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Scot Consultoria

O gargalo está na cria


Segunda-feira, 31 de agosto de 2009 - 08h20

Entre 1998 e 2008 a produção brasileira de carne bovina aumentou 67%, frente ao crescimento de 19% do rebanho e à retração de 1% das áreas de pastagem (tabela 1). A expansão da pecuária brasileira, portanto, se deu através de incorporação de tecnologia. A questão é que, no campo, essa incorporação de tecnologia não tem se dado de forma homogênea quando analisamos as diferentes etapas ou atividades que envolvem a produção de carne bovina. Essa observação é empírica, mas acredito que a maior parte dos leitores irá concordar comigo. A cria é a atividade que, naturalmente, menos responde à aplicação de tecnologia, o que não significa que ela não o faça. Porém, por maior que seja o investimento, não há como reduzir para menos de nove meses o período de gestação das vacas. Também não é possível fazer com que uma matriz gere mais de uma cria por parto. Outra questão é que, tradicionalmente, os rebanhos de cria são direcionados às regiões de solo mais pobre e/ou de capim de pior qualidade, o que afeta negativamente a produtividade. A atividade, por apresentar resultados mais modestos, está mais propensa a se deslocar para as regiões de terra mais barata, as regiões de fronteira, onde mesmo que a produtividade das forragens seja satisfatória (como é o caso do Norte do Brasil), os recursos humanos e tecnológicos normalmente são menos abundantes e, por vezes, mais custosos. Dentro desse contexto, vale destacar que a “pressão ambiental”, que incide sobre a pecuária no Norte do país, prejudica de forma especialmente severa a expansão da cria, já que essa é a atividade que tradicionalmente se estabelece em áreas novas, ao mesmo tempo em que possui potencial mais comedido em compensar a perda de espaço (ou a impossibilidade de ampliá-lo) com aumento de produtividade. O mesmo raciocínio vale quando consideramos a expansão da agricultura sobre as áreas de pastagem. Qual a atividade pecuária que mais cedeu espaço para a soja, o milho, a cana e o eucalipto? – A cria. E apesar da cria ser, notadamente, a atividade que nos últimos anos tem enfrentado mais dificuldades de desenvolvimento (e a valorização do bezerro nada mais é do que um resultado disso), a cadeia produtiva estabeleceu um “modelo de negócios” ou uma “rede de apoio” muito mais focada na recria-engorda. Esse modelo de negócios, ou rede de apoio, envolve financiamento privado (fundos de investimentos e instituições financeiras colocando dinheiro na engorda de boi), apoio das empresas do setor de insumos (notadamente do segmento de nutrição animal), programas especiais de compra por parte dos frigoríficos, verticalização (a indústria partindo para a engorda) e a criação de grupos de produtores com foco em compartilhamento de informações e aumento do poder de barganha. Por conta disso tudo, a balança da pecuária pode ficar pensa. Exemplificando Consideremos, hipoteticamente, dois rebanhos, um de cria e um de recria-engorda. A taxa média de desmama, do rebanho de cria, é de 55%. O ganho de peso médio do rebanho de recria-engorda, considerando 450g/cab/dia nas águas (245 dias no ano) e nada na seca (120 dias no ano) é de aproximadamente 302g/cab/dia. Veja que ambas as atividades, portanto, têm como ponto de partida o fato de estarem sendo exploradas sob baixo nível de tecnologia. Vamos supor que o criador do nosso exemplo faça uma “revolução” em sua fazenda, aprimorando a genética, a sanidade, a nutrição e os manejos de forma geral, chegando a uma taxa de desmama da ordem de 80%. Um trabalho homérico, sendo que a nova taxa já pode ser considerada bastante próxima do “ótimo técnico” (o máximo que realmente é possível de ser alcançado na prática). A produção da fazenda aumentaria em pouco mais de 45%. Agora o nosso invernista. Considerando que ele adquira bezerros de 7 arrobas e venda bois gordos com 16,5 arrobas, ele teria uma taxa de desfrute de 39%, com um ganho de peso médio de 302g/cab/dia. Seu ciclo de produção seria de aproximadamente 31 meses, com os animais sendo terminados aos 39 meses de idade. Mas se esse invernista entrar com sal proteinado na seca, passando de zero para 200g/cab/dia de ganho de peso nos 120 dias sem chuva, o ganho de peso médio anual passaria para 368g/cab/dia. A taxa de desfrute, considerando os mesmos pesos de entrada e de saída, saltaria para 47%. Um aumento de 22%, adotando uma tecnologia relativamente simples para o qual ele contaria, na sua implantação e condução, com amplo suporte técnico do seu fornecedor de sal. Só que ele ainda está bem longe do “ótimo técnico”. A produção pode aumentar mais. E aí o nosso invernista decide investir em confinamento. Afinal, o investimento não é tão elevado, tem dinheiro na praça (esqueça a crise financeira, que tira tudo do contexto) e a empresa de suplementos minerais, a qual ele é cliente, fará o projeto, treinará a mão-de-obra, formulará a dieta, ajustará o maquinário, procederá com as checagens e o ajudará na administração disso tudo. Os animais ganharão 368g/cab/dia a pasto, onde permanecerão de 7 a 13 arrobas. Depois, vão para o cocho, com ganho de peso médio de 1,6kg/cab/dia, saindo com 16,5 arrobas. A taxa de desfrute da fazenda aumentaria para 66%, um aumento de 70% em relação ao desfrute inicial, que era de 39%, considerando apenas o incremento no ganho de peso. Na prática, a lotação da fazenda também aumentaria e ela passaria a produzir ainda mais animais por ano, gerando maior necessidade de reposição em termos absolutos. Acompanhe as simulações na tabela 2. Se o criador do nosso exemplo quisesse promover um incremento de 70% na sua produção, a fim de acompanhar o invernista, precisaria alcançar uma taxa de desmama de aproximadamente 94%. Isso, na prática, não existe. O ótimo técnico foi superado antes. Já o nosso invernista ainda pode trabalhar com adubação de pastagens, pivô central, sal proteinado de alto consumo nas secas (ou algum outro tipo de suplementação mais pesada antes do confinamento), suplementação nas águas, etc. etc. Enquanto o limite da cria parece estar bem estabelecido, o da recria-engorda é até difícil de enxergar. E essa distorção aumenta quando a cadeia sai no encalço, justamente, da atividade de maior potencial de expansão. Futuro Mantendo-se essa tendência, seria de se esperar que, no longo prazo (a despeito das oscilações normais), o ágio médio do bezerro em relação ao boi gordo aumentasse, que as relações de troca cedessem e, conseqüentemente, que os custos da recria-engorda avançassem um degrau. Logicamente ainda sentiríamos os efeitos do ciclo pecuário, ou seja, do abate e da retenção de matrizes atuando sobre a oferta e, conseqüentemente, sobre os preços de bezerros e animais terminados. Continuariam, portanto, a se alternar anos mais favoráveis à cria e anos mais favoráveis à recria-engorda. Porém, as variações de preço do bezerro tenderiam a ser mais brandas nas fases de baixa e mais intensas nas fases de alta. Tal cenário poderia fazer com que a produção de bezerros, no Centro-Sul do Brasil, voltasse a ser viável. A importância da cria se tornaria mais evidente, chamando a atenção da cadeia para o desenvolvimento de um modelo de negócios que daria suporte à expansão da atividade. Em outras palavras, o pacote hoje oferecido à recria-engorda finalmente chegaria ao estágio inicial da produção. E aí a balança da pecuária, algum dia, voltaria a se equilibrar. Até lá, o Brasil poderá encontrar, na cria, um gargalo à expansão da produção de carne bovina.
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