as mais polemizadas, diante da discussão “temporal” da ocupação, são as terras em que se discutem questões antropológicas e de ancestralidade, são indicadas pelo art. 231 da Constituição Federal.


Chamo atenção à expressão “competindo à União demarcá-las”, onde se deve seguir um determinado critério de demarcação, cujo procedimento é descrito pelo Decreto Federal no.1.775/1996, responsável por orientar apenas a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio.


Analisando os artigos 35 e 42, inciso III da nova medida provisória (1.154/2023), verifica-se que as atribuições de “reconhecimento, demarcação, defesa, usufruto exclusivo e gestão das terras e dos territórios indígenas” pertencem exclusivamente ao novo ministério (povos indígenas), em contradição com a competência estabelecida ao Ministério da Justiça desde 1996 pelo Decreto Federal no. 1.775, em seu artigo 2o., §10, principalmente no que diz respeito à declaração de limites e demarcação, (des)aprovação da identificação das terras indígenas.


Da mesma forma, equivocadamente o fez o Decreto Federal no. 11.348/2023, também sancionado em 01/01/2023, ao criar a estrutura regimental, natureza e competências do Ministério da Justiça, sem qualquer menção à referida competência do artigo 2o., §10 do Decreto Federal no. 1.775/1996.


Por sua vez, o Decreto Federal no. 11.355/2023, de 01/01/2023, que criou o Ministério dos Povos Indígenas, criou não apenas o Ministério, como outra competência conflitante com o artigo 2o., §10 do Decreto Federal no. 1.775/1996, ao determinar que cabe ao novo Ministério o reconhecimento, demarcação, defesa, usufruto exclusivo e gestão das terras e dos territórios indígenas (art. 1o., III).


Estas questões relembram ainda uma antiga discussão, protocolada no Supremo Tribunal Federal em janeiro/2014 pelo Estado de Santa Catarina, a Ação Cível Originária (ACO) no. 2323, ainda sem julgamento, onde se decidirá sobre a falta de vinculação constitucional da Funai aos processos de demarcação pelo fato de que o artigo 231 orienta que compete “à União demarcá-las” e não necessariamente a Funai – e agora o Ministério dos Povos Indígenas – argumentando também que não se deve aceitar exclusividade de tais órgãos representativos por conflito de interesses, já que possuem dever legal de defesa dos interesses indígenas (art. 1º e incisos, Lei Federal no. 5.371/1967).


Além do mais, órgãos de proteção ao índio (Funai e Ministério dos Povos Indígenas) deveriam estar tecnicamente impedidos de conduzir processos de demarcação, pois além de ter interesse institucional na causa, tem por dever assistir aos índios, não podendo e nem devendo ser imparciais, de forma que buscarão sempre a demarcação e em maior extensão possível, para cumprir suas funções legais institucionais, sendo que deveriam apenas participar do processo por obrigação legal.


Segundo o Decreto Federal no. 11.355/2023, o Ministério dos Povos Indígenas contará com uma secretaria de direitos ambientais e territoriais com competência para planejar, promover, coordenar e monitorar as políticas de demarcação territorial (art. 14, I) e um departamento de demarcação territorial com competência para analisar os processos de demarcação de terras indígenas encaminhados pela Funai (art. 15, II), contudo, sem nada dizer sobre a decisão de mérito do processo de demarcação.


O panorama de discussão das áreas a serem demarcadas novamente volta aos mesmos dilemas de outrora, já que, segundo a leitura que se faz da Constituição Federal (art. 231, Parágrafo Único), apenas as terras ‘tradicionalmente ocupadas’, não as áreas reservadas e nem as colônias agrícolas indígenas, teriam uma destinação específica para “atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.


E nestas áreas, consideradas de “posse imemorial” ou de preservação cultural, áreas em que costumeiramente ocorrem as invasões e infindáveis debates jurídicos, normalmente são áreas onde se estabeleceu o uso agropecuário, com profunda alteração de uso e ocupação do solo, praticamente sem possibilidade de conversão para área de usos e costumes tradicionais indígenas, perdendo o sentido de demarcação sob a modalidade tradicionalmente ocupada para posse imemorial.


Se uma área já consolidada em uso agropecuário é reivindicada como terra tradicionalmente ocupada (posse imemorial), confunde-se com área de colônia agrícola (art. 29, Estatuto do Índio), modalidade destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional.


No caso das demarcações de ‘terras tradicionalmente ocupadas’, os seus usos, costumes e tradições estão se desvinculando da terra, o que está acontecendo sem que os próprios indígenas estejam notando, já que, ao reivindicar áreas que já foram consolidadas em atividades agropecuárias, tais localidades não serão mais tipicamente indígenas em suas atividades produtivas.


Há o risco de esvaziar o texto do artigo 231 da Constituição Federal, o qual, em sua época de criação destinava-se a preservar áreas tradicionais onde os indígenas já se encontravam na posse.


Uma comparação em outra área poderíamos fazer ao dizer que de nada adiantaria demarcar Unidades de Conservação sobre áreas de uso agropecuário sem posterior recuperação da área para atender às necessidades da fauna e flora do respectivo bioma, ou então identificar áreas protegidas do Código Florestal (reserva legal, áreas de preservação permanente) sem a determinação de recuperá-las, ou seja, nas terras indígenas tradicionais, evidentemente há necessidade de adequação da área para as finalidades originárias determinadas por lei.


A discussão é paradoxal e demostra que ao mesmo tempo em que o Brasil (Constituição Federal) e o mundo (Convenção 169, OIT) criaram um belo exemplo de regramentos legais para a manutenção de uma riqueza cultural, também retira destes povos a possibilidade de aproveitamento destas terras para fins culturais ou até mesmo econômicos e seu direito de integração à sociedade, caso seja este o anseio da comunidade, alimentando a velha discussão do ‘índio de museu’.


Os rumos do assunto se tornaram complexos, valendo repensar a origem das leis que buscaram ‘inocentemente’ proteger a cultura indígena; a forma de aquisição das terras e como foram geradoras de conflitos, invasões e processos judiciais; a atual mudança de paradigmas na utilização das terras, caso contrário todo este crescente e infindável trabalho de demarcações demandará a relativização do seu regime.


O território brasileiro precisa ser planejado para todos os brasileiros, os processos de demarcação demandam agilidade e respeito aos ritos.



<< Notícia Anterior Próxima Notícia >>

Buscar

Newsletter diária

Receba nossos relatórios diários e gratuitos


Loja