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Scot Consultoria

Herbicidas causam aborto ou morte de animais no pasto?


Quinta-feira, 11 de março de 2021 - 11h00

Engenheiro agrônomo e mestre em solos e nutrição de plantas pela ESALQ-USP. Com atuação profissional desde 1985 em pesquisa e desenvolvimento em sistemas de produção agrícola em empresas nacionais e multinacionais, trabalhou por 24 anos na geração dos principais herbicidas para pastagens hoje no mercado. Atualmente, é consultor independente, fundador da NTC ConsultAgro, focado no manejo da vegetação em pastagens, reflorestamentos e áreas não agrícolas.


Foto: Bela Magrela

 

A toxicologia dos herbicidas usados nas pastagens?

Em nosso último artigo comentamos sobre o importante tema da resistência aos herbicidas nas plantas daninhas das pastagens. Nesse mês falaremos sobre um tema ainda mais polêmico e cercado de especulações, mitos e desconhecimento: a toxicologia dos produtos usados como herbicidas em nossas pastagens. Pode ocorrer aborto em fêmeas prenhas, ou má formação de fetos? Ou mais além, pode ocorrer morte em animais que pastejem áreas onde foram aplicados herbicidas para o controle das plantas daninhas? E a saúde do aplicador? E o meio ambiente?

Muitas perguntas importantes para serem respondidas num texto sucinto, mas vamos aos fatos e, no mínimo, espero despertar a curiosidade, esclarecer algumas dúvidas e incentivar os leitores na busca de informações mais aprofundadas sobre o tema: a toxicologia dos herbicidas usados nas pastagens.

O registro de produtos fitossanitários, ou defensivos agrícolas, usados no Brasil

O princípio de toda discussão sobre a toxicologia dos produtos utilizados na agricultura e na pecuária no Brasil deve levar em conta a política e legislação de registro desses produtos vigentes no país. Lembro aqui que a legislação que rege a experimentação, o registro e a comercialização desses insumos foi vastamente discutida para a implementação da chamada “Lei dos Agrotóxicos” instituída em julho de 1989 (Lei no. 7.802/89), que definiu competências conjuntas entre os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) relativos à pesquisa, à experimentação, à produção, à embalagem e rotulagem, ao transporte, ao armazenamento, à comercialização, à propaganda comercial, à utilização, à importação, à exportação, ao destino final dos resíduos e embalagens, ao registro, à classificação, ao controle, à inspeção e à fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins. Pode parecer muito, mas ainda não é tudo. Em 2002 o Decreto 4.074/02 regulamentou essa lei e, desde então, houve uma vasta produção de Decretos e Instruções Normativas que alteraram alguns pontos dessa legislação e definiram outras exigências. Como as INs 36/09 e 42/11, que legislam complementarmente sobre a experimentação e pesquisa de novas moléculas e produtos.

Ou seja, a legislação é vasta e as informações acima servem de referência aos leitores que queiram maiores detalhes, e se o fizerem, verão que nossa legislação é extremamente cuidadosa e criteriosa para que os produtos utilizados no campo sejam os mais seguros ao ambiente, ao aplicador e na segurança dos alimentos produzidos e consumidos no país, ou exportados. Arrisco dizer que nossa legislação é comparativamente umas das mais restritivas, exigentes e criteriosas do mundo, se não for a mais.

O registro de um produto agrícola, o que inclui os herbicidas para pastagens, caminha por três vertentes, independentes e complementares: o órgão competente para realizar o registro é o MAPA, que avalia a eficácia agronômica do produto e que segue as diretrizes e exigências dos órgãos da saúde, no caso o MS, representado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e do meio ambiente, no caso o MMA, representado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

Não bastasse isso, após obtido o registro federal, cada um dos 26 estados precisam dar suas chancelas com os Registros Estaduais para permitir a comercialização e uso em seus territórios. A única exceção é o Distrito Federal, onde a aprovação federal já garante a comercialização na região. Todo esse caminho, da submissão do pacote de registro aos órgãos competentes até sua aprovação para comercialização e uso, pode se passar 6 anos, ou mais. Lembrando que para a geração das informações que compõem o pacote de registro, outros 3 ou 4 anos são necessários, totalizando até 10 anos em todo o processo. Esses 10 anos podem tornar um produto originalmente inovador, na sua concepção, em um produto superado, que já não mais atende às necessidades dos usuários quando em seu lançamento. Imaginem todo o investimento prejudicado que o fabricante teve que absorver. Olhando pelo lado do usuário, muitas vezes ele deixou de ter o produto necessário quando precisou, e todo esse processo encareceu o produto que utiliza.

Preceito básico de um produto

Como visto inicialmente, o tema é extremamente detalhado e complexo, e pinço um ponto crucial da lei de 1989 (§ 6o., itens c, d, e, f) que proíbe quaisquer produtos que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas; que provoquem distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor; que se revelem mais perigosos para o homem do que os testes de laboratório tenham podido demonstrar; e cujas características causem danos ao meio ambiente.

Resumindo: um produto para ser utilizado no campo como defensivo não pode (grifado e sublinhado) produzir danos ao embrião ou feto durante a gravidez (teratogênico); não pode causar câncer (carcinogênico) ou gerar mutações genéticas (mutagênico). Isso já responde à pergunta provocativa do título deste artigo: o herbicida não causa abortos durante a gestação, ou aberrações genéticas nas crias.

A primeira coisa que uma companhia faz quando sintetiza uma molécula, ainda em estudos bastante preliminares sobre sua eficácia agronômica, é passar por rigorosos testes em laboratórios especializados, que definem esses parâmetros, e surgindo qualquer indicação dessa natureza à molécula, ou produto, é imediatamente descontinuado. Ou seja, mesmo nas fases iniciais de testes de campo, normalmente alguns anos após sua descoberta em laboratório, uma molécula já teve essa validação de ser segura sob os aspectos mencionados, até para a segurança dos cientistas que realizam a experimentação agrícola no campo, como eu que tive esse privilégio de desempenhar essa função durante quase três décadas.

A toxicidade ao aplicador e ao ambiente

O rótulo de todo produto defensivo agrícola (inseticida, fungicida, herbicida, nematicida) traz importantes informações relativas à sua classificação toxicológica. Basicamente são duas classificações: uma relativa à chamada toxicidade aguda, à saúde humana e na cadeia alimentar, dada pela ANVISA, e outra relativa à toxicidade ao ambiente, e seus impactos nas cadeias de fauna e flora, dada pelo IBAMA.

A ANVISA atualizou em 2019 as faixas de toxicidade aguda, com 4 cores e 5 faixas, além uma categoria “Não Classificado”:


Fonte: ANVISA

O IBAMA classifica quanto ao potencial de periculosidade ambiental e baseia-se nos parâmetros bioacumulação, persistência, transporte, toxicidade a diversos organismos, potencial mutagênico, teratogênico, carcinogênico, obedecendo a seguinte classificação:

Classe I - Produto Altamente Perigoso

Classe II - Produto Muito Perigoso

Classe III - Produto Perigoso 

Classe IV - Produto Pouco Perigoso

(Fonte: www.aenda.org.br)

O DL50

Um parâmetro que fornece uma informação muito apropriada do potencial de intoxicação em mamíferos é o DL50 oral, que significa “dose letal” para 50% da população estudada. Normalmente esse parâmetro é definido em estudos laboratoriais e é extrapolada para os mamíferos em geral, incluindo o ser humano. Nos estudos conduzidos em laboratório é fornecido alimento contendo determinadas quantidades da substância teste a roedores, onde se determina a quantidade ingerida que causa o óbito de 50% da população estudada, o valor obtido é expresso em mg/kg de peso vivo. Assim, valores altos significam grandes quantidades que o produto precisa ser ingerido para se tornar tóxico aos mamíferos, ou seja, de baixo potencial de intoxicação. Inversamente, valores baixos significam que o produto é muito tóxico, e poucas quantidades ingeridas já tornam a substância letal. Veja classificação abaixo segundo a DL 50 oral:

Classe toxicológica I: Extremamente Tóxico ..... até 5 mg/kg;

Classe toxicológica II: Altamente Tóxico ........... 5 a 50 mg/kg;

Classe toxicológica III: Medianamente Tóxico .. 50 a 500 mg/kg;

Classe toxicológica IV: Pouco Tóxico ................ maior que 500 mg/kg.

Trazendo para nossa realidade, abaixo alguns exemplos de substâncias bem familiares e seus valores de DL 50:

Cloreto de sódio (sal de cozinha): .................................................................3000 mg/kg

Paracetamol (medicamentos analgésicos e antipiréticos): ..............................1944 mg/kg

Cafeína: ........................................................................................................ 192 mg/kg

Nicotina: ........................................................................................................50 mg/kg

Aflatoxina B1 (micotoxina produzida por espécies do fungo Aspergillus): ...... 0,48 mg/kg

Um exemplo real

E nossos herbicidas utilizados nas pastagens, quais seus níveis de toxicidade?

Esses valores são de domínio público, e estão nas publicações dos fabricantes, ou podem ser obtidos em sites dos órgãos reguladores. Particularmente indico o site Agrofit, de extrema facilidade de acesso e navegação, onde se encontram todas as publicações que sustentam os registros dos produtos, junto ao MAPA: http://agrofit.agricultura.gov.br/agrofit_cons/principal_agrofit_cons 

Alguns exemplos de produtos amplamente utilizados na pecuária:

Nessa tabela, além da DL 50, em mg/kg, trouxe a informação da densidade da formulação, em g/ml, que permite calcular a DL 50 do produto formulado em ml de produto por kg de peso vivo (ml/kg(1)), e informo também a dose máxima de bula(2) dos produtos para fazermos um cálculo real.

Vamos pegar a última linha, que traz nosso velho conhecido Picloram + 2,4-D (64 + 240 g/l), hoje com quase 30 marcas comerciais.

Vamos aos cálculos:

DL50 oral: 4500 mg/kg (ou 4,5 g/kg) e densidade da formulação de 1,163 g/ml = 3,87 ml/kg, ou seja, a DL 50 de produto formulado é de 3,87 ml/kg de peso vivo.

Se consideramos um boi magro com 12@ x 30 kg (rendimento de carcaça de 50%) = 360 kg x 3,87 = 1393 ml

Isso significa que um animal de 360 kg tem que ingerir 1393 ml de produto, ou aproximadamente 1,4 l de produto para ocorrer óbito em 50% da população. Quando um boi vai ingerir 1,4 l de produto?

Façamos um outro exercício de cálculo, aplicando a dose máxima desse produto na pastagem e ver quanto o boi ingere de capim, e de produto consequentemente, considerando a entrada para pastejo já no dia consecutivo à aplicação, por exemplo.

Vamos considerar uma pastagem com 20 t/ha de matéria verde, ou 5 t/ha de matéria seca (MS) (considerando matéria seca igual a 25% da matéria verde), onde aplicamos a dose máxima do produto, ou 6,0 l/ha, e que o animal consome 2,5% de seu peso vivo em matéria seca por dia.

Novamente aos cálculos:

6,0 l/ha de produto em 5 t MS/ha, temos: 6000 ml/5000 kg MS = 1,2 ml de produto/kg de MS

O boi ingerindo 2,5% de seu peso vivo em MS por dia, temos: 2,5% de 360 kg = 9 kg MS/dia

Nesses 9 kg de MS/dia que o boi ingere x 1,2 ml de produto, temos: 9 x 1,2 = 10,8 ml de produto 

Resumindo: um boi com 360 kg de peso vivo tem condições de ingerir diariamente um máximo de 10,8 ml de produto, nos 9 kg de MS de capim que foi tratado com a dose máxima do produto: 6,0 l/ha.

Mas o boi teria que ingerir 1393 ml de produto para morrer 50% da população. Essa quantidade de produto estaria em 1160 kg de MS (1393 ml /1,2 ml de produto por kg de MS), ou 129 vezes o que ele consegue ingerir por dia, dividindo 1160 kg de MS / 9 kg MS/dia = 129.

Teria como o animal ingerir 1160 kg de MS/dia, ainda para morrer 50% da população?

Alguém mais crítico, de modo pertinente, pode considerar: - mas o animal pasteja por vários dias a mesma área, e poderia acumular a quantidade letal.

Resposta: - não. Por dois motivos: primeiro que há uma curva de degradação do produto aplicado na forragem, que zera em poucos dias, e segundo que nos rebrotes dessas plantas não há mais produto.

Esses cálculos são para dar uma dimensão da segurança que esses produtos utilizados na pecuária possuem. Simplesmente nesse exemplo, onde o produto possui DL50 de 4500 mg/kg, estamos falando de um produto menos tóxico que o sal de cozinha, como citado anteriormente: 3000 mg/kg. E desmistificar sobre a toxicidade desses produtos aplicados nas pastagens.

Resíduos na carne, no leite e no esterco

Consideremos agora outro importante ponto de dúvida: tudo bem, o produto não mata o animal que ingere a forragem onde o produto foi aplicado, mas leva resíduo para a carne ou o leite desse animal?

Dúvida bastante frequente e pertinente, e para isso a informação de que todo produto ingerido é eliminado via fezes e urina em até 96 horas após ingestão. A molécula é excretada exatamente da mesma forma que foi ingerida, sendo metabolizada e não incorporada nos tecidos animais, não deixando resíduos detectáveis na carne ou no leite.

Porém daí uma informação importante: como o animal excreta a molécula intacta nas fezes e urina, não podemos utilizar esse esterco em adubações em plantas sensíveis de folhas largas, hortas ou pomares. Esse esterco está contaminado e vai matar as plantas sensíveis adubadas. Podemos utilizar esterco de animais que consomem forragem de áreas tratadas com herbicidas apenas após 60 dias da aplicação, para uma extrema segurança, quando o produto já se degradou nas folhas que os animais ingerem, e seu esterco passa a ficar livre de contaminação.

Outra informação é que se pegarmos o esterco fresco contaminado e o submetermos à vermicompostagem (compostagem por minhocas) esse resíduo permanece no material vermicompostado.

E quando realmente morrem animais, o que aconteceu?

Já vimos casos em que se aplicou algum produto na pastagem e ocorrem mortes de animais. Muitos já devem ter vivido, ou ouvido, algo parecido. O primeiro vilão identificado sempre é o herbicida. Mas como demonstramos, isso é tecnicamente impossível.

A quase totalidade dessas ocorrências se dá pela presença de plantas tóxicas na área. Normalmente os animais até pastejam seletivamente, evitando essas plantas tóxicas, porém, quando um herbicida é aplicado e as plantas daninhas começam a secar, elas podem passar a ser ingeridas pelos animais, contudo seu princípio tóxico permanece, e pode ser fatal caso o animal ingira quantidades importantes dessas plantas.

Disso decorre uma outra recomendação: sempre permita que o pasto tenha descanso após aplicação de herbicidas, principalmente para permitir que a forrageira se recupere da competição que vinha sofrendo e atinja novamente capacidade de suporte, mas também considerando que, na existência de plantas tóxicas na área, elas morram totalmente antes que os animais entrem para pastejo. Esse período pode ser de 30 dias ou mais, não pensando na toxidade do herbicida, mas na recuperação da pastagem e no controle das plantas tóxicas.

Tivemos oportunidade de mencionar esse fato no artigo de janeiro de 2021, neste mesmo veículo, quando abordamos especificamente Plantas Tóxicas em Pastagens.

Cuidados no uso do produto

Esperamos ter esclarecido algumas dúvidas sobre a toxicidade dos herbicidas utilizados nas pastagens, porém em nada elimina os cuidados necessários durante o preparo da calda e a aplicação, com as pessoas envolvidas na atividade. Utilize todos os EPIs recomendados para manusear a calda e o equipamento de aplicação, principalmente botas, luvas, máscaras, óculos ou viseiras, e a vestimenta específica. Lavar-se após finalizar a operação, e dar destino correto às roupas e equipamentos contaminados, e não esquecer da tríplice lavagem das embalagens vazias antes de enviá-la às Centrais de Recebimento, que destinarão adequadamente esse material.


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