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Scot Consultoria

Errar é humano, perdoar é divino!


por Otaliz

Sexta-feira, 21 de dezembro de 2007 - 22h14

É médico veterinário e instrutor do Senar – RS.


Santa Luzia é o nome de uma comunidade rural localizada num pequeno município da região Norte do Rio Grande do Sul. O nome já nos faz pressupor a origem étnica das pessoas que vivem nessa comunidade – italianos, é claro. As conversas em voz alta, acompanhadas de gestos largos, as gostosas gargalhadas e a simpatia com que recebem os visitantes são características marcantes no comportamento dos colonos italianos, ou dos “gringos” como são conhecidos por aqui. Tudo isso eu constatei quando fui ministrar, em Santa Luzia, um curso sobre pecuária leiteira, através do SENAR-RS. Já no início do treinamento chamou a minha atenção um senhor idoso, calvo, de estatura mediana, calças remangadas, deixando à mostra as canelas finas. Alegre, comunicativo, dirigia-se aos demais participantes e a mim, falando com voz alta e fina, contando histórias e relatando experiências, algumas engraçadas, que eram recebidas com simpatia e respeito pelos demais participantes que o chamavam de “nono”, que em português significa vovô. De imediato percebi que o “nono” exercia um certo grau de liderança no grupo e que se orgulhava disso. Nutrição do rebanho leiteiro era o tema básico do curso. No momento em que eu abordava a questão da mineralização do rebanho, surgiu a pergunta referente a uma doença conhecida no meio rural como “Caruncho da Cola”. Na verdade trata-se de uma manifestação evidente de carência de cálcio. Na medida em que o nível de cálcio circulante cai de forma acentuada, seja por deficiência na alimentação ou na capacidade de absorção, o organismo ativa mecanismos que fazem com que o sangue passe a retirar cálcio dos ossos, enfraquecendo-os. Em bovinos nestas condições, ao pressionarmos as vértebras da cauda, observamos que as mesmas estão amolecidas. Daí a ingênua interpretação de pessoas leigas que passaram a fazer uma correlação com o que ocorre em madeiras atacadas pelo caruncho, inseto que as vão corroendo por dentro. Comentei com o grupo que se tratava de uma interpretação errada, sem nenhuma fundamentação técnica, ou seja, o tal caruncho da cola não existe. Fui além, criticando de forma jocosa alguns métodos curiosos de tratamento utilizados pelos leigos no sentido de combater o caruncho. Fiz isso em tom de pilhéria, o que provocou boas risadas entre os participantes. No segundo dia do treinamento o “nono” não apareceu. No final da tarde eu estava no bar e restaurante da comunidade quando percebi a chegada de um casal. Ela, a senhora, era participante do curso. Ao ver-me fez questão de apresentar o seu esposo. Durante a conversa que se seguiu ela falou que o “nono” era seu avô de fato, posto que era pai de sua mãe. Perguntei-lhe então se ela conhecia o motivo pelo qual o “nono” não tinha comparecido no curso aquele dia. Sem esconder um certo grau de constrangimento, ela falou: - Pois olhe professor, eu acho que o “nono” ficou magoado com o senhor. - Mas porque? Perguntei surpreso. - Acontece que ele sempre acreditou na existência do caruncho da cola e se sente orgulhoso de, com freqüência, ser chamado por vizinhos para tratar de animais doentes e inclusive utiliza um daqueles tratamentos a que o senhor se referiu de forma irônica, como aquele de fazer um corte na cola do animal e colocar sal, pimenta e vinagre. Fiquei indignado comigo mesmo! Como pode um instrutor ser tão insensível a ponto de ferir a auto-estima de um participante de treinamento? Isto é um erro inaceitável para um instrutor experiente que se propõe treinar produtores rurais. Sobre mim caiu um pesado sentimento de culpa, a ponto de prejudicar o meu sono naquela noite. Na manhã seguinte, ainda com a consciência pesada, cheguei ao local do treinamento para ministrar as últimas aulas do curso e notei a presença do “nono”. Mas agora, ele estava contido, quieto e arredio. Nem de longe lembrava o velho ativo, faceiro, comunicativo e simpático do primeiro dia. Eu sentia que precisava corrigir o meu erro. No decorrer dos debates, aproveitei o “gancho” de uma pergunta e falei que muito dos conhecimentos consolidados pela pesquisa científica tem sua origem nas observações, conhecimentos e experiências das pessoas que vivem no campo. Por isso é muito importante ouvirmos os velhos com atenção e respeito, porque eles sabem muito. Notei que aos poucos o “nono” foi recuperando a sua postura normal – alegre, desenvolto e participativo. Encerrado o curso, durante as despedidas de praxe, observei que o “nono” estava deliberadamente retardando a sua saída. Convidado pela neta para ir embora, respondeu num dialeto italiano, algo que eu interpretei como sendo – vai indo que eu já vou! Ficamos a sós na sala. “Nono” levantou-se da cadeira e olhando-me diretamente perguntou: - O senhor é “dotor vitirinário”? - Sim... respondi. - Então qué dizê que o senhor entende muito de bixo? - Mais ou menos... e depende da espécie de animal. - Mas o senhor também entende muito de gente. Posso lhe dar um abraço? E me abraçou apertado. Um abraço amigo, daqueles de esfregar as mãos nas costas do abraçado. Dizendo gratie mile... gratie mile, dirigiu-se com passos ágeis em direção ao carro onde sua neta o esperava. Não olhou para trás. Foi bom, pois se o fizesse teria visto que eu estava paralisado no meio da sala, com os olhos molhados. Emocionado. Redimido.
Otaliz de Vargas Montardo é médico veterinário e instrutor do Senar – RS
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