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Scot Consultoria

Na pele dos Estados Unidos


Terça-feira, 12 de dezembro de 2006 - 17h05

Em dezembro de 2003 os Estados Unidos divulgaram a descoberta de um caso de encefalopatia espongiforme bovina, o mal da vaca louca, no estado de Washington. Belo presente de Natal! Naquele ano os norte-americanos exportaram, de acordo com seu Departamento de Agricultura (USDA), aproximadamente 1,142 milhão de toneladas equivalente carcaça de carne bovina. A Austrália embarcou 1,264 milhão de toneladas. O Brasil, segundo nossas estatísticas, algo em torno de 1,263 milhão de toneladas. Houve praticamente um empate técnico entre os três. Se fossem tomados como referência os números da FAO (órgão das Nações Unidas para questões de agricultura e alimentação), para ilustrar o desempenho de Austrália e Estados Unidos, ter-se-ia o Brasil à frente, com ligeira vantagem sobre os australianos. De toda forma, independentemente da fonte, ficou claro que, em 2003, a disputa pelo “posto” de maior exportador mundial de carne bovina estava acirrada. Veja na figura 1 a distribuição das exportações mundiais de carne bovina em 2003. Porém, em 2004, após a vaca louca, as exportações norte-americanas declinaram para 209 mil toneladas, uma retração de 82%. Tal resultado equivale atualmente ao que o Brasil exporta num único mês. A participação das exportações dos Estados Unidos no mercado mundial, que era de 18%, caiu para 2%. As participações de Brasil e Austrália, por sua vez, evoluíram para 25% e 22%, respectivamente. Os Estados Unidos tiveram que arcar com prejuízos da ordem de dezenas de bilhões de dólares. Tristeza de um, alegria de outros. Os norte-americanos cederam, a contragosto, mercados para os concorrentes. E deram início, via redução de oferta, ao movimento de alta dos preços internacionais. Acompanhe a figura 2. Mas eles estão voltando. De 2004 para 2005 as vendas externas de carne bovina dos Estados Unidos evoluíram 52%, alcançando 317 mil toneladas equivalente carcaça. Em 2006 eles esperam mais 65% de crescimento, o que levaria os embarques para 523 mil toneladas. E pode ser mais. As atualizações mais recentes, que se referem ao acumulado de janeiro a setembro de 2006, dão conta de um aumento de 87% em relação ao mesmo período do ano passado. E para 2007 o USDA estima ainda um avanço de 30%. Nesse caso, na escala de grandeza entre exportadores, os Estados Unidos chegariam à quarta posição, atrás apenas do Brasil, da Austrália e da Índia. Em 2004 eles haviam despencado para o oitavo lugar. Essa história toda merece algumas ponderações. Para ilustrar melhor, abusando um pouco da imaginação, traçamos um paralelo com o Brasil. Deixamos claro, contudo, que não acreditamos que a doença apareça por aqui. Nosso sistema de produção é baseado em pastagens e em suplementos de origem vegetal. Além do mais, está proibido o uso de produtos e subprodutos de origem animal (farinha de sangue, farinha de carne, etc.) na alimentação de ruminantes. Mas é preciso considerar, primeiro, que não existe risco zero em biologia. Tanto é que a própria comunidade internacional ainda não concedeu ao Brasil o status de zona livre de encefalopatia espongiforme bovina. Já a Austrália, para variar, conquistou tal deferência. Segundo, as comparações a serem feitas poderão ser extrapoladas para problemas mais pertinentes à nossa realidade produtiva e comercial. Nesse caso, destaque para a febre aftosa. Primeira ponderação. O consumo de carne bovina nos Estados Unidos não caiu com o advento da vaca louca. Pelo contrário, o consumo per capita, de acordo com o USDA, passou de 42,5 kg em 2003 para 43,2 kg em 2004, um aumento de quase 2%. Em números absolutos, evoluiu de 12,340 milhões de toneladas para 12,667 milhões toneladas. Já na Europa, entre 2000 e 2001, quando a vaca louca passeou por lá, o consumo per capita de carne bovina recuou 8,5%, passando de 20,2 kg para 18,5 kg. O consumo total caiu de 7,583 para 6.939 milhões toneladas. Por que nos Estados Unidos o consumo não caiu? Segundo uma amiga jornalista, “porque os norte-americanos comem qualquer coisa”. Pode ser. Mas é preciso considerar também que, no dia seguinte à descoberta da doença, a cadeia produtiva local já estava na mídia – no rádio, na internet e na TV – prestando esclarecimentos sobre a doença e atestando que não havia riscos em se consumir a carne nacional. Os consumidores, bem informados, aproveitaram os preços baixos (reflexo do direcionamento da carne, que antes seria exportada, para o mercado interno) para comer mais, não menos. O fato ajudou a amenizar os prejuízos gerados pela vaca louca. E se fosse no Brasil? Suspeito que seria um desastre. Afinal, nossa cadeia produtiva não prima pela organização. Ou melhor, os elos são organizados e eficientes quando atuam separadamente, cada um na sua. Mas se é para fazer algo em uníssono... O resultado, normalmente, não é nada satisfatório. Para ilustrar, tem-se o exemplo recente da descoberta de focos de febre aftosa no Mato Grosso do Sul e no Paraná, ao final de 2005. Lembro de alguns fatos pitorescos da época: matérias em jornais e programas de TV que mostravam a população comprando carne de frango, carne suína e até peixe, com medo da “febre do boi”; declarações de autoridades e de agentes do setor, afirmando que os prejuízos, apenas em exportação, seriam da ordem de US$2,00 a US$3,00 bilhões; governo do Paraná e União trocando acusações e discutindo se realmente havia ou não casos de aftosa no Estado (e até agora persiste a dúvida); e por aí vai. Só confusão, boatos e especulações. O problema, que já era grave, tomou proporções dantescas, graças ao despreparo da cadeia para lidar, de forma organizada, com a questão. Foram precisos alguns meses para que o mercado se acalmasse e, por força dos fatos, voltasse a operar normalmente. Segunda ponderação. Apesar da queda das exportações, em 2004 os parceiros norte-americanos do Nafta (Canadá e México), na contramão das medidas adotadas pelo demais clientes, aumentaram as compras de carne bovina dos Estados Unidos em 4%, em relação a 2003. Isso é o que chamamos de cooperação. E se fosse no Brasil? Provavelmente aconteceria o contrário. Basta lembrar que nossos “parceiros” de Mercosul, notadamente Argentina e Paraguai, estiveram entre os primeiros países a levantar embargos à carne brasileira, mediante a divulgação de focos de aftosa no MS. Outro colega de continente, o Chile, até agora não derrubou boa parte das restrições comerciais. Vale destacar também que Brasil e Paraguai até hoje trocam acusações sobre a origem dos últimos focos, bem na fronteira entre os dois países, enquanto as medidas integradas de controle e combate à doença apenas pairam no limbo das boas intenções. A política da boa vizinhança não é o forte da América do Sul. Terceira ponderação. Os Estados Unidos já estão recuperando mercados, mas todos têm feito as mesmas exigências: compram apenas carne sem osso, que obrigatoriamente devem ser provenientes de animais abatidos com menos de 30 meses de idade. Ou seja, os Estados Unidos só têm conseguido exportar carne de novilho precoce. Ora, a média de idade de abate no Brasil é de aproximadamente 42 meses. Em situação semelhante, será que o Brasil conseguiria juntar 680 mil toneladas de carne, que é a estimativa de exportação norte-americana em 2007, via abate de animais jovens? Isso equivale a quase 3 milhões de cabeças. É pelo menos 1 milhão de cabeças a mais do que o volume de gado confinado no País este ano. Portanto, por conta de uma limitação no sistema produtivo, o desafio brasileiro para a retomada de mercados em caso de vaca louca (credo, cruz!) seria ainda maior. Existem outros pontos a serem discutidos. Pincei alguns apenas para serem usados de gancho nessa conclusão: a cadeia produtiva da carne bovina brasileira ostenta sérios problemas de coordenação. Está mal preparada para o enfretamento de crises. A aftosa deixou isso bastante claro há alguns meses, mas muito pouco, em termos práticos, foi feito para minimizar os riscos de que venha a ocorrer um novo susto como esse e/ou para facilitar a retomada do controle da situação caso a doença volte mesmo a aparecer. As atenções estão voltadas para o início de novo ciclo pecuário, e o problema vem sendo deixado de lado. Já não é mais citado em rodas de discussão, sumiu das programações de cursos e seminários. Isso é perigoso. Imagine o Brasil, ao final de 2003, no lugar dos Estados Unidos. Papai Noel deixa uma vaca louca de presente. O baque, como foi com os norte-americanos, seria pesado. A grande pergunta é: apresentaríamos o mesmo poder de reação?
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