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Scot Consultoria

Os desafios da pecuária


Quarta-feira, 11 de novembro de 2009 - 15h21

Convido os leitores mais veteranos do que eu na pecuária a um exercício de memória (já fiz isso em outro artigo, mas vale a pena repetir). Pensem em quais eram as exigências há 20 ou 30 anos, no momento da venda dos animais terminados. Acredito que a maioria está matutando sobre algo do tipo: “Ah, era necessário apenas que o boi estivesse com um mínimo de 15 arrobas”. Hoje não é mais assim. Não só porque o peso mínimo aumentou, mas principalmente porque outras exigências surgiram. A maior parte delas relacionadas ao que chamamos de qualidade de processos. Em outras palavras, à forma como é conduzida a atividade. Questões relacionadas à qualidade de produto, ou seja, à cobertura de gordura, à maciez, ao pH da carne, ao tamanho da peça, etc., vêm ganhando importância. Porém, são as exigências sócio-ambientais, a rastreabilidade, os aspectos sanitários e as certificações diversas que realmente estão tornando a produção pecuária cada vez mais cara. Não bastasse isso, é preciso lidar ainda com a desvalorização da arroba (como qualquer commodity, e apesar dos ciclos, o boi tende a perder valor no longo prazo) e com o aumento dos custos de produção. Afinal, os gastos com mão-de-obra e os preços de alguns insumos tendem, ao contrário do boi, a superar a inflação no longo prazo. Em síntese, os desafios que incidem sobre a pecuária, que já não eram poucos, estão se avolumando. O objetivo deste artigo é discorrer sobre alguns deles (apenas três), analisando de que forma eles impactam a atividade e, se possível, quais são as saídas para minimizar esses impactos. Desvalorização da arroba Vamos considerar que um pecuarista possui produtividade média de quatro arrobas por hectare ano (mais ou menos a média brasileira) e que ela tem se mantido constante de 1970 até hoje, ou seja, ele não aumentou a escala de produção. O que aconteceu com a receita desse pecuarista? Ela caiu a menos da metade, em termos reais. Afinal, a cotação do boi gordo variou abaixo da inflação (e bem abaixo) ao longo dos últimos anos. Veja a figura 1. Essa é a regra dos mercados de commodities. Como as margens são pequenas, uma vez que não é possível agregar valor em termos de marca, busca-se ganhos em escala. Portanto, apesar dos ciclos mais favoráveis e menos desfavoráveis aos investimentos, a tendência de longo prazo é que a produção se mantenha em crescimento, num ambiente de concentração da ponta compradora (veja a seguir). O esperado, portanto, é que o produto (no caso o boi) perca valor com o passar dos anos. Concentração de compradores Nossa opinião a respeito da concentração do setor frigorífico foi apresentada na edição 80 da Carta Boi e em outras análises disponíveis em nosso portal (www.scotconsultoria.com.br). O importante aqui é deixar claro duas coisas: 1. A concentração tem aspectos positivos (principalmente em termos “macro”) e negativos (principalmente em termos “micro”). Ocorre, inegavelmente, um aumento de poder de barganha, que tende a ser usado no aumento ou na preservação da margem da indústria. E como o boi responde por 80% do custo de produção da carne, a pressão sobre os pecuaristas pode aumentar. 2. Esse processo de concentração é inexorável. A carne, assim como o boi, é commodity. Portanto, os ganhos em escala (aumento de receita + redução ou otimização de custos fixos) são pré-requisitos de sucesso. Hoje, a Scot Consultoria estima que apenas duas empresas concentrem quase 30% da capacidade de abate do Brasil. Se considerarmos somente o parque sob inspeção federal (SIF), essa concentração orbita os 49%. Pressão ambiental Acompanhe o raciocínio. O aquecimento global tem sido aceito como verdade universal (apesar das controvérsias dentro da própria comunidade científica) . O desmatamento e a pecuária bovina de corte (atividades consideradas “interligadas”) têm sido apontados como dois dos principais responsáveis pelo problema. E qual é o país que, além de ter a maior pecuária do planeta, também é um dos únicos que ainda tem remanescente florestas em grande quantidade? A pecuária brasileira está com um alvo enorme nas costas. A histeria em torno do tema sustentabilidade já tem causado estragos: 7% de queda para o boi gordo paraense em junho/09 (ação do Ministério Público contra frigoríficos locais); pactos privados contra a compra de gado de áreas desmatadas, mesmo que de forma legal; dificuldade de acesso a financiamentos; multas; campanhas contra o consumo de carne, etc. E, assim como a concentração do setor frigorífico, os impactos negativos da pressão ambiental não devem parar por aí. Na Carta Boi 78, “Elasticidade-baboseira da demanda por carne bovina”, fizemos uma simulação do potencial de perda de mercado caso 2% da população brasileira seja susceptível às campanhas difamatórias contra a carne bovina (campanhas que a associam à destruição do meio ambiente). A demanda cairia em mais de 140 mil toneladas equivalente carcaça. Talvez estejamos presenciando o surgimento da segunda barreira não tarifária mais importante para a carne bovina brasileira, atrás apenas da febre aftosa. Ao menos os nossos concorrentes já estão de olho nessa oportunidade. Como disse o Sr. Padriag Walshe, presidente da Associação dos Fazendeiros Irlandeses (IFA – sigla em inglês), em entrevista para o The BeefSite (agosto de 2009): “A União Européia está fechando os olhos para o dano ambiental causado pelo desmatamento ilegal da Floresta Amazônica”. O que fazer? Gestão, tecnologia e organização são palavras de ordem. A incorporação de tecnologia, desde que bem conduzida, promove ganhos em escala, através do incremento de produtividade. Isso significa, de um lado, aumento de receita. De outro, redução ou otimização de custos fixos e varáveis indiretos (depreciações, colaboradores, administrativos, água, energia...). É a lógica adotada pelos grandes frigoríficos. Os resultados econômicos são melhores quando se trabalha com tecnologia (tabela 1). Além do mais, o aumento da produtividade reduz a necessidade de abertura de novas áreas, bem como a emissão de gases de efeito estufa por quilo de carne/derivados bovinos produzidos (apesar de existirem números discutíveis no que diz respeito a essa questão). Porém, tecnologia não caminha sem gestão. É necessário definir a tecnologia e o setor em que ela será empregada, angariar recursos (na própria empresa ou no mercado), estabelecer um cronograma de implantação, mensurar resultados e realizar as devidas correções, caso sejam necessárias. Quantos casos de insucesso conhecemos em que o erro não estava na técnica, e sim na sua implantação e condução? Por fim, depois da casa arrumada (e antes de qualquer coisa é preciso, realmente, arrumar a casa), parte-se para a organização como setor, ou seja, para a busca (ou aumento) de representatividade setorial, seja por meio de associações, grupos, cooperativas, sindicatos, etc. Essas organizações podem buscar maior poder de barganha na aquisição de produtos e serviços e/ou no escoamento da produção. Podem buscar agregação de valor através de melhorias em qualidade de processo e/ou produto. Podem atuar no compartilhamento de informações e na incorporação de conhecimento, através de cursos e treinamentos. Podem trabalhar a defesa de imagem e de interesses (lobby) junto à mídia e instituições diversas. E por aí vai. Temos alguns exemplos, como a ASSOCON, a ABRAPEC, a APROVA... Além de algumas associações de raça que ao longo dos últimos anos deixaram de focar apenas a questão genética e passaram a atuar também nas áreas descritas no parágrafo anterior. Destaque para a Nelore e para a Angus. O grande desafio desses grupos/associações/cooperativas, depois de montados, é o de se manterem atuantes. O que só é possível com uma gestão (é... gestão de novo) eficiente e com a manutenção do crescimento, seja com a entrada de novos associados e/ou com o desenvolvimento de ações conjuntas com outros grupos/associações/cooperativas. É a tal da busca por “sinergias”, para usar uma palavra da moda. Considerações finais A pecuária está em constante transformação. Modelos de negócio que deram certo no passado podem deixar de proporcionar bons resultados frente aos desafios atuais e àqueles que ainda irão surgir (exigências não diminuem, só aumentam). Engessar o pé sobre eles, portanto, não parece ser uma boa estratégia de sobrevivência.
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