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Reinterpretando o valor do fracasso de doha


Sexta-feira, 22 de agosto de 2008 - 17h13

Engenheiro agrônomo formado pela ESALQ-USP, com doutorado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Desde julho de 2003 é Diretor Geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE).


por André M. Nassar Um mês após a interrupção das negociações da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), faz-se necessário desenvolver uma análise mais técnica sobre as diversas interpretações que foram publicadas na imprensa brasileira a respeito do que tinha ocorrido em Genebra naquela semana. A análise é efetuada em cima dos argumentos levantados por cinco especialistas, todos eles bastante críticos em relação à estratégia do governo brasileiro. Argumento 1: Perdas industriais seriam maiores do que os ganhos agrícolas. "Não ficou claro se a abertura industrial maior em troca de um melhor acesso para produtos agrícolas seria equilibrada, já que o nível de ambição brasileiro foi sendo reduzido a fim de permitir a conclusão da rodada" (Rubens Barbosa, Estado, 12/8). O chamado pré-acordo da madrugada de sexta-feira 25/7, em que o Brasil teria, supostamente, aceitado as condições de EUA e União Européia (UE) e virado as costas para seus companheiros "países em desenvolvimento", foi, na realidade, uma acomodação dos interesses defensivos industriais do País. Em troca das flexibilidades para as tarifas industriais, o Brasil aceitou uma menor ambição na expansão das cotas de carnes da UE e uma menor redução dos subsídios totais dos EUA. Foi, portanto, um acordo pautado, no caso do Brasil, na necessidade de manter protegido o setor industrial. Argumento 2: Indianos e chineses tinham direito a uma salvaguarda para se protegerem contra importações subvencionadas dos EUA. "Não querendo contrariar o lobby agrícola em ano eleitoral, os EUA teimaram em manter o direito de aumentar os subsídios até o dobro do que estão utilizando hoje. Não contentes, pressionaram a Índia e a China a aceitarem importações americanas, mesmo subvencionadas" (Rubens Ricupero, Estado, 2/8). A despeito de o embaixador estar correto quando afirma que o Executivo norte-americano não tinha muita flexibilidade de negociação, os subsídios do país eram a desculpa perfeita para os indianos e chineses defenderem o que mais queriam: garantir a flexibilidade de aumentar suas tarifas agrícolas por meio de salvaguardas automáticas. Se eles realmente quisessem proteger seus mercados contra importações norte-americanas subsidiadas, não estariam brigando por salvaguardas que prejudicam o Brasil e muitos outros países em desenvolvimento, mas sim concentrando seus esforços nos cinco produtos subsidiados pelos EUA: soja, milho, algodão, trigo e arroz. Argumento 3: Indianos e chineses não estavam prontos a aceitar um acordo em agricultura. "(...) tanto a Índia como a China estão longe de ter modernizado globalmente seus setores agrícolas e, portanto, consideram política e economicamente explosivo um deslocamento de suas já paupérrimas populações rurais pela competição com produtos oriundos de agriculturas eficientes e modernas" (Luiz F. Lampreia, Folha de S.Paulo, 31/7). Se explicada corretamente, essa afirmação faz sentido. No entanto, a rodada já acomodava os interesses desses países por meio das diversas flexibilidades que tinham à disposição para evitar reduções em suas tarifas agrícolas. Além do chamado tratamento especial e diferenciado, regra básica da OMC que garante aos países em desenvolvimento um tratamento diferente dos desenvolvidos, esses países ainda poderiam selecionar 18% de suas tarifas como produtos especiais sujeitos a cortes zero ou cortes mínimos. A China, como se não bastasse, ainda seria privilegiada por ser um país recém-admitido na OMC. Todos esses instrumentos garantiam a esses países o que eles precisavam para proteger seus produtores e evitar o tal "explosivo deslocamento para as cidades". Ambos estavam brigando pela salvaguarda especial oportunamente. Argumento 4: É ingenuidade pensar que um acordo era possível. "Acredito que se a desavença final não tivesse sido sobre a questão das chamadas salvaguardas especiais algum outro ponto teria surgido para que, em torno dele, se cristalizassem resistências momentaneamente insuperáveis" (Marcos C. Azambuja, Jornal do Brasil, 3/8). Nenhum tema era tão explosivo quanto essas salvaguardas, porque, ao contrário dos demais, não havia acomodação possível de interesses. As salvaguardas, da forma como concebidas pelo G-33 (grupo de países em desenvolvimento defensores e idealizadores do instrumento), levariam a um aumento nos níveis de proteção, e não à sua redução, como esperado numa rodada multilateral. Um acordo era perfeitamente possível desde que EUA e China-Índia cumprissem suas obrigações: o primeiro, aceitando as reduções necessárias para os subsídios ao algodão e o segunda, abrindo mão de uma salvaguarda que ia na contramão da liberalização. Argumento 5: Uma rodada que trouxesse ganhos sobretudo ao agronegócio não contribuiria para o desenvolvimento do Brasil. "Afinal, não deve passar pela cabeça de ninguém que um país com o nível de desenvolvimento e as características estruturais do Brasil (...) possa depender preponderantemente do setor agrícola" (Paulo N. Batista, Folha, 14/8). Industrializado e modernizado tecnologicamente (do plantio à distribuição), o agronegócio brasileiro já passou da fase da agricultura camponesa e de subsistência a la Índia. O setor, é verdade, tem seus problemas, mas sua contribuição para o desenvolvimento do País está fora de questionamento. O governo brasileiro cometeu erros no decorrer do processo negociador. Nenhum deles, no entanto, vale para os momentos finais da negociação. Ter ficado do lado de Argentina teria sido negar a importância do acordo para a agricultura brasileira. Ter-se bandeado para o lado de China e Índia, sob o pretexto de pressionar os americanos, ter-nos-ia obrigado a aceitar salvaguardas agrícolas altamente protecionistas. Não estamos em situação confortável sem a rodada. Talvez estivéssemos se tivéssemos investido mais nos acordos bilaterais.
André M. Nassar, engenheiro agrônomo formado pela ESALQ-USP, com doutorado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Desde julho de 2003 é Diretor Geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE). As principais áreas de atuação no ICONE são: negociações internacionais multilaterais e extra-regionais; desenho de cenários quantitativos e de projeções de longo prazo de comércio agrícola; política comercial agrícola em países desenvolvidos e em desenvolvimento; contenciosos da Organização Mundial do Comércio.
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