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Scot Consultoria

Uma flor de pessoa


Terça-feira, 14 de dezembro de 2010 - 15h45


Muita gente confunde as orquídeas com parasitas. Mas não tem nada a ver. As parasitas vivem às custas de seus hospedeiros, neles introduzindo suas raízes para lhes sugar a seiva. Esse fenômeno, próprio das chamadas ervas más, não ocorre com as orquídeas. Elas simplesmente “moram” sobre as árvores. Epífita: assim se denomina botanicamente sua situação. Embora existam espécies terrestes, normalmente as orquídeas se apresentam longe do chão, com quem estabelecem uma associação sadia, agarrando-se com suas grossas raízes nos galhos sem prejudicar ninguém. Lá em cima, buscam luz sombreada e aproveitam-se da água e dos nutrientes que encontram nas cascas do parceiro, cheios de materiais em decomposição enriquecidos com a poeira trazida pelos ventos. Vivem numa boa sem atrapalhar ninguém. As flores de orquídeas encantam a humanidade há milênios. Surgidas há 84 milhões de anos, as orquídeas se espalharam pelo mundo, inexistindo apenas na Antártida. Dizem que Confúcio, o grande filósofo oriental, por elas se interessou, indicando que foram os chineses os primeiros a destacá-las em sua cultura ornamental. Na Europa, os gregos primeiro a admiraram, curiosamente a denominando orchis, palavra que significa “testículos”. Supõe-se a estranha denominação pela semelhança de uma espécie de orquídea, descrita na época por Teofrasco de Lesbos, como ostentando dois pequenos tubérculos subterrâneos. Acabou confundida, simbolicamente, com a virilidade. Colecionadores e aficcionados sempre zelaram pelas orquídeas de forma amadora, pouco comercial. Seu cultivo exige estufas adequadas, nas quais se busca reproduzir o microclima – umidade e luz - das matas onde se escondem. Outra razão é seu restrito florescimento, verificado apenas uma vez ao ano. Lindas e raras, assim sempre foram consideradas as orquídeas. Há muitas décadas, porém, essa história começou a mudar. Tudo se iniciou com a descoberta do processo de hibridação vegetal, através do qual se realiza, em laboratório, o cruzamento de duas espécies nativas de orquídeas, gerando um descendente inusitado. No Brasil, somente por volta de 1950 a técnica começou a ser pioneiramente aplicada por um médico mineiro, o Dr. Alberto Carlos Pereira Junior, de Guaxupé. Professor de biologia e apaixonado por essas maravilhosas flores, após anos de tentativas e erros promovendo a germinação das minúsculas sementinhas das orquídeas cruzadas no laboratório doméstico, onde aprimorava sua docência em biologia, a hibridação ganhou seu lado comercial nos viveiros Rinaldi, destacado floricultor paulista de então. Quem testemunhou a história foi Tonico Pereira, seu filho jornalista. O aprimoramento das variedades ganhou impulso decidido quando, mais tarde, os pesquisadores descobriram o uso da clonagem na reprodução das plantas. Isso foi fundamental porque normalmente os híbridos são estéreis, ou seja, não se reproduzem sexuadamente. Então, através da clonagem, se consegue produzir milhares de idênticos descendentes da planta escolhida. Eles surgem a partir do meristema, ou gema de crescimento, aquela bolotinha que se observa na base dos bulbos das orquídeas. Dê uma olhada. Estima-se que atualmente se cultivem cem mil híbridos de orquídeas no mundo, inscritas obrigatoriamente na Royal Horticultural Society, em Londres. É para lá que acaba de ser enviada a solicitação do registro da Rhynchosophrocatttleya Ruth Cardoso, uma deslumbrante orquídea desenvolvida pelo Desembargador e orquidófilo paulista Damásio de Jesus. Com flores amarelas e um pequeno detalhe vermelho no labelo, a nova orquídea foi apresentada na inauguração do Orquidário Ruth Cardoso, situado ali no Parque Villa Lobos, capital paulista. Obra dos arquitetos Décio Tozzi e André Graziano, o caprichado orquidário é único no mundo. Única e especial também foi Ruth Vilaça Corrêa Leite, nascida em Araraquara, interior paulista, no início da primavera de 1930. O Brasil jamais se esquecerá da simpática primeira dama que odiava bajulação, preferindo ostentar sapiência. Antropóloga, professora universitária da USP, sua trajetória de vida combinou ensino e pesquisa com liderança na sociedade civil. A defesa dos direitos das mulheres e dos jovens, o fortalecimento da democracia, a construção de uma ordem mundial mais justa, foram os principais campos de atuação de Ruth Cardoso em prol do desenvolvimento e da paz social. Durante o mandato presidencial de seu marido, Fernando Henrique Cardoso, Ruth fundou e presidiu o Conselho da Comunidade Solidária. A iniciativa mobilizou parcerias entre ONGs, universidades, empresas e governos para a construção e a difusão de programas sociais inovadores. Contra o clientelismo político, a favor da emancipação humana. Intelectual famosa, jamais perdeu o jeito simples de viver. Gostava de cozinhar, adorava quitutes, colecionava vidraria, fazia amizades, adorava plantas e flores. Ruth Cardoso foi, realmente, exemplar. Para ela escrevi um singelo poema, tristemente inspirado no dia de seu falecimento, quando me ocorreu homenageá-la sugerindo ao governo construir o orquidário que hoje leva seu nome, um local de exposição das mais belas flores que existem. “Sobre sua lápide repousava uma enorme flor de catleya. Quem ali a colocou para espantar a tristeza da morte sabia de seu gosto pela vida. Meiga, singela, cultivava o hábito das pessoas simples do interior. Intelectual, professora, curtia a existência com graça e ternura, sempre acompanhada pelas flores, as orquídeas em especial. Era o que eu mais pensava naquele momento dolorido: Ruth Cardoso era uma flor de pessoa”. Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 14/12/2010.
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