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Argentina e Índia, amizade de verão


Terça-feira, 24 de junho de 2008 - 16h21

Engenheiro agrônomo formado pela ESALQ-USP, com doutorado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Desde julho de 2003 é Diretor Geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE).


O recente movimento da Argentina, em conjunto com a Índia, de bater duro no tema da redução das tarifas dos produtos industriais no contexto das negociações multilaterais da Organização Mundial do Comércio (OMC) criou um problema adicional para o Brasil, país que exerce explicitamente o papel de grande interessado no fechamento da Rodada de Doha. Essa aliança Argentina-Índia, mesmo que oportunista e, provavelmente, momentânea, tem vários significados subliminares que precisam ser discutidos. Ao contrário do que se passa na cabeça de alguns setores industriais brasileiros - que estão dando sorrisinhos de canto de boca porque, das duas, uma: ou percebem essa iniciativa como uma forma de postergar o fechamento da rodada, ou esperam tirar proveito dela para obter maiores flexibilidades -, o movimento argentino-indiano está olhando para outros horizontes e é, na sua essência, oportunista. Um pouco de história recente vai a ajudar a entender o que está por trás dessa amizade de verão. Existem uns palavrões muito falados em negociações multilaterais: coalizões de geometria variável. Essa expressão sintetiza a idéia de que os países compartilham interesses específicos em certas áreas que os levam a formar coalizões que são, muitas vezes, conflitantes em outras áreas da negociação. Não é segredo para ninguém que Argentina e Índia são inimigas confessas. Mesmo no período áureo do G-20 - grupo de países em desenvolvimento que busca reduzir as tarifas e os subsídios dos países desenvolvidos no contexto da Rodada de Doha -, quando o grupo estava mergulhado em intenso trabalho técnico para produzir propostas de negociação, as tensões entre Argentina e Índia eram explícitas. No contexto do G-20, Argentina e Índia personalizavam os extremos: a primeira sempre assumiu posições extremamente ofensivas, defendendo com unhas e dentes a redução de tarifas e subsídios; já a segunda fazia esse jogo apenas quando o foco estava nos países desenvolvidos. Desde antes do lançamento da Rodada de Doha, a Índia assumiu a liderança dos interesses defensivos dos países em desenvolvimento. O país sempre afirmou que a Rodada de Doha era "do desenvolvimento" porque deveria criar mecanismos para proteger o setor agrícola dos países pobres. A troca de farpas dentro do G-20 era explícita e foi ganhando corpo à medida que os reais interesses de cada país afloravam. As relações se tornaram ainda piores quando o G-20 se aventurou a entrar no tema mais espinhoso para os países exportadores: as chamadas salvaguardas para países em desenvolvimento. Salvaguardas são tarifas adicionais colocadas sobre a tarifa normal com o objetivo de aumentar o nível de proteção de um determinado setor. Nas regras da OMC, o uso de uma salvaguarda está condicionado à comprovação de que as importações estão prejudicando a produção doméstica, justificando assim, o incremento da proteção tarifária. Acontece que os produtos agrícolas foram agraciados - neste caso, no mau sentido para o Brasil - com uma salvaguarda especial que não está condicionada a qualquer comprovação de dano. Quando o movimento pró-salvaguarda cresceu nas negociações, puxado por países como Índia, China e Indonésia, a Argentina rapidamente se articulou com o Paraguai e o Uruguai e apresentou uma importante proposta que pôs ordem na discussão. Embora nosso governo não tenha apoiado essa proposta, ela caiu nas graças do setor privado agrícola brasileiro. Afinal, era a única proposta aceitável para um mecanismo que poderia levar a um retrocesso nas condições de acesso aos mercados dos países em desenvolvimento. Enquanto se discutiam os temas agrícolas dentro do G-20, Argentina e Índia iniciavam um namoro no tema das tarifas industriais. Esse namoro, que começou a três, teve, por um bom tempo, nome e sobrenome: fórmula ABI. Essa fórmula consistiu numa proposta conjunta de Argentina, Brasil e Índia, que tinha como objetivo reduzir o grau de profundidade dos cortes nas tarifas industriais dos países em desenvolvimento. Essa fórmula foi bastante importante para manter as negociações de agricultura e produtos industriais balanceadas - a principal barganha da Rodada de Doha. No contexto da fórmula ABI, da qual muito se falou entre meados de 2005 e 2007, a estratégia era clara: os países desenvolvidos queriam acelerar as negociações de produtos industriais e frear as de produtos agrícolas. Os ABIs fizeram o que tinham de fazer: frear a negociação industrial. Muita gente deve estar imaginando que o movimento Argentina-Índia é um prolongamento dessa estratégia. Não compartilho esta opinião. A meu ver, esse movimento é uma reação oportunista de ambos os países, que perceberam tardiamente que a negociação está, de fato, balanceada. O discurso dos argentinos em prol de maior abertura do mercado agrícola mundial soa pouco real hoje em dia. A crise vivida no setor, fruto de uma política absurda do governo de taxar pesadamente as exportações de produtos agropecuários, coloca um grande ponto de interrogação sobre a sustentação econômica da agropecuária argentina. Se esta política for mantida, a safra 2008-2009 já dará sinais de fadiga do setor, interrompendo o ciclo de expansão observado nos últimos anos. Interesses ofensivos em agricultura não são motivação para mais nada na Argentina no que diz respeito às negociações internacionais. A meu ver, os argentinos estão atrás de compensações e já sabem quem vai pagar a conta: o Brasil. E os indianos? Na qualidade de hábil negociadora, a Índia sabe aonde quer chegar nessa negociação: fazer um acordo que leve ao mínimo esforço necessário nos seus setores agrícola e industrial. Na agricultura, o país já logrou sucesso. Na indústria, está quase lá. O movimento Argentina-Índia é uma amizade de verão. Quando chegar o inverno no Hemisfério Norte, a amizade deve-se dissolver.
André M. Nassar, engenheiro agrônomo formado pela ESALQ-USP, com doutorado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Desde julho de 2003 é Diretor Geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE). As principais áreas de atuação no ICONE são: negociações internacionais multilaterais e extra-regionais; desenho de cenários quantitativos e de projeções de longo prazo de comércio agrícola; política comercial agrícola em países desenvolvidos e em desenvolvimento; contenciosos da Organização Mundial do Comércio.
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