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Scot Consultoria

Milhares de bovinos mortos por estresse térmico nos EUA: o que isso nos interessa?


Quinta-feira, 30 de junho de 2022 - 11h00

Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.


Foto: Scot Consultoria


Uma notícia de meados de junho movimentou grupos de mensagens: dez mil bovinos no estado do Kansas, nos EUA, teriam morrido de um dia para o outro em decorrência de calor extremo.


Como qualquer notícia que envolva clima, calor e bovinos, a primeira reação é de colocar em dúvida a veracidade dos fatos, inclusive já surgindo uma semente para teorias da conspiração.


Uma postagem de internet por uma fazendeiro do próprio Kansas, interessantemente, frisou que, apesar de respeitar o livre questionamento, teorias (conspiratórias) seriam improváveis e contraproducentes. Ele atribuiu a um fenômeno climático, em inglês chamado “heat burst" (“explosão de calor”).


O Heat Burst (HB) é um fenômeno meteorológico de rara ocorrência caracterizado por um aumento súbito e localizado na temperatura da superfície associado a uma tempestade. O aquecimento ocorre por compressão, exercida pela camada de ar superior que desce, causando um rápido aumento na temperatura da superfície. Em um desses eventos, também no Kansas em 2011, a temperatura subiu de 29,4oC para 38,8oC em 20 minutos.


Ele comenta, então, que os animais que morreram estavam confinados e já bastante pesados, não conseguindo se adaptar à rápida alteração.   


No vídeo toda a narrativa é muito convincente, mas as fontes oficiais não falam em explosão de calor (HB), mas em onda de calor. Seriam pelo menos 2 mil animais mortos por altas temperaturas. Em uma das regiões, a temperatura subiu de 26oC para quase 39oC em dois dias, chegando aos 40oC em seguida.


Independente de qual fosse o motivo, seja explosão de calor (HB) ou onda de calor, ambos são extremos climáticos cuja ocorrência tem ficado mais frequente com o aumento da temperatura média global. Ondas de frio mais intensas e quedas de temperaturas mais drásticas também aumentam e recordes desses fenômenos de baixa temperatura também são devido às mudanças climáticas, o que ainda confunde algumas pessoas que esperariam extremos apenas no lado do calor.


O fato é que o aumento da temperatura pode causar alterações sistêmicas contraintuitivas. Uma dessas alterações sendo estudada é a perda de força do vórtex do Ártico, um sistema que mantêm massas de ar frio no polo e que, ao perder força, permite “vazamentos” de massas de ar polar para latitudes mais baixas, gerando friagens recordes, como o inverno no Texas no ano passado, que causou colapso no fornecimento de energia, mais de 150 mortes e prejuízos da ordem de vários bilhões de dólares.


Assim, é interessante analisar a tragédia no Kansas e aproveitar para entender os desafios que temos pela frente, não só com extremos climáticos, mas com os prejuízos que ocorrem mesmo sem que haja morte de animais, seja por temperaturas elevadas, seja pelo frio.


Calor

A primeira resposta dos animais ao estresse por calor é a redução da ingestão de alimentos, uma vez que a digestão dos alimentos gera calor, o que é particularmente importante no caso de ruminantes, devido ao processo fermentativo no rúmen. Animais sob temperaturas acima de 35oC reduzem seu consumo em 35%, em locais onde não há resfriamento noturno, mas apenas 10%, caso haja. No caso das mortes no Kansas, um fator agravante foi, exatamente, que o calor permaneceu mesmo durante a noite.


Além dessa alteração na ingestão de alimentos, há alterações no metabolismo do animal para se adaptar ao calor e estas podem ajudar a explicar o motivo da morte dos animais.


Alterações por excesso de calor ocorrem no metabolismo de carboidratos, lipídios e proteína. Basicamente, há mais insulina circulante, menor lipólise e redução líquida da síntese proteica (mais degradação, menos síntese). A redução da massa muscular seria para reduzir a mantença, pois é um tecido mais metabolicamente ativo que o adiposo.


Há aumento de gasto energético no estresse por calor por conta da ofegação e sudorese, mas como os hormônios da tireoide (T3 e T4) são reduzidos, o metabolismo do animal também reduz, compensando isso, até certo ponto. Na verdade, o estresse por calor mais leve, aumenta as exigências de mantença, mas que, em seguida, cai com o estresse moderado (efeito da redução do T3 e T4), voltando a aumentar com o estresse por calor intenso.


O aumento da insulina, mesmo com o animal reduzindo seu consumo no estresse por calor, faz com que o animal deixe de ser “flex” entre os combustíveis glucose e gordura, o que impede a mobilização da gordura das reservas do animal e exige mais dependência na glucose. É uma estratégia coordenada de vários processos metabólicos para tentar garantir a sobrevivência do animal, mas que cobra um preço alto em termos de redução na produção.


Um paralelo com a espécie humana, é que pessoas com diabetes são mais suscetíveis à problemas de saúde e morte por calor. Isso explica por que os relatos de morte no Kansas apontam que, principalmente, os animais mais pesados foram preferencialmente os que vieram à óbito. Isso está de acordo com o aumento da gordura corporal, ligada à maior resistência à insulina, como nos casos de diabetes adulta em humanos.


Frio

No Brasil, não há relatos de grande mortalidade de animais pelo calor, mesmo havendo locais com temperaturas tão elevadas como as reportadas para o caso dos EUA. O motivo disse é a genética predominante no Brasil, de animais zebuínos, cujo centro de origem, na Índia, tem frequentemente temperaturas próximas aos 40oC.


Todavia, para ondas de frio intenso, há relatos de grandes perdas de animais. Entre agosto e setembro de 2000, em nove surtos de hipotermia em cidades de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, estima-se que mais de 10 mil animais morreram. Em julho de 2010, aconteceu a perda de quase 3 mil cabeças em cidades do sul e sudoeste do Mato Grosso do Sul. Em ambos os casos, registrou-se queda repentina de temperatura, ocorrência de chuva e ventos significativos. Chuva e vento, pioram a sensação térmica do animal. A queda de temperatura em 2010, foi de 30oC para 10oC em apenas quatro horas e seguiu caindo até entre 5 e 6oC, mas com sensação térmica perto de 3,5oC.


Fica claro que são essas as condições para grandes mortalidades pelo frio, mas com destaque para a rapidez da mudança e, portanto, a dificuldade de regular a temperatura pelo aumento do seu metabolismo. Portanto, sem surpresa, foi identificado que os animais mortos tinham baixa condição corporal, que estavam em pastagens com baixa oferta de forragem, situação que é comum na época do ano em que ocorreram as mortes. Além disso, os locais mais afetados seriam em campo aberto, sem a presença de abrigos naturais.


Lições

Talvez a lição mais importante a se aproveitar da tragédia do Kansas é ela ser apenas a “ponta do iceberg” de um problema maior, que são das mudanças climáticas. Explosões de calor, ondas de frio e calor sempre existiram, mas aumentam em intensidade e número de ocorrências à medida que há mais energia retida na Terra.


Outra lição, é que, muito antes de causar a perda dos animais por morte, a eficiência da produção foi comprometida. Assim, há um prejuízo fácil de calcular que é o número de animais mortos pelo valor de mercado deles, mas um bem mais difícil de saber qual exatamente: qual o prejuízo pela quebra de produção por ineficiência energética? Como o número de animais sobreviventes é muito maior que o de mortos, é bem provável que a perda com eles seja ainda maior. Há ainda, gastos com medicamentos para tratar animais convalescentes (por frio ou calor) e para a disposição dos cadáveres. Por fim, há um desgaste do setor pela manchete negativa.


Por fim, como no caso da explosão de calor, ou nos episódios de morte pelo frio, há o fator tempo. Quando a mudança é muito rápida, mesmo sistemas de organismos vivos com milhões de anos de evolução, como os bovinos, não conseguem se adaptar na velocidade necessária. Podemos fazer, então, um paralelo entre as alterações causadas no ambiente pelas mudanças climáticas, que têm se acelerado, e a capacidade limitada que temos, de forma geral, de fazer frente a elas. Assim, aquela velha ideia que o clima sempre mudou cai por terra, pois nunca houve um aumento tão rápido de temperatura como o dos últimos 50 anos.


Lição extra

Uma lição extra é fugir de teorias conspiratórias ou de explicações como a do pecuarista no Youtube, que apesar de convincente, contrasta com várias outras fontes de informações que fazem um relato bem mais plausível, sendo, provavelmente, o que de fato ocorreu. Portanto, hoje já é perfeitamente possível, com um pouco de dedicação, apurar melhor os fatos, ficar dentro da realidade e, assim, tomar as decisões mais acertadas.


Referências utilizadas


Santos, B.S, Pinto, A.P, Aniz, A.C.M. et al. Mortalidade de bovinos zebuínos por hipotermia em Mato Grosso do Sul. Pesq. Vet. Bras. 32(3):204-210, 2012


Baumgard, L. H., Rhoads, R.P.. Ruminant Production and Metabolic Responses to Heat Stress doi: 10.2527/jas.2011-4675. J An. Sci 2012, 90:1855-1865.


 



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