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Scot Consultoria

Sobre a vida e a morte dos cães idiotas e sobre as grandes preocupações dos homens inteligentes


Quarta-feira, 3 de outubro de 2012 - 15h46

Amazônida, engenheiro agrônomo geomensor, pós-graduado em Gestão Econômica do Meio Ambiente (mestrado) e Geoprocessamento (especialização).


Hoje é fácil. A gente vai ao supermercado e compra um bife. Talvez até importe como aquele bife chegou naquele lugar, mas na maioria das vezes isso nem importa.


Mas deve ter havido um tempo, assim creio, quando a gente ainda era peludo, em que a nossa capacidade de comer um bife dependia de nossa capacidade de caçá-lo. Nessa época os cães deveriam nos ser bem mais úteis do que nos são nos dias de hoje. Se o leite do teu filho dependesse da habilidade do teu cão, teu cão teria outra importância. Acho que a gente se apega tanto aos cães por causa dessa dependência vital que tivemos dele no passado ancestral.


Lembro bem quando um professor de português masoquista que tive no secundário me fez ler "Vidas Secas". Ele se divertia vendo aquelas crianças angustiadas com "E agora, José", de Drummond. Era um canalha. Lembro bem da angústia meio alegre da cachorra Baleia morrendo meio feliz alucinada com imagens da satisfação dos seus donos diante dos preás gordos que ela caçaria, no delírio dos estertores. Baleia foi uma das cadelas mais inteligentes e fiéis que conheci.


Quando eu era menino, na roça, ouvia dizer que tabaréu acreditava que cachorro com nome de peixe não pegava raiva. Era por isso então que cachorro de matuto sempre chamava Baleia, Tubarão, Traíra. Conheci um roceiro que tinha um vira-lata que atendia pela alcunha de Beré.


Contei essa história pra minha mulher quando nós estávamos escolhendo o nome dela e a gente decidiu chamá-la de Beluga. Beluga nem é peixe, mas tabaréu não sabe disso e se o credo funcionava com Baleia haveria de funcionar com Beluga, que também é uma baleia. Ela era branca. Nasceu em Brasília e viajou comigo de avião até Imperatriz, depois de carro até o Pará. Havia perdido a mãe e chorava um choro agudo. Como as baleias cantam um canto agudo, não pegam raiva e as belugas são brancas, Beluga era um nome perfeito.


Beluga era o mais idiota de todos os cães que já vi na minha vida. Ela era simplesmente estúpida. A gente chamava ela de Beluga e ela atendia, mas se você olhasse pra ela e dissesse: Astrogildo!! Ela te sorriria com o rabo e te atenderia da mesma forma. Se você olhasse pra ela e dissesse: Sai daqui, cachorro idiota!! Ela te sorriria com o rabo e não te atenderia. Se você dissesse, muito bem, ela abanava o rabo. Se você dissesse: NÃO!!, ela abanava o rabo. A única coisa que ela conseguia fazer além de comer e dormir era bajular você. Se eu dependesse de um preá caçado por ela estaria ferrado.


Lembro bem de uma noite chuvosa em Paragominas em que eu estava no Twitter esmerilhando uma saudade das minhas esporas baianas, aborrecido, acho, com um relatório da SBPC sobre a reforma do Código Florestal, e Beluga apareceu na porta da cozinha com aquela cara sem qualquer inteligência. Acho que se ela soubesse falar teria dito para que eu não me aborrecer com os idiotas da SBPC, ou com aquele negócio abstrato de Código Florestal. Acho que ela seria capaz de pegar um preá pra mim.


Mas cachorro não pode entrar em casa e não fala então ela ficou lá na porta sentada com a bunda no tapete (longe da lajota) olhando o dono inteligente dela perder os cabelos diante do computador numa madrugada fria por causa da largura das APPs e dos sofismas de um bando de cientistas crédulos. Ela ficou lá me velando até dormir.


Beluga morreu ontem. Ela nunca teve raiva.


Eu sou um maldito materialista imbecil. Mas eu tenho convicção de que ela morreu abanando o rabo e esperando o melhor de alguém e de que os espíritos dos preás gordos estão felizes porque ela é inofensiva e de que ela deve estar abanando o rabo pra eles também.



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