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Scot Consultoria

Elas rodam o Brasil (e sem medo de pisar na lama)


Sexta-feira, 8 de março de 2019 - 10h15

Foto: Paola Jurca


Mesmo crescendo no ambiente rural, era difícil que mulheres tomassem conhecimento sobre os negócios da fazenda. Todos os processos eram liderados pelos homens, que desde cedo eram colocados em contato com o trabalho pesado. O tempo passou e, ainda bem, elas passaram a assumir outra posição na produção de alimentos. Mas, a história de hoje, contada em homenagem ao dia internacional da mulher, não é sobre fazendeiras ou profissionais do agronegócio corporativo – que por si só têm histórias fantásticas de crescimento no setor.


Paola Jurca e Valéria Modenese têm alguns pontos em comum: são mulheres, atuam no agronegócio e não têm medo de se sujar ou de se perder nas “longas estradas da vida” brasileiras. Elas representam a porcentagem das profissionais que atuam no trecho, viajando pelas vias de terra em busca de informações, ajuda aos pecuaristas e demais produtores de alimentos – sempre com coragem, determinação, experiência e bota nos pés.


“No início foi um tanto desafiador para uma recém-formada mulher, rodar o Brasil sozinha visitando propriedades rurais aleatoriamente e visitando produtores, em sua imensa maioria masculina. Enfrentando olhares e algumas vezes piadinhas machistas, e até aqueles produtores que gostam de colocar seu conhecimento a prova para saber se por você ser mulher está realmente apta para estar neste mundo, que imaginavam ser dominado apenas por eles”, conta Valéria, que atua na área de pesquisa de mercado agronômico para a empresa Spark (realizando pesquisas a campo junto com produtores rurais de todo o Brasil e de praticamente todas as culturas para levantar dados quantitativos e qualitativos. Essas pesquisas são contratadas pelas empresas do mercado agro para tomada de decisões).


O contato na infância até a adolescência com o meio rural foi o gatilho para que ela se interessasse pelo assunto profissionalmente. Engenheira agrônoma formada pela Unesp de Ilha Solteira-SP em 2011, ela se interessou pela área de agricultura familiar, inspirada pelo trabalho dos pais, e trabalhou na parte de extensão rural e políticas públicas voltadas ao tema. “Contudo, assim que me formei comecei a enviar currículos. Como no início não se pode escolher demais, acabei iniciando a minha carreira profissional na área de pesquisa de mercado agronômico, na qual ainda atuo, explica.


Também vinda de uma família de agricultores, a engenheira agrônoma Paola é descendente dos imigrantes italianos que vieram trabalhar nas lavouras brasileiras após fugir da guerra. Tradicionalmente era o avô quem tocava a fazenda da família, e nenhum contato com a atividade era permitido para as mulheres. Quando ele veio a falecer, a mãe de Paola se viu em meio a um desafio que ainda é muito enfrentado no Brasil: assumir a fazenda mesmo sem ter intimidade com o assunto. “Ela fez tudo sozinha, aprendeu como administrar, negociar... Então disse para mim, quando eu era pequena e já vinha tomando consciência das coisas, que não gostaria que eu passasse pelo o que ela passou quando meu avô faleceu”, conta.


Em uma decisão acertada, a matriarca levou a pequena para participar da vacinação do gado, do manejo no pasto, ensinou até a dirigir trator. “Ela me colocou nesse meio rural muito cedo e, com o passar dos anos, peguei gosto pela coisa”. Hoje, aos 34 anos, Paola Jurca faz parte do time que mergulhou fundo no assunto e vive viajando o Brasil pela Scot Consultoria, realizando avaliação de propriedades para diversos fins, como garantia bancária, divisão de bens, dissociação de sociedades etc. Nesta atividade é papel dela estudar a propriedade, conhecer o entorno e o mercado regional.


“Em 95% das situações a gente só lida com os peões, então você fica no meio deles. E eles não têm muita confiança por ser mulher, por ser nova, acham que não temos conhecimento suficiente. Por isso muitas vezes é preciso ter uma postura meio grosseira, para mostrar que o seu trabalho é sério e que você deve ser respeitada por aquilo. Infelizmente muitos ainda acham que por sermos mulheres podem passar uma cantada, fazer uma piadinha machista... São situações que nos colocam à prova a todo momento, então é preciso se impor e mostrar que somos muito mais do que eles pensam, muito mais do que as dificuldades que nos são impostas”, esclarece.


Os obstáculos iniciam inclusive na área acadêmica. Paola conta que desde o início de sua graduação ouvia que tal professor não aceitava mulheres para estágio, ou que grandes propriedades não aceitavam agrônomas em sua equipe, entre outros absurdos. “São situações que vão te colocando a prova desde quando você toma a decisão de entrar para o setor. Então, além de ter força de vontade para superar aquilo, você tira ainda mais força de si mesmo para continuar. Ninguém está livre de escutar um não, mas isso não pode te desestimular. Os ‘nãos’ que passaram pela minha vida, as pessoas que disseram que eu não ia conseguir porque não era coisa para mulher, tudo isso só me deu mais força para correr atrás do que eu quero”, pontua.


Inclusive, são muitos os homens que não fazem o que Paola e Valéria fazem: não ter medo de andar sozinha pelas estradas do Brasil, enfrentar um carro atolado no barro em uma estrada deserta... São apenas alguns dos pontos que exigem muito esforço, disciplina e também humildade – sem esquecer a mente aberta para o aprendizado. “Meu trabalho consiste em realizar entrevistas com produtores de forma aleatória, pois faz parte da pesquisa para não tendenciar os dados. Então a busca pelos produtores é realmente rodando a região pré-determinada pela empresa a qual presto serviço atualmente, batendo de porteira em porteira e coletando informações do manejo realizado pelos produtores. Já se pode imaginar a aventura, é pneu que fura, carro que atola, se perder no meio da soja no Mato Grosso, entre tantas outras. Então medo de sujar nesse caso é o de menos”, conta Valéria.




“Se eu trabalho em alguma propriedade e volto limpa e com meu carro sem terra, é como se eu não tivesse feito meu trabalho. Quem vai para a fazenda gosta de pôr a mão na massa, acordar cedo, fazer render o dia”, conta Paola Jurca (Foto: reprodução)


A rotina, de fato, é “não ter rotina”. É saber onde acorda, mas nunca saber onde vai dormir – mesmo planejando todo o roteiro, incluindo o estudo das estradas da região e demais serviços, os imprevistos aparecem. Paola conta que, em uma de suas andanças, passou por um perrengue daqueles durante a greve dos caminhoneiros. Com visitas marcadas em propriedades no Pará e no Mato Grosso, em região próxima à divisa com o primeiro Estado, ela foi de avião a uma cidade próxima ao destino e, de lá, seguiria com um carro alugado até Vila Rica. “Quando eu estava nesta fazenda no Mato Grosso a greve estourou. Foi tudo muito rápido, durante o dia em que fiquei fazendo a avaliação na fazenda o combustível nos postos já tinha acabado e eu não tinha como me locomover”, afirma.



“Trabalhar com o que faço não é trabalho, é um prazer, uma terapia. É o momento de conhecer outras pessoas e realidades, diferentes formas de fazer o mesmo”, diz Paola Jurca, que cursa o terceiro ano na graduação em Direito, para complementar sua atuação e seu auxílio junto aos produtores (Foto: reprodução)


O gerente da propriedade em Vila Rica se ofereceu para levá-la ao próximo destino, em Santa Cruz do Xingú (MT), já que haveria uma comitiva* com cerca de duas mil vacas paridas na fazenda ao lado da que eles estavam, sendo este então o tempo para organizar o gado e seguir viagem de volta à fazenda em que estava o carro de Paola. “Fiz a avaliação e, quando retornei ao local onde estavam organizando a comitiva, o gerente me disse que houve alguns imprevistos e que a comitiva não partiria aquele dia, sendo que todos precisariam dormir por lá, em uma estrutura completamente improvisada, com redes no lugar das camas, junto a cerca de dez peões. Ele até se ofereceu para me levar à propriedade em que eu estava, para que eu pudesse dormir com mais conforto. Mas eu escolhi ficar, para conhecer como era o trabalho dos peões na comitiva”.


Durante a noite, com churrasco e muita conversa, um dos trabalhadores disse à Paola que “sempre achou que aquele não era lugar para mulher”. Coisas “brutas”, como comer comida simples sem faca, usar o mesmo banheiro do peão, eram pontos que, para eles, não cabiam a uma mulher. “Foi uma das experiências mais incríveis que tive dentre esses anos de trabalho. Aprendi sobre como eles lidam com o gado durante a comitiva, acompanhei todo o planejamento prévio para que não faltasse água ou propriedades para os animais descansarem ao longo da viagem de quase 30 dias. Descobri que não são os peões com os cavalos que tocam o gado, é justamente o contrário, havendo dias em que a manada anda somente três horas, não se pode forçar, é preciso seguir o ritmo dos animais”, relembra Paola.


Valéria também conta um “causo” daqueles: “Foi a minha segunda viagem a trabalho depois de formada. Fui da minha cidade (Ilha Solteira) até Cascavel no Paraná de ônibus, de lá peguei um carro alugado pela empresa logo pela manhã, ou seja, viajei a noite toda de ônibus. De manhã peguei o carro e na ânsia louca de começar o trabalho já continuei o deslocamento até uma cidade chamada Coronel Bicaco no Rio Grande do Sul. Aquele tempo não existia GPS ou smartphone, então tracei a rota e imprimi para tentar chegar até lá. Já para começar umas estradas terríveis de ruins, me perdi alguns trechos, começou chuva e foi ficando tarde, não achava uma cidade para parar e continuar no dia seguinte e assim segui. Escurecia e nada de parar a chuva, fui parar numas estradas de terra no meio de uma tribo indígena. Totalmente perdida pedi informação e consegui chegar na cidade já por volta de umas 20:00 horas”.


Pensa que acabou? “A cidade era minúscula, tinha uns 10.000 habitantes, parei no posto para pedir indicação de um hotel, me indicaram o único da cidade, fui até lá e estava fechado. Um guarda que estava na rua me disse que seria feriado no dia seguinte e que no Rio Grande do Sul tudo parava no dia da Tradição Gaúcha (20 de setembro) e por isto o hotel estava fechado. Acho que ele ficou com dó da minha situação e foi comigo até a casa do dono do hotel, que também foi muito receptivo e abriu o hotel para que eu dormisse lá. O jantar nesse dia foi a bolacha que a minha mãe insistiu para levar antes de sair de casa, porque não tinha nada aberto na cidade. Resumo da história: corri tanto para começar o trabalho e por fim passei o dia vendo os desfiles e tomando chimarrão com a gauchada no feriado”.



Valéria Modenese tem um mestrado, também pela Unesp de Ilha Solteira, no curso de agronomia para retomar o trabalho realizado na graduação com políticas públicas voltadas à agricultura familiar. Foi quando realizou também um trabalho que entre outras coisas, envolvia a questão de gênero no meio rural. “Hoje acredito que todo este conhecimento adquirido me da uma base muito mais sólida e como mulher um empoderamento muito maior de trabalhar no mundo do agronegócio”, celebra (Foto: reprodução)


A vivência que vai além das cadeiras e livros da faculdade. É esta a realidade de quem trabalha no trecho. Em seis anos na Scot Consultoria, Paola conta que trabalhos de avaliação vêm sendo mais procurados por mulheres. Inclusive, nos eventos da consultoria (Encontro de Analistas, Encontro de Confinamento e Encontro dos Encontros), ela percebe uma união maior das mulheres. “Elas são mais ativas, participativas, fazem questão de se encontrar e formam grupos de debate e troca de experiências. São pessoas que tem um conhecimento gigantesco sobre o setor e a atividade que desenvolvem nas suas propriedades rurais”, declara Paola.


Nestas andanças, Valéria conta que percebeu uma mudança no cenário: em boa parte das propriedades são as mulheres que respondem as pesquisas. “Elas me disseram que participam das decisões e das atividades da lavoura com seus cônjuges, e realmente dão um show nas respostas dos questionários. Outros casos que presenciei, quando estive a última vez na região de Luís Eduardo Magalhães, na Bahia, foram muitas profissionais engenheiras agrônomas, como eu, que deixaram seu Estado de origem, família e amigos para ir trabalhar distante de casa e honrar o suor de sua dedicação ao agronegócio em um espaço muitas vezes mais difícil para nós mulheres”, conta.


Paola acredita que, para atuar no setor, é preciso não ter medo. Nas suas palavras, “se estiver com medo, vai com medo mesmo! ”. Para ela, é preciso sair da zona de conforto e estudar muito. “É uma atividade em que nem sempre o sucesso é relacionado ao que você faz. Tem chuva, veranicos, situações fora do seu controle. Então não pode ter medo ou receio, se sua vontade é entrar nesta área estude bastante, busque informações, converse com pessoas do ramo. Cabe a nós mesmos trilhar nosso caminho e mostrar a que viemos”, pontua.


Para Valéria, a dica para aquelas que desejam se aventurar pelo agronegócio é: seja destemida, goste do novo, de se aventurar e não se intimide pela questão do prevalecimento de homens no setor. “No meio agro há uma infinidade de áreas também a se seguir, é um meio muito amplo e que só tende a crescer, pois nosso trabalho de forma sucinta é o de alimentar o mundo, que se resume em cuidado e amor, e nenhum ser melhor no mundo nesses quesitos do que nós mulheres. O lugar da mulher é sim onde ela quiser, inclusive no agronegócio”, finaliza.


*Comitiva é o nome dado ao deslocamento de um alto número de animais por terra, quando não é possível o uso de veículos. A manada é tocada pelos cavalos, e todo o trajeto é planejado previamente com paradas para descanso, alimentação e água, sempre respeitando o ritmo dos bovinos.


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