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Regulação europeia antidesmatamento: uma visão jurídica ambiental, de planejamento territorial e de governança

por Pedro Puttini Mendes
19/08/2025 - 06:00

O comércio internacional de produtos agropecuários vive uma profunda e silenciosa transformação: a rastreabilidade deixou de ser uma exigência restrita a nichos de mercado e passou a ser uma condição para acessar grandes blocos econômicos.

A União Europeia (UE), união política e econômica de 27 estados-membros é uma força política e econômica significativa no cenário mundial, onde decisões geralmente são tomadas em conjunto pelas instituições, com o Parlamento e o Conselho geralmente decidindo em igualdade de condições sobre a legislação da EU, combinando assuntos como economia, comércio, agricultura, ambiente, transportes, energia, segurança, justiça, entre outras.

Neste sentido, surge a EUDR.

A EUDR (European Union Deforestation Regulation) se destaca como o novo marco regulatório global contra o desmatamento, criando obrigações para quem vende para a União Europeia.

Esta norma inaugura uma nova era de regulação baseada em evidências territoriais, onde dados georreferenciados e compliance ambiental serão determinantes para a competitividade do agronegócio brasileiro no cenário global.

A norma europeia não se limita a verificar documentos ou certificações tradicionais, exige prova territorial concreta de que produtos como carne bovina, soja, café, cacau, madeira, borracha e óleo de palma - além de derivados como couro, papel, etc - não estão associados a áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020.

Essa mudança traz desafios e pode reposicionar a imagem do Brasil como fornecedor confiável de alimentos e commodities sustentáveis.

O que é a EUDR e como ela afeta o agronegócio brasileiro

A EUDR¹ criada pelo Regulamento (UE) nº 2023/1.115 visa impedir a entrada de produtos associados ao desmatamento em seu mercado, aprovada em 2023, foi publicada no Jornal Oficial da União Europeia em 31/05/2023.

Com isso, a norma entrou em vigor em 20 de junho de 2023, vinte dias após a publicação, conforme seu artigo 38º e a partir disso, contam-se os prazos para aplicação: 18 meses para grandes empresas, ou seja, 20 de dezembro de 2024, e 24 meses para micro e pequenas empresas, correspondendo a 20 de junho de 2025.

¹Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2023/1115/oj. Acesso em 05/08/2025.

Em 14 de novembro de 2024, o Parlamento Europeu aprovou em plenário alterações relevantes na EUDR, incluindo o adiamento da sua entrada em vigor por 12 meses e a criação de uma nova categoria de países “sem risco” no sistema de benchmarking.

Com essa mudança, o início da aplicação passou para 20 de dezembro de 2025 para grandes empresas e 20 de junho de 2026 para micro e pequenas empresas.

Para fins de aplicação da EUDR, as categorias de empresas seguem o artigo 3.º da Diretiva 2013/34/UE², adotado pelo artigo 2.º, item 30, do Regulamento (UE) 2023/1115.

Tabela 1.
Classificação de Empresas para Aplicação da EUDR.

CategoriaAtivos (Total do Balanço)Faturamento Anual (Volume de Negócios)Nº Médio de Empregados
Microempresa ≤ 350 mil € ≤ 700 mil € ≤ 10
Pequena empresa ≤ 4 milhões € (máx. 6 milhões €) ≤ 8 milhões € (máx. 12 milhões €) ≤ 50
Média empresa ≤ 20 milhões € ≤ 40 milhões € ≤ 250
Grande empresa > 2 dos 3 critérios acima > 2 dos 3 critérios acima > 2 dos 3 critérios acima

Fonte: Pedro Puttini

Microempresas são aquelas que não ultrapassam dois dos três limites e médias empresas são as que não se enquadram como micro ou pequenas e que não excedem dois dos três critérios.

Enquanto isso, no Brasil, segundo o Atlas do Espaço Rural Brasileiro, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020, 81,0% dos estabelecimentos agropecuários no país tinham até 50 hectares, ocupando apenas 12,8% da área total dos estabelecimentos no Brasil. Em contraste, apenas 0,3% dos estabelecimentos possuíam mais de 2.500 hectares, mas ocupavam 32,8% da área total dos estabelecimentos agropecuários do país.

Portanto, seriam aproximadamente 89,0% de pequenos imóveis rurais (entre 1 e 4 módulos fiscais), 9,0% de médios imóveis rurais (entre 4 e 15 módulos fiscais) e 2,0% são grandes imóveis rurais (acima de 15 módulos fiscais).

Em 2023, o Brasil teria exportado¹ cerca de US$46,3 bilhões (€42,0 bilhões) em produtos que estão no foco da EUDR e estima-se que até um terço das exportações brasileiras para a UE possa ser afetado, gerando impactos na ordem de US$15,0 bilhões se a norma for aplicada integralmente.

²Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32013L0034. Acesso em 05/08/2025.

³Disponível em: ‘Punitive instrument’: Brazil says EU deforestation laws will affect one third of exports | Euronews. Acesso em 05/08/2025.

Segundo a “Carta Conjuntura” da Scot Consultoria publicada em 16/01/2025, em 2024, as exportações brasileiras de produtos agropecuários para a União Europeia somaram aproximadamente US$18,1 bilhões, considerando os valores Free on Board (FOB).

Entre os produtos mais relevantes estão o café não torrado, com US$5,5 bilhões e 1,35 milhão de toneladas, a carne bovina, com US$448 milhões e 620,0 mil toneladas, além de farelo de soja e outros alimentos para animais, que juntos atingiram US$4,2 bilhões em 9,9 milhões de toneladas.

Outros produtos de destaque incluem soja em grão (US$2,9 bilhões), celulose (US$2,4 bilhões), suco de frutas e vegetais (US$1,7 bilhão) e frutas e nozes frescas ou secas (US$722,0 milhões).

Ao que parece, há um desafio relevante, no sentido de que a maior parte das exportações brasileiras para a União Europeia, depende de cadeias produtivas compostas por pequenos e médios imóveis rurais, que dificilmente possuem estrutura de governança corporativa ou recursos financeiros para atender às exigências de rastreabilidade e due diligence impostas às grandes empresas no padrão europeu.

Houve manifestação formal com o caráter considerado “unilateral e punitivo” da regulamentação, que desconsidera diferenças entre desmatamento legal e ilegal e impõe custos elevados de rastreabilidade, mas as autoridades europeias indicam que pretendem avançar com a implementação para reduzir a pegada de desmatamento do consumo europeu.

Mesmo com baixa proporção estes mercados que exigem comprovação de sustentabilidade tendem a pagar valores adicionais pela segurança jurídica e ambiental, além de servir como vitrine global de conformidade ambiental, o que representa uma boa oportunidade para o Brasil ao contornar estes desafios.

O impacto recai sobre toda a cadeia produtiva, já que será exigida rastreabilidade completa e documentação de diligência devida (due diligence), comentado a seguir.

Os desafios documentais da EUDR: o due diligence

due diligence conhecida como diligência prévia, é um processo de investigação e análise aprofundada antes de uma transação, investimento ou parceria para identificar verificar a conformidade legal, auxiliando na tomada de decisões mais informadas e seguras.

A implementação da due diligence pode exigir investimentos significativos em tecnologia, pessoal e treinamento, além de custos associados à coleta e análise de dados e à auditoria de fornecedores, que podem não ter o conhecimento ou os recursos para atender aos requisitos do EUDR, especialmente em relação à coleta de dados de geolocalização e à avaliação de risco.

O objetivo central da norma é claro: garantir que apenas produtos livres de desmatamento e em conformidade com a legislação local possam ser comercializados na Europa. Segundo o artigo 3º da norma, parece relativamente simples cumprir as exigências visto que o dispositivo legal é sucinto:

Os produtos de base em causa e os produtos derivados em causa não podem ser colocados nem disponibilizados no mercado, nem exportados, a menos que estejam preenchidas todas as seguintes condições:

a) Não estarem associados à desflorestação;

b) Terem sido produzidos em conformidade com a legislação aplicável do país de produção;

c) Estarem abrangidos por uma declaração de diligência devida.

A EUDR exige que cada produto exportado seja rastreável até as parcelas de terra georreferenciadas onde foi produzido, com indicação do período de produção e comprovação de que não houve desmatamento após 31 de dezembro de 2020 (art. 2º, 13, a, EUDR).

Além disso, o operador deve apresentar informações conclusivas e verificáveis de que a produção atende à legislação do país de origem e não está associada à degradação florestal, em linha com os requisitos do artigo 9º do Regulamento (UE) 2023/1115.

Tabela 2.
Exigências da Declaração de Diligência devida (Due Diligence).

ItemExigênciaBase Legal
a Descrição do produto (nome comercial, tipo, espécie no caso de madeira) Art. 9º, 1(a)
b Quantidade do produto, em kg, volume ou unidades Art. 9º, 1(b)
c País de produção e, se aplicável, partes do país Art. 9º, 1(c)
d Geolocalização de todas as parcelas de terra onde o produto foi produzido, com data ou período de produção; para bovinos, inclui todos os estabelecimentos onde foram mantidos Art. 9º, 1(d)
e Nome, endereço e contato dos fornecedores Art. 9º, 1(e)
f Nome, endereço e contato dos compradores na UE Art. 9º, 1(f)
g Informações conclusivas e verificáveis de que os produtos não estão associados ao desmatamento Art. 9º, 1(g)
h Informações conclusivas e verificáveis de que os produtos foram produzidos em conformidade com a legislação do país de origem Art. 9º, 1(h)

Fonte: Pedro Puttini

Para produtos derivados de bovinos, a geolocalização deve abranger todos os estabelecimentos por onde os animais tenham sido mantidos, de modo que a cadeia produtiva possa demonstrar a conformidade ambiental do lote exportado.

Atualmente, o sistema de rastreabilidade mais utilizado para a carne bovina cobre apenas o último elo da cadeia antes do abate - ou seja, a fazenda onde o animal foi engordado. E esse tipo de controle não é comum na realidade da maior parte das cadeias produtivas brasileiras.

Ou seja, é um desafio técnico, logístico e financeiro enorme, especialmente para o pequeno e médio produtor, que muitas vezes ainda depende de ferramentas básicas de gestão.

O agronegócio em sua definição completa, conta com uma grande quantidade de relações de complexas cadeias de suprimentos que podem ser longas, envolvendo múltiplos fornecedores e níveis de produção, dificultando a rastreabilidade e a coleta de informações precisas sobre a origem dos produtos.

Isto tudo reflete um dilema jurídico e econômico legítimo - especialmente para os pequenos e médios produtores, já que a rastreabilidade georreferenciada exigida pelo EUDR impõe um ônus operacional e financeiro considerável para muitos produtores brasileiros, especialmente os que atuam em regiões mais afastadas ou sem acesso à tecnologia adequada.

Haverá impactos diferenciado entre os setores exportadores brasileiros, pois em cadeias como café e soja, apresentam maior capacidade de adequação devido à organização produtiva e à presença de cooperativas, tradings e sistemas de certificação já consolidados, que permitem avançar na rastreabilidade e integração com plataformas digitais.

Setores como cacau, borracha, óleo de palma e madeira terão impactos moderados, mas a cadeia da carne bovina enfrenta os maiores desafios, pois exige rastrear todos os estabelecimentos por onde os animais passaram antes do abate, aumentando o risco de não conformidade, sobretudo em sistemas de cria, recria e engorda descentralizados.

Para exemplificar os custos, apenas na cadeia produtiva da pecuária, em outro texto¹ já indicamos os custos de alguns sistemas de rastreabilidade bovina, como a geotecnologia Niceplanet e a certificadora SBcert, adotado por cerca de 150 frigoríficos e fazendas, chamando popularmente de “CPF do boi”, com um sistema que depende do uso de chips/brincos que custam aproximadamente R$7,00 por animal e certificação de R$13,00 por animal, além de um bastão eletrônico para a leitura dos dados estimado em R$5,0 mil.

O estado do Pará, por outro lado, vem assumindo papel pioneiro na adequação às exigências da EUDR. O governo estadual, por meio do Programa de Pecuária Sustentável do Pará (Decreto nº 3.533/2023), implementou medidas de rastreabilidade individual do rebanho e de validação completa do Cadastro Ambiental Rural (CAR) das propriedades.

Além disso, a iniciativa prevê a integração de tecnologias como blockchain, sensores IoT, drones e monitoramento por satélite, permitindo consolidar informações documentais e territoriais de forma auditável.

A implementação do programa envolve linhas de crédito, seguros agroclimáticos e suporte técnico voltados à adaptação do setor às exigências internacionais, mostrando como a integração entre setor público e privado pode reduzir riscos de exclusão do mercado europeu e servir como exemplo para outros estados brasileiros que desejam alinhar suas cadeias produtivas às normas internacionais.

Não podemos ignorar o fato de que os sistemas de monitoramento remoto, como o PRODES Cerrado e o MapBiomas Alerta, são importantes para detectar desmatamentos e fornecer dados para a fiscalização ambiental, mas também podem gerar situações de “falsos positivos”, em que áreas são erroneamente identificadas como desmatadas ou degradadas.

Isso pode ocorrer devido a mudanças sazonais na vegetação, pousio agrícola, queimadas controladas autorizadas ou até mesmo falhas na resolução das imagens de satélite e no georreferenciamento das propriedades, o que é um risco adicional para a EUDR, pois os operadores e exportadores dependem de dados confiáveis para comprovar rastreabilidade e conformidade ambiental.

¹Disponível em: https://www.scotconsultoria.com.br/noticias/artigos/58013/produtor-fiscalizado-e-boi-rastreado-o-futuro-e-os-excessos-da-fiscalizacao-ambiental.htm. Acesso em 05/08/2025.

A EUDR estabelece ainda, em seu Artigo 29, um sistema de classificação de risco para países ou partes de países exportadores, dividido em três categorias: alto risco (high risk), baixo risco (low risk) e risco padrão (standard risk).

Conforme o §2º do mesmo artigo, todos os países foram automaticamente classificados como risco padrão em 29 de junho de 2023, até que a Comissão Europeia publique listas formais de países de alto e baixo risco, processo que deve considerar critérios como taxa de desmatamento, expansão agrícola e produção de commodities abrangidas pelo regulamento.

Em 27 de maio de 2025, a Comissão Europeia publicou oficialmente o primeiro ato de execução sobre o sistema de benchmarking, confirmando que o Brasil permanece classificado como país de risco padrão, assim como Indonésia e Malásia.

Essa classificação implica que o Brasil não se beneficia do regime simplificado de due diligence, exigindo rastreabilidade integral e avaliação de risco completa para todas as exportações de produtos abrangidos pela EUDR ao mercado europeu.

Portanto, implementar essa rastreabilidade completa demanda infraestrutura tecnológica, mão de obra qualificada e sistemas integrados de gestão territorial, tudo que ainda está fora do alcance de muitos produtores brasileiros.

Os desafios jurídicos da EUDR em relação à responsabilidade civil

Os problemas jurídicos da EUDR já começam com a transferência de responsabilidade formal para o “operador”, que é o primeiro agente que coloca o produto no mercado europeu, geralmente o importador, definido pelo artigo 2º, item 15 da norma como “qualquer pessoa singular ou coletiva que, no âmbito de uma atividade comercial, coloque no mercado ou exporte os produtos derivados em causa”.

O artigo 4º, item 3 da EUDR determina que “Ao disponibilizar a declaração de diligência devida às autoridades competentes, o operador assume a responsabilidade pela conformidade do produto derivado [...]” e “conservam um registo das declarações de diligência devida durante cinco anos a contar da data em que a declaração é apresentada através do sistema de informação”.

Os operadores e comerciantes que colocarem ou disponibilizarem produtos irregulares no mercado europeu estarão sujeitos a penalidades severas, conforme o Artigo 25.

As sanções incluem multas proporcionais ao dano ambiental e ao valor do produto - que podem atingir no mínimo 4,0% do faturamento anual total na UE -, confisco de produtos e receitas, suspensão temporária do acesso a licitações e financiamentos públicos, e proibição temporária de comercializar ou exportar produtos em casos de infrações graves ou repetidas.

Também podem perder o direito ao procedimento simplificado de due diligence. Além disso, condenações definitivas de pessoas jurídicas são comunicadas à Comissão Europeia e publicadas, reforçando o impacto reputacional das infrações.

Tabela 3.
Penalidades Previstas na EUDR para Operadores e Comerciantes

PenalidadeDescriçãoBase Legal
Multas Proporcionais ao dano ambiental e ao valor dos produtos; mínimo de 4% do faturamento anual UE do ano anterior para pessoas jurídicas; podem ser aumentadas em caso de lucro superior. Art. 25(2)(a)
Confisco de produtos Retirada dos produtos irregulares do operador e/ou comerciante. Art. 25(2)(b)
Confisco de receitas Perda das receitas obtidas com a venda dos produtos irregulares. Art. 25(2)(c)
Suspensão em licitações Até 12 meses sem acesso a licitações públicas, subsídios e concessões. Art. 25(2)(d)
Proibição temporária Até 12 meses sem colocar produtos no mercado ou exportar, em caso de infrações graves ou repetidas. Art. 25(2)(e)
Perda do procedimento simplificado Operadores reincidentes ou infratores graves perdem o direito à due diligence simplificada. Art. 25(2)(f)
Publicação de condenações Estados-Membros informam a Comissão Europeia, que publica nome, data, resumo da infração e valor da penalidade. Art. 25(3)

Fonte: Pedro Puttini

Isso significa que a responsabilidade do operador perante a EUDR é direta (não depende de culpa de terceiros), objetiva (basta a ocorrência da infração, colocar produto irregular no mercado), abrangente (envolve multas, perdas econômicas, restrições operacionais e exposição pública), criando um regime de responsabilidade preventiva e sancionatória, incentivando operadores a investir em compliance ambiental e rastreabilidade da cadeia de suprimentos.

O sistema jurídico brasileiro consegue absorver a lógica da EUDR em três camadas: 1) Responsabilidade ambiental objetiva e solidária pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), onde todos na cadeia de produção e fornecimento respondem objetivamente por danos ambientais, inclusive exportadores; 2) Cláusulas contratuais e due diligence, em que o operador pode se resguardar contratualmente, impondo obrigações de compliance e rastreabilidade ao produtor ou intermediário, para buscar direito de regresso em caso de sanção, aproximando da responsabilidade da subjetiva por via de regresso, enquanto mantém a objetiva perante terceiros e autoridades; e 3) Compatibilidade com sanções administrativas, embora a publicação de condenações não seja típica da responsabilidade civil privada, ela se aproxima das sanções administrativas previstas na Lei de Improbidade e Lei Anticorrupção, que o sistema brasileiro já reconhece.

Isto minimiza a diferença entre a EUDR e o sistema brasileiro no que diz respeito à responsabilidade por fato de terceiros, pois pela EUDR, o operador assume responsabilidade plena, ainda que o desmatamento ou a irregularidade tenha ocorrido por ato do produtor rural brasileiro ou intermediário; e na legislação brasileira, a responsabilidade civil objetiva ambiental já admite essa extensão, mas a responsabilidade civil contratual ou extracontratual clássica poderia exigir prova de culpa ou dolo do operador.

Isso significa que falhas de rastreabilidade, inconsistências cadastrais ou omissões de informações podem gerar ações regressivas, rompimento contratual e perdas econômicas expressivas, mesmo para produtores que atuem de boa-fé, impactando sua reputação e capacidade de acessar o mercado europeu.

Por isso se torna essencial a adoção de medidas preventivas como a implementação de sistemas robustos de rastreabilidade que integrem registros nacionais, como CAR, CCIR, matrícula georreferenciada, licenciamento ambiental, alertas de desmatamento por imagens de satélite e GTA, além de documentação detalhada sobre produção e transporte.

Auditorias internas, arquivamento rigoroso de documentos e eventual contratação de seguros de responsabilidade civil ou riscos ambientais podem complementar a proteção, permitindo que o fornecedor brasileiro demonstre diligência e reduza o risco de ser responsabilizado por sanções aplicadas no âmbito europeu.

Os desafios jurídicos ambientais da EUDR

Outro problema jurídico ambiental associado a EUDR é a falta de distinção entre desmatamento legal ou ilegal: para a União Europeia, qualquer área desmatada após 31 de dezembro de 2020 é considerada incompatível com o regulamento, mesmo que a abertura da área tenha seguido as autorizações brasileiras.

Como já esclarecido em artigos anteriores¹, desmatamento ilegal é todo processo de supressão da vegetação de uma determinada área, sem autorização legal pelos órgãos ambientais competentes.

Ao contrário, o desmatamento considerado legal, é aquele feito com autorização para supressão da vegetação nativa da área, onde se deseja fazer o uso alternativo do solo, sem danos ou prejuízo ao meio ambiente, precedido de estudos técnicos, com previsão de medidas de compensação ambiental.

Esse ponto cria um conflito direto entre soberania regulatória e exigência internacional, e aumenta o risco de exclusão de propriedades produtivas regulares do mercado europeu.

Se o próprio artigo 3º da EUDR, em seus itens a e b, estabelece simultaneamente duas condições distintas, uma que os produtos não podem estar associados à desflorestação (item a), e outra que devem ser produzidos em conformidade com a legislação do país de origem (item b); a contradição está no fato de que mesmo que o produtor cumpra integralmente a legislação nacional, incluindo autorizações de supressão de vegetação e medidas compensatórias previstas no Código Florestal, o produto poderá ser barrado na UE por violar o conceito europeu de “desflorestação”, que é mais restritivo e independente das normas brasileiras.

¹Disponível em: https://www.scotconsultoria.com.br/noticias/artigos/56766/licenciamento-corretivo-solucao-para-desmate-sem-licenca.htm. Acesso em 05/08/2025.

Os desafios de governança territorial no Brasil em relação à EUDR

O outro entrave técnico é relacionado ao Cadastro Ambiental Rural que, embora seja uma das ferramentas mais importantes implementadas pela política ambiental brasileira, é autodeclaratório, com milhões de registros pendentes de validação pelos órgãos ambientais dos estados.

Isso dificulta a utilização direta dessas informações como prova de conformidade ambiental. Em muitos casos, será necessário cruzar dados de CAR, imagens de satélite, registros cartoriais e análises técnicas, o que aumenta o custo e a complexidade do processo.

A governança territorial brasileira enfrenta desafios estruturais que se tornam críticos diante das exigências da EUDR. O país convive com um sistema fundiário fragmentado, composto por múltiplos cadastros (CAR, CCIR, SNCR, SIGEF, SINTER e registros de imóveis), que não dialogam de forma plena entre si.

Essa falta de integração compromete a confiabilidade das informações territoriais e, consequentemente, a rastreabilidade exigida pelo regulamento europeu. Em alguns destes cadastros e sistemas, o território declarado no Brasil já supera o território físico real, reflexo de sobreposições, duplicidades e áreas em disputa.

Há uma sobreposição expressiva de áreas em cadastros ambientais e fundiários, estimada em mais de 139 milhões de hectares, reforçando a percepção de insegurança territorial.

O georreferenciamento de imóveis rurais, exigido pela Lei nº 10.267/2001, pilar essencial para a segurança jurídica, ainda apresenta boa parte das propriedades, especialmente pequenas e médias, sem certificação georreferenciada válida junto ao Incra, cujo prazo final para imóveis com até 25 hectares expira apenas em novembro de 2025.

Esse cenário de transição cria um risco concreto: propriedades sem georreferenciamento ou com inconsistências cadastrais podem ser automaticamente consideradas de maior risco pelos importadores europeus, dificultando o cumprimento das exigências de due diligence e a vinculação inequívoca do produto à parcela de origem.

Para cumprir integralmente as exigências da EUDR, o país precisa avançar em integração cadastral, validação de dados ambientais e disponibilização de informações geográficas públicas e confiáveis.

A consolidação de uma política nacional de governança territorial - com cadastros interoperáveis, georreferenciamento em dia e fiscalização digital eficiente - é condição indispensável para que a rastreabilidade exigida pelo regulamento europeu seja alcançada e para que os exportadores brasileiros mantenham competitividade no mercado internacional.

Oportunidades para o Brasil

Apesar dos desafios e custos de adequação, a EUDR também abre oportunidades estratégicas para o agronegócio brasileiro. O Brasil possui uma legislação ambiental robusta, reconhecida internacionalmente, com instrumentos como o Código Florestal, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e os Programas de Regularização Ambiental (PRA).

Se bem estruturados, esses mecanismos podem servir como pilares para demonstrar conformidade ambiental e fortalecer a posição do país no comércio global. A exigência europeia também pode impulsionar o aprimoramento da infraestrutura cadastral e tecnológica do setor.

A EUDR pode ser uma oportunidade de transformar o CAR e o SICAR em um “certificado nacional de sustentabilidade”, simplificando a due diligence dos operadores europeus e agregando valor aos produtos brasileiros.

O Brasil pode investir na criação de certificações nacionais reconhecidas internacionalmente, alinhadas às exigências europeias, um sistema robusto de certificação pública ou público-privada, que integre dados do CAR, CCIR, GTA, matrículas georreferenciadas e alertas de desmatamento auditáveis, reduzindo custos de conformidade, ampliando segurança jurídica das exportações e facilitando aceitação de produtos brasileiros.

Ferramentas de monitoramento remoto, cruzamento de dados públicos e privados, auditorias técnicas e integração de geoinformação tendem a se tornar parte da rotina do mercado exportador.

Outro ponto positivo é a possibilidade de transformar a conformidade ambiental em diferencial competitivo. Cadeias produtivas que comprovarem rastreabilidade total e baixa pegada ambiental podem acessar nichos de maior valor agregado, captar investimentos em ESG e fortalecer sua reputação junto aos consumidores e compradores internacionais.

A EUDR cria um incentivo para o Brasil assumir protagonismo em uma agenda positiva de sustentabilidade, unindo produtividade e preservação ambiental. Ao transformar dados territoriais e rastreabilidade em ativos estratégicos, o país não apenas atende às exigências internacionais, como também fortalece sua imagem como fornecedor global confiável e competitivo.

O que está em jogo não é apenas o acesso ao mercado europeu, mas a soberania regulatória sobre o território nacional, a preservação da competitividade agrícola e o equilíbrio entre proteção ambiental e inclusão produtiva.

É passado o momento de o Brasil investir em uma política geográfica nacional, que organize os dados territoriais de forma acessível, pública e padronizada, para que o setor produtivo possa cumprir com sua parte sem ficar refém de exigências externas que ignoram as realidades locais.

Enquanto isso, cabe ao produtor rural se informar e se antecipar, verificando as informações declaradas em seus cadastros obrigatórios (CAR, CCIR, ITR, Matrícula), mantendo gestão documental¹, resolvendo pendências com orientação técnica, diálogo com associações e cooperativas.

Conclusão

A exigência de rastreabilidade total se tornou um filtro comercial e legal de alto impacto. Sem mecanismos de comprovação confiáveis e auditáveis, muitos produtos brasileiros correm o risco de serem considerados de procedência duvidosa, ainda que tenham origem legal.

A EUDR impõe requisitos rígidos e uniformes, ignorando realidades locais e esforços nacionais já em andamento, como a Moratória da Soja na Amazônia, que desde 2006 desvinculou a expansão da soja do desmatamento, alcançando 98,0% de soja livre de desmatamento em 2018-2019, o que sugere que a UE deveria adotar equivalências baseadas em resultados, reconhecendo sistemas nacionais eficazes de rastreabilidade e certificações locais, em vez de criar duplicações burocráticas que podem desestimular práticas já consolidadas de conservação.

A análise da EUDR evidencia que o desafio brasileiro vai além da simples adequação documental: trata-se de consolidar uma governança territorial moderna e integrada, capaz de transformar dados ambientais em ativos estratégicos para o comércio internacional.

A convergência entre os sistemas nacionais e registros fundiários em relação aos requisitos europeus de rastreabilidade poderá fortalecer a competitividade do agronegócio, desde que acompanhada de investimentos em validação cadastral, tecnologia e inclusão produtiva de pequenos e médios produtores.

Há oportunidades estratégicas de estimular parcerias público-privadas, no fortalecimento da governança florestal e pressionar a modernização de sistemas nacionais de monitoramento, tornando a produção mais sustentável e competitiva a longo prazo.

Dessa forma, o Brasil poderá não apenas cumprir a EUDR, mas também posicionar-se como referência global em sustentabilidade agrícola, transformando exigências externas em oportunidade de valorização territorial e ambiental.

¹Disponível em: https://www.scotconsultoria.com.br/noticias/artigos/58922/do-cadastro-ao-laudo-evitando-prejuizos-comerciais-na-propriedade-rural.htm. Acesso em 05/08/2025.

Referências

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