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Scot Consultoria

Carta Gestor - Não era para ser o contrário?


Terça-feira, 21 de fevereiro de 2017 - 15h40

 


Um recurso sofisticado que a evolução nos brindou é a intuição. Sozinha já tirou muita gente de enroscadas. Todavia a intuição, nossos sentidos e percepção, em determinadas vezes, falham e chega a ser difícil aceitar que aquela ocorrência foi contra nossas previsões. Abaixo dez situações em que isso acontece em vários pontos da atividade pecuária.


1) Quando adubar, é lógico que devo priorizar o pior pasto, certo?


No momento em que se decide por adubar pastos na fazenda, é preciso escolher quais locais receberão os fertilizantes. Naturalmente, a lógica da escolha é priorizar os pastos cuja avaliação indique haver mais falta de nutrientes, ou seja, que estejam com baixo crescimento, com aparecimento de invasoras, indícios de processos erosivos e outros sinais de processo de degradação. Por essa mesma lógica, a tendência é selecionar o pasto que tenha o pior quadro de degradação. 


Após fazer a correção neste pasto, muito provavelmente o resultado ficará abaixo do esperado. Nada mais frustrante do que ver o investimento em adubação, feita com todo capricho e dentro da melhor recomendação, não nos encher aos olhos. O que ocorre neste caso é que esse pasto estava tão degradado que os nutrientes adicionados ao solo pelo adubo não puderam ser devidamente assimilados. Certamente o sistema radicular mirrado das forrageiras em pastos degradados é um dos mais importantes fatores, bem como haver menos matéria orgânica, menos cobertura morta e mais compactação (que reduzem a umidade do solo). Esses fatores, em conjunto, conspiram para um menor aproveitamento da adubação. Assim, é melhor escolher o pasto em condição intermediária, pois os melhores talvez ainda possam segurar um pouco a produção e, os piores, podem receber apenas um manejo diferenciado. Esse manejo, pode ser apenas reduzir bastante a carga sobre ele a até vedá-lo por um tempo para que consiga alguma recuperação. Eventualmente, o melhor caminho será o mais drástico: a reforma, quando um novo pasto é implantado (se possível depois de um ano de alguma cultura agrícola).


2) Na seca o animal consome mais o suplemento mineral?


Para as fazendas que usam o sal mineral convencional durante o ano todo, observa-se que o maior consumo do animal ocorre na seca. Isso vai contra o conhecimento técnico, pois o consumo deveria ser tanto maior, quanto maior fosse o desempenho dos animais. Por que isso ocorre, então? Um dos principais motivos para maior consumo na seca é que as pessoas oferecem mais o sal mineral nessa época, em função de acreditar, erroneamente, que é a época que ele mais faz falta. O fornecimento na seca também é mais fácil, pois o deslocamento não tem os desafios que a época das chuvas trás, com estradas enlameadas, veículos atolados, etc. No período das águas, além disso, é comum o sal mineral umedecer (mesmo em cochos cobertos) e empedrar, situação que reduz bastante o consumo. Por fim, é possível que pastos da seca aumentem o tempo de ociosidade do animal e, nesse caso, o maior consumo de sal mineral também ocorreria por um maior tempo disponível para lamber o sal.


3) Prender para vacinar é perda de tempo?


Ao planejar a realização de um trabalho, qualquer que seja, sempre tentamos reduzir ao máximo o esforço dispendido de maneira a terminá-lo o mais rápido possível e com o mínimo de desgaste. No dia de vacinar os animais, nada mais natural que tentar vaciná-los sem a perda de tempo de prender um por um, fazendo isso já no corredor antes do tronco. É difícil acreditar que vacinando um a um, depois de conter o animal, não vamos demorar muito mais para terminar a tarefa. O fato é que, quando foram comparadas essas duas formas de fazer, a opção que foi realizada em menor tempo, foi a que nossa intuição rejeitou. E não é essa a única vantagem: a vacinação fica mais bem feita e todos que trabalharam bem menos cansados. Contudo, os maiores beneficiários desta escolha de manejo racional são os bovinos, que são submetidos a uma situação para eles estressante, mas que é bem reduzida em comparação a vacinação no corredor. Aliás, é exatamente o comportamento mais tranquilo dos animais que faz com que o trabalho flua sem interrupções e explica a mágica de acabar mais rápido. Nunca, pessoalmente, fiz essa comparação experimentalmente, mas quando vi esses resultados pela primeira vez, não duvidei por um segundo, pois, eles batiam com minha experiência de trabalho. Com dois tipos de turma no curral, sendo uma, mais sanguínea, querendo apressar o trabalho e, a outra, mais tranquila, sem preocupação em quebrar recordes de velocidade, a atividade sempre acabou antes e com todos menos cansados com esta última.


4) Apenas nos três meses finais da gestação que a gente deve se preocupar com a nutrição da vaca?


A grande maior parte do desenvolvimento em tamanho do feto no útero da vaca ocorre no último terço da gestação e, evidentemente, há maior exigência por nutrientes, que serão os blocos de construção dessa nova vida. Em função disso, por muito tempo os seis meses iniciais não foram devidamente valorizados. Hoje, sabemos que isso é um erro, pois deficiências nutricionais nessa fase podem resultar em alterações que serão sentidas inclusive muito mais a frente na vida do animal. O que ocorre é que a nutrição da vaca gestante tem um efeito conhecido como programação fetal. A maior parte do desenvolvimento de células musculares e adiposas ocorre entre o segundo e oitavo mês da gestação, com períodos mais ou menos críticos para cada um deles. Por isso, uma restrição alimentar em diferentes períodos nesta fase, modifica o perfil de células geradas e pode resultar em diferentes padrões de crescimento do animal depois do nascimento. As alterações ocasionadas pelo estado nutricional da mãe influem no número e tamanho de adipócitos (células de gordura), no tipo de fibras musculares e, assim, podem resultar em maior ou menor marmoreio e, até, diferenças no rendimento de porção comestível.


5) Quanto mais vezes fornecer alimento no confinamento, mais estimulo o consumo?


O que nossos olhos veem acaba por determinar nossa crença em que ocorre sob nosso testemunho. Assim, ao observar os animais serem estimulados a ir ao cocho toda vez que lhe é oferecido alimento, causa a sensação que os animais estão consumindo mais. Felizmente, podemos fazer experimentos em que alteramos o número de refeições ofertadas e, ao mesmo tempo, medimos o efetivo consumo pelo animal. Quando apuramos o resultado, apesar de nossa percepção dar uma forte impressão que os animais mais estimulados comeram mais, constata-se que o consumo é igual entre os tratamentos. A primeira conclusão óbvia é que, se os animais visitaram mais vezes os cochos e consumiram o mesmo que os demais, em cada uma de suas refeições eles comeram menos. A segunda conclusão (menos óbvia) é que outro fator define o consumo dos animais. No caso de uma dieta de confinamento, daquelas que o animal come tudo que lhe dão, sem restrições (= consumo voluntário), o estímulo que faz ele parar de comer é sua exigência energética. Portanto, ele para de consumir em função do seu desempenho. Assim, um animal de grande potencial de consumo, ganha muito peso e, por isso, tem uma necessidade de energia também grande. Em outras palavras, o animal come porque cresce e não o contrário.


6) No confinamento, por acidose, sempre morre o melhor animal?


Quando ocorre morte de animal no confinamento por problemas de acidose e timpanismo, não é incomum ela vir seguida do lamento “Puxa, tinha que morrer justo o melhor animal?”. Essa indagação pressupõe o fato de ter morrido o “melhor animal” por mera coincidência. Na verdade, não há nada de aleatório em ter sido vítima um animal de alto desempenho com essa “causa mortis”. Isso porque a probabilidade de acidose aumenta na mesma medida de quanto maior o desempenho, uma vez que esse animal é o “comilão” do lote (conforme visto no item anterior). Uma das formas da acidose ocorrer seria pela combinação de fermentação rumimal muito intensa e baixo estímulo à ruminação. A primeira faz com que muitos ácidos graxos voláteis, os resíduos da fermentação, sejam produzidos e, o segundo, reduz a chegada da saliva no rúmen que controla a acidez ruminal. Essa é a circunstância de uma dieta muito rica em milho (alta fermentação ruminal) e que tenha uma silagem excessivamente moída, que não estimula a ruminação e a consequente salivação. Contribuem ainda para ocorrência de morte de animais, (i) ser logo no início de um confinamento iniciado sem a devida adaptação dos animais à dieta, (ii) em que haja reduzido acesso dos animais ao cocho e (iii) que a dieta seja oferecida mal misturada. Nesse cenário, como o animal de maior desempenho costuma ser grande, ele ganha a competição pelo acesso ao cocho. Pressionado pelos demais animais, consome da maneira mais rápida possível e, ainda por cima, selecionando preferencialmente o concentrado. Dessa forma ele consome uma quantidade maior de alimento e com uma maior proporção de concentrado em relação ao planejado. Alta fermentação, baixo controle da acidez ruminal levam à acidose cujo agravamento leva o animal à morte.


7) Fornecer gordura ajuda a terminar?


Uma das coisas que esperamos é que o “animal seja aquilo que come”, portanto, nada mais natural que esperar que uma dieta rica em gordura resulte em maior deposição de tecido adiposo (gordura) na carcaça. De fato, uma das vantagens de consumir gorduras é que uma parte delas é incorporada como foi ingerida. Outra parte, todavia, é “queimada” para gerar energia. Há vários dados de experimento que mostram que fornecer gordura na dieta, por si só, não estimula a deposição de gordura, que está bem mais ligada ao desempenho da dieta. Assim, uma dieta com menos gordura na sua composição, mas que imprime maiores taxas de ganho de peso é aquela em que temos maior deposição de gordura e cujos animais serão abatidos com maior espessura de gordura subcutânea (capa de gordura). Como a gordura acima de certo limite na dieta (> 7% da MS) atrapalha o desempenho, ela pode, inclusive, atrasar a terminação do animal.


8) Fornecer gordura ajuda a marmorizar?


O que foi escrito para o item anterior se aplica neste caso: o marmoreio está associado também ao desempenho. Há, contudo um agravante: a preferência dos adipócitos da carne em usar carbonos dos carboidratos (açúcares) para a síntese de gordura, ou seja, contribuiria mais o milho (rico em carboidratos) do que o caroço de algodão (rico em gordura) para o marmoreio. Alguns dados de experimento com animais zebuínos parecem indicar que esse efeito dos carboidratos da dieta aumentarem o marmoreio talvez não sejam tão intensos quanto para os animais europeus.


9) Gordura de carne de boi de pasto é mais saudável?


Uma das modas alimentares nos EUA é o “Grass-fed Beef” (Bife de pasto) e, entre outras vantagens que se atribuem a ele em relação ao bovino “Yankee” convencional, produzido em confinamento com dietas com elevado concentrado, é ter uma composição em ácidos graxos mais saudáveis. Isso decorre do fato das forrageiras temperadas terem em sua composição quantidades consideráveis de ácidos graxos poli-insaturados (AGPI) que vão sendo acumulados no tecido adiposo do animal. Entre esses AGPIs, temos os ácidos graxos ômega-3 e os CLA (ácido linoleico conjugado), cuja ingestão traria benefícios à saúde do consumidor. As forrageiras tropicais, contudo, tem muito menos AGPI. Não só por terem diferente genética, mas também porque a temperatura ambiente tem grande influência na composição de ácidos graxos. Isso significa dizer que, mesmo que usemos uma forragem temperada no Brasil tropical, teremos menos AGPI quando comparada a mesma cultivar crescendo em um país de clima temperado. O motivo disso pode ser ilustrado por aquele tacho de banha na fazenda, que, no calor é líquido, mas no frio, se solidifica. Ao contrário, o óleo vegetal, mais insaturado, em ambas as situações se mantém líquido. Imaginem, então, se a gordura que faz parte das membranas das células da forragem temperada fossem mais saturadas: elas se solidificariam e deixariam de fazer a função delas de permeabilidade seletiva, comprometendo o funcionamento da planta. Esse mesmo raciocínio vale para as células animais.  Enfim, em cada local que o organismo vive, em função da temperatura, uma determinada combinação de ácidos graxos saturados e insaturados na fração lipídica das membranas celulares vai deixá-lo apto a funcionar. Portanto, nesse quesito não temos mais a vantagem de melhor perfil de ácidos graxos em relação à carne produzida a pasto em países de clima frio. O consolo é que, mesmo assim, a gordura da carne bovina é favorável à saúde uma vez que o segundo ácido graxo saturado que ela mais tem, o esteárico, não traz prejuízo à saúde e o insaturado que mais tem, o oleico, faz bem.


10) O melhoramento animal gera animais que consomem mais e, portanto, geram mais metano? Isso não é ruim?


O melhoramento animal é uma das áreas responsáveis pelos maiores ganhos obtidos no aumento de produção. Todavia, apenas mais recentemente se iniciou a pressão de seleção para eficiência alimentar. Assim, o maior desempenho em geral pode ser explicado por maior consumo, ou, melhor dizendo, o inverso disso: o animal consome mais, porque ganha mais. O ganho “puxa” a comida! Quanto mais consumo, mais temos substrato fermentando no rúmen e maior a produção de metano. Apesar de isso de fato ocorrer, importa menos o metano total produzido por animal e mais quantos quilogramas de metano por quilogramas de carne foram produzidos. Essa medida chama-se intensidade de emissão e é considerada a melhor métrica, por considerar o “ônus” (o metano) em relação ao “bônus” (a carne). Um animal consumindo uma dieta muito ruim produz pouco metano, mas se o ganho estiver perto de zero, sua intensidade de emissão tende ao infinito. No caso de um animal melhorado, o metano fica mais diluído nos quilogramas de ganho, gerando uma intensidade de emissão mais favorável. Ao que a intensidade de emissão remete, em última análise, é que podemos reduzir o rebanho sem redução da produção de carne.


Certamente, o leitor deve ter alguma experiência de descobrir outras circunstâncias contra intuitivas. O importante é manter o “intuitômetro” ligado, mas, ao mesmo tempo, observar bem se as coisas não estão indo para outro lado, mantendo sempre a realidade de baliza.


Sergio Raposo de Medeiros - Pesquisador da Embrapa Gado de Corte, agrônomo com mestrado (1992) e doutorado (2002) pela ESALQ/USP.


Um recurso sofisticado que a evolução nos brindou é a intuição. Sozinha já tirou muita gente de enroscadas. Todavia a intuição, nossos sentidos e percepção, em determinadas vezes, falham e chega a ser difícil aceitar que aquela ocorrência foi contra nossas previsões.



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