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Os heróis da resistência


por Alma

Terça-feira, 6 de julho de 2010 - 12h15

Fernando Sampaio é engenheiro agrônomo formado pela ESALQ/USP, especialista em mercado de carnes pela ESA Angers. Pensador em tempo integral, cronista nas horas vagas. Seu dia foi cheio? Está cansado de ver preços e números? Leia a coluna do Alma e relaxe. Coluna do Alma, para você não se esquecer das outras coisas da vida.


Tempos atrás, era costume das famílias rezar antes das refeições. Sim, rezar para agradecer o alimento recebido. Luiz Felipe Pondé diz que muitos teólogos, sejam eles judeus, cristãos ou muçulmanos afirmam que a única teologia verdadeira é aquela que agradece. Os americanos, estes porcos imperialistas, têm até um dia especial no ano para agradecer a Deus não só pela mesa farta à sua frente, mas por tudo o que receberam. Não custa lembrar, os períodos de colheita em toda a história da humanidade sempre foram celebrados em festividades religiosas, como até hoje é o caso das nossas festas juninas. Infelizmente, nos dias urbanos e de fast-food em que vivemos, comendo às vezes até de pé, damos nossas refeições por garantidas. Nossas crianças acham que o leite nasce dentro da caixinha tetra-pak e o bife é espontaneamente gerado em bandejas de isopor. Achamos que a comida vem do supermercado, que sempre estará ali, repleto de queijos já prontos, manteiga já batida, carne já desossada, frutas já cortadas, e saladas já lavadas, além de todo o assortiment de guloseimas pré-fabricadas de composição indefinida prontas a garantir a nossa obesidade. Não temos mais ideia do que é o trabalho de plantar, colher, cuidar, ordenhar. E por incrível que pareça, nos esquecemos de agradecer também quem faz esse trabalho por nós. A história de um produtor São produtores rurais, estes impressionantes personagens que entendem um pouco de terra, um pouco de água, um pouco dos ventos e das chuvas, das plantas e dos animais, e ainda precisa entender de dinheiro. Vou falar de um Produtor Rural. Há muito tempo seu pai lhe levou para aquelas paragens. O governo dizia para migrarem, para derrubarem a mata e assim teriam terras. Dormiam em casa de pau a pique, teto de palha e chão batido, lampião de querosene e fogão de lenha. Abriram mata, semearam e colheram. Criaram bois. Deu certo. Ele, que era menino, virou Produtor Rural. O Produtor Rural não estudou, é fato, embora tenha feito todo o esforço do mundo para que seus filhos pudessem ir à faculdade. Mas não é ignorante. Conversa com gente nova, aprende coisas. Melhora sua plantação, compra máquinas. Usa adubos, sementes, insemina o gado. O que ele produz hoje na mesma fazenda é com certeza bem mais do que seu pai produzia. Ele e outros, mesmo sem saber sustentam a economia de todo um país. Mas anos depois aparece um fiscal do governo em suas terras. Diz que ele está ilegal porque plantou café no morro e não pode. Aplica uma multa porque na beira do rio onde o boi bebe água deveria estar cercado, e no “corguinho” que passa na fazenda devia ter 15 metros de árvores dos dois lados, embora ele explicasse que quando foram para lá ninguém lhes falou dessas regras. Aparece outro fiscal, e lhe dá multas porque ele deveria por banheiros para seus empregados lá no meio da roça, como se ele algum dia tivesse tido esses luxos. E outra multa porque seu tratorista come sua marmita debaixo da árvore quando deveria ter um refeitório para comer. Outro dia vem um outro rapaz estudado, e diz que seus bois deveriam ter brinco, e que cada uma deveria ter um documento de identidade. Diz que os europeus estão preocupados com isso e querem os brincos porque é mais saudável. O Produtor Rural não entende muito bem porque para ele mais saudável que aquele boi seu que passou a vida ali no pasto não existe, e se pergunta se boi europeu tem aquela vida boa. Mas vai na dele e põe brinco em tudo. Depois lhe dizem que as regras mudaram, e o que ele fez precisa ser refeito. Aí aparece um outro cabeludo, com sotaque de gringo. Fala que quer preservar a biodiversidade, que o mundo todo está muito preocupado e diz que se ele plantar árvore um dia vai receber por aquilo. Mas quem é da roça desconfia, e normalmente se é pra fazer serviço quer ver a cor do dinheiro antes. Ele pergunta ao moço se no país dele tem muita mata, e ouve que não, e que é por isso que ele devia plantar mais árvores ali. Uma moça toda arrumada diz que é do supermercado, e vem falando coisas bonitas como paradigmas, sustentabilidade, mudanças climáticas, e diz que o consumidor está muito preocupado, e lhe dá um manual de regras pra seguir. Um outro rapaz de sandália de couro e bolsa de tricô diz que é da ONG, e traz um calhamaço de leis que o Produtor nem sabia que existiam. Diz que a sociedade está muito preocupada, porque quase todos os Produtores são ilegais e ele não deveria continuar assim. Aí aparece um doutor do Governo, diz que tem que zelar pelo bem do País e pela Constituição, e que o Produtor deve assinar um papel e ajustar sua conduta, que ele não sabia que estava desajustada. E se ele não assina não pode mais vender nada para ninguém. Uma outra moça, cara de francesa, chega e fala que está muito preocupada lá onde ela mora porque o clima do mundo está mudando, e ela diz que as vacas dele estão esquentando o mundo. O Produtor se espanta e dá risada ao perguntar como. Um outro doutor, estudado, diz que a fazenda dele é na verdade terra dos índios, e que está preocupado com os índios porque nós matamos quase todos eles, que eram os donos do Brasil. Tem índios ali perto, já donos de bastante terra. O Produtor viu uma vez o governo construindo casas para os índios, e dando cestas básicas aos índios dali. E viu o material de construção das casas sendo vendido na cidade, e as cestas trocadas por pinga. Aí aparece um padre, com uns índices na mão. Diz que o produtor não produz o que está escrito ali, e que portanto a terra dele devia ser dada para quem precisa. O padre está muito preocupado com os excluídos. O Produtor pergunta quem são os excluídos, e reconhece ali um povo que nunca trabalhou em roça. Tem garçom, ajudante de pedreiro, tem até funcionário público. E ele vê esse povo recebendo dinheiro do governo todo mês. E se pergunta se o excluído não é ele que paga um monte de imposto e ainda tem que pagar escola para os filhos, seguro saúde e ainda anda em estrada esburacada, sem receber dinheiro nenhum do governo de volta. O Padre volta com outro doutor, que quer que ele prove que um dia no passado o governo realmente fez um papel dizendo que aquela terra era do seu pai. O Produtor pensa que se o governo durante esse tempo todo cobrou impostos dele por aquela terra é porque sabia que era dele, ou não? Aí o Produtor vai no banco, quer emprestar para investir e produzir mais, plantar árvore. E um gerente do banco, que diz que está muito preocupado com o planeta e o clima diz que só empresta se ele cumprir todo um outro livro de regras. O Produtor se pergunta se o dono do banco sabe se o dinheiro que está ali vem de drogas, de jogo, de corrupção de políticos, de venda de madeira ilegal. Mas se cala e desiste daquilo. Então o Produtor vai dar uma volta na cidade. Ele vê favelas nos morros de tudo quanto é jeito, e depois vê na TV que o morro desabou na chuva e um monte de gente morreu e se pergunta se o moço que disse que não podia plantar no morro tinha ido lá ver aquilo. Vê um monte de esgoto sendo jogado no rio e se pergunta se o doutor que queria zelar pelo bem do País foi atrás de quem fazia aquilo. E vê no jornal que o chefe do fiscal que lhe havia multado foi preso por tráfico de madeira. Vai no supermercado, e em sua economia simples faz uma conta e vê que o quilo de carne vendido ali custa quase dez vezes mais o que ele recebeu pelo boi, embora ele tenha ficado três anos cuidando do bicho e o supermercado três dias cuidando da bandejinha. E vê o povo comprando o que é mais barato mesmo, e se pergunta se tudo o que está ali segue as regras que a moça arrumada lhe deu para seguir. O Produtor começa a desconfiar que aquele povo todo preocupado que foi na sua fazenda está preocupado mais é em justificar os próprios empregos uns aos outros. Todos tem trabalhos tão bonitos, é consultor disso, coordenador daquilo, empresa de governança, ONG de sustentabilidade, tem até uns cargos em inglês que ele nem sabe o que são. Ele é do tempo em que você sabia o que a pessoa fazia. Era o açougueiro, o peão, o padeiro, o sapateiro... Então ele decide que não quer fazer mais nada daquilo. Chamam-no de turrão, ignorante, reacionário, desconfiado, atrasado. Dizem que ele não quer se adequar aos novos tempos, não entende como funciona o mundo, não liga para a natureza e nem para a sociedade. Logo ele que passou a vida aprendendo como a natureza funciona e que faz comida para esse povo todo. E o Produtor vai lá para o seu fim de mundo, em uma estrada esburacada e esquecida, escutando no rádio que o copeiro do Palácio ganha R$ 9.000 reais por mês, e que mais alguém havia sido pego com dinheiro na meia ou na cueca. Apesar de tudo continua produzindo. Não, nós não agradecemos pela comida. Nós pegamos quem a produz e colocamos no cantinho da sala, ajoelhado no milho, com um chapéu de burro na cabeça. Nós pegamos o Produtor, lambuzamos ele de piche e jogamos penas de galinha em cima, fazendo-o perambular pelas ruas da cidade. Podemos também colocá-lo numa gaiola para que seja cuspido e apedrejado por quem passar. Ou, melhor ainda, vamos costurar uma Estrela de Davi nas roupas de todos eles, para podermos identificá-los bem. Como estão quase todos na ilegalidade, poderemos colocá-los todos fechados em um campo de concentração. Então será fácil tomar essas terras e aí sim poderemos produzir como se deve, deixando o mato crescer, a Terra esfriar e todos os índios e animais felizes na floresta. Resistência Eu sempre tive um respeito nato por quem produz, simplesmente pelo heróico ato de produzir. Hoje, meu respeito é também pelo heróico ato de resistir. Resistir a uma sociedade obcecada pelo controle da vida alheia em todos os aspectos. Resistir a uma relativização de direitos básicos de toda sociedade democrática. Resistir ao despotismo estatal. Resistir à ditadura de minorias. Resistir ao globalismo ecológico. Resistir a uma Justiça parcial. Resistir à centralização de poder. Resistir à delegação de responsabilidades. Resistir em suma ao fascismo que se desenha em nosso futuro. Sei que é luta inglória e que fatalmente a Resistência cairá. Mas tenho meu respeito declarado e minhas armas à disposição da luta. E hoje rezo não só para agradecer o prato de comida à minha frente, mas para pedir que ele continue aparecendo sempre.
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