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Scot Consultoria

Artigo analisa os recentes incêndios na Amazônia e sua possível relação com o desmatamento e o uso extensivo da terra para produção de carne bovina


Terça-feira, 15 de dezembro de 2020 - 15h00

Médico veterinário, mestre e doutor em zootecnia pela UNESP de Jaboticabal e analista de mercado da Scot Consultoria


Foto: Frrepik


Artigo “Incêndio, desmatamento e pecuária: quando a fumaça se dissipa” (”Fire, deforestation, and livestock: When the smoke clears”).


Rafael De Oliveira Silvaa,*, Luis G. Barionib, Dominic Morana


aAcademia Global de Agricultura e Segurança Alimentar, Universidade de Edimburgo, Easter Bush Campus, Midlothian, EH25 9RG, Edimburgo, Reino Unido


bEmbrapa Informática Agropecuária, CEP 13083-886, Campinas, SP, Brasil


Artigo disponível em https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264837720302040


Traduzido por Rafael Suzuki

Os incêndios recentes na Amazônia impulsionaram uma narrativa na mídia combinando política com uma história que liga o desmatamento à pecuária extensiva e ao consumo global de carne. A análise dos motivos dos incêndios de 2019 sugere que a ligação entre o desmatamento e o uso extensivo da terra para a produção de carne bovina não é tão clara como comumente se supõe. Na verdade, a preservação da terra por meio da intensificação sustentável das pastagens predominantemente para gado pode estar atuando como um amortecedor significativo entre a demanda de carne e a produção de gado e a consequente mudança no uso da terra e desmatamento. Boicotes bem-intencionados à carne potencialmente enfraquecem o incentivo para investir na restauração de pastagens e podem levar a um contrafactual de uso extensivo da terra e aumento das emissões de gases de efeito estufa. A possibilidade sugere a necessidade de um debate mais detalhado sobre a especificidade regional do uso da terra para a produção animal sustentável e o papel da mudança alimentar.


Os incêndios da Amazônia em 2019 geraram indignação global, uma disputa diplomática entre Brasil e França e solicitações por um boicote internacional à carne brasileira (Independent, 2019). O episódio foi posteriormente relacionado a um aumento drástico nas estimativas oficiais da taxa de desmatamento na Amazônia (INPE, 2019a).


Impulsionado por vários estudos de grande repercussão sobre desmatamentos (Fearnside, 2015; Nepstad et al., 2014), uma infinidade de relatórios que defendem a mudança alimentar (Searchinger et al., 2019; Willett et al., 2019), e um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) sobre mudanças climáticas e uso de terras (IPCC, 2019), que incrimina o consumo de carne, os incêndios anuais alimentaram um temporal midiático perfeito com a pecuária em seu epicentro. Vincular a produção e o consumo de carne bovina ao desmatamento, às emissões de gases de efeito estufa (GEEs) e à perda de biodiversidade é um motivo plausível para ativistas internacionais e para a mídia global ávida por uma narrativa simples sobre culpabilidade. Revelar a verdadeira imagem das causas do desmatamento é mais complexo e, embora a produção de carne tenha um papel, é importante considerar as evidências contestadas sobre sua importância. A pecuária tem sido predominantemente acusada de ser responsável pelo desmatamento. No entanto, as evidências sugerem que a relação entre a demanda de produtos pecuários e a conversão de terras está longe de ser clara.


Após atingir o pico em 2004, o desmatamento na Amazônia caiu para seu nível mais baixo em 2012 e estava aparentemente sob controle até 2014, em grande parte devido à implementação do plano de ação para prevenção e controle do desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) em 2004 (Arima et al., 2014; Negra et al., 2015).


O PPCDAm incluiu diversas atividades de planejamento para a produção sustentável, monitoramento coordenado por satélite e em campo, aplicação da lei, expansão de áreas protegidas e restrições a alguns créditos rurais envolvendo a produção em áreas desmatadas. O desmatamento também foi influenciado por intervenções de mercado, como a moratória da soja e da carne bovina, na qual grandes comerciantes se comprometeram a evitar compras de commodities ligadas ao desmatamento (Arima et al., 2014).


Esses fatores ajudaram a estabilizar a área de pastagem em cerca de 180 milhões de hectares desde 2006, enquanto a pecuária continuou a crescer. Outra razão é que os sistemas extensivos de carne bovina são simplesmente menos lucrativos do que fazendas intensivas e voltadas para a exportação. O recente crescimento da produção é cada vez mais atribuível a ganhos de produtividade via melhoria das pastagens existentes, melhoria no desempenho animal, suplementação alimentar a pasto e em confinamento e melhoria da genética animal (Lobato et al., 2014). O quadro é de aumento da eficiência produtiva e de emissões por unidade animal, minimizando a competição com a terra usada para alimentação e ração, além da perda evitada de biodiversidade. Esses são indiscutivelmente os elementos essenciais da intensificação sustentável da agricultura (Garnett et al., 2013).


A figura 1 ilustra a intensificação sustentável e a aparente dissociação da ligação entre a produção de carne e o desmatamento no Brasil. Um aumento de cerca de 5% na produção de carne durante o período de 1986–1988 se correlacionou com um aumento de 3% na área de pastagem. A partir de 2006, variações positivas na produção não causaram expansão das pastagens. O aumento da produção é, em vez disso, explicado pelos ganhos de produtividade (figura 2).


Figura 1. Mudanças relativas na pastagem em função das mudanças relativas na produção de carne. Usamos dados de Mapbiomas (2019) para área de pastagem, enquanto a produção de carne bovina foi baseada na FAO (2015). 



Além disso, e ao contrário da crença popular, o aumento da participação da carne bovina para a exportação pode ter contribuído para enfraquecer a ligação da pecuária de corte com o desmatamento no Brasil. A figura 2 mostra que a estabilização da área de pastagem coincidiu com um forte aumento nas exportações brasileiras, desde o surto da doença da vaca louca em 2001 na Europa. O episódio deu ao produto brasileiro uma vantagem competitiva, pois os animais alimentados em pasto não são tão suscetíveis à doença e estavam sujeitos a regulamentações ambientais internacionais mais rígidas.


Figura 2. Área relativa de pastagem e produtividade de carne bovina (FAO, 2020) em relação à média de 1985-87, em função dos períodos (eixo y primário) e exportações de carne bovina (eixo y secundário). A produtividade da carne bovina é calculada em kg de carne bovina em peso de carcaça equivalente por tonelada por ano. Veja detalhes de cálculo e análise estatística no arquivo suplementar. 



A economia política também é um fator significativo na relação entre o desmatamento e carne. O grande agronegócio voltado para a exportação, a chamada “coalizão rural”, detém poder significativo no Congresso Nacional Brasileiro e tem pressionado por montantes crescentes de crédito rural para produtores, o que tem facilitado grandes investimentos em intensificação sustentável (Lapola et al., 2014).


Entre 2012 e 2014, uma média de 1,5 milhão de toneladas de equivalente peso-carcaça foi exportada para cerca de 90 países (FAO, 2020), enquanto a área de pastagem foi reduzida em cerca de 1 milhão de ha no mesmo período (Fig. 2). Uma quantidade exportada semelhante, no período de 2015–2017, esteve associada a uma contração da área de pastagem de 0,44 milhão ha (FAO, 2020). Isso reforça o ponto de que políticas e intervenções de mercado, em vez da demanda por carne bovina, têm influência significativa na relação pecuária-desmatamento (Silva et al., 2017).


Uma narrativa incriminando a produção de soja no relatório do uso da terra para o gado também é tênue. Na verdade, a expansão da pastagem também está negativamente correlacionada com a produção de soja (ver arquivo suplementar). Cerca de metade da produção de soja é exportada, principalmente para a China, enquanto a maior parte do consumo doméstico é para a produção de suínos e aves, que se concentram no sul do Brasil (EMBRAPA, 2020). O gado de corte brasileiro é predominantemente alimentado com pasto, ou seja, as pastagens respondem por mais de 95% da demanda de alimento, já que apenas 5 milhões de animais em um rebanho de 200 milhões são confinados por 2–3 meses (ANUALPEC, 2017). Outros estudos enfatizaram os papéis contínuos de liberação e interdição de especulação e segurança de posse, como motivadores de conversão de terra (Bowman et al., 2012; Arima et al., 2014), que por sua vez frequentemente levam a altos níveis de abandono de terra de áreas desmatadas (50% em 2004–2014) ao crescimento da vegetação secundária (Carvalho et al., 2019; Mapbiomas, 2019).


Isso sugere uma dinâmica sutil de uso da terra, na qual os animais que pastam são usados para facilitar a conversão e indicar a propriedade, ao invés de ser o principal motivador, como geralmente se supõe. No entanto, isso implica que a intensificação sustentável por si só não é suficiente sem uma reforma regulatória para o acesso à terra e securitização de posse. Sugerimos que o último é o ponto determinante da disponibilidade de terra e um importante impulsionador do investimento em intensificação sustentável.


A instabilidade política desde 2015, especialmente uma mudança de tendência para a direita em 2018, aumentou os temores de que a capacidade de monitoramento e fiscalização pudesse ser prejudicada, levando a um possível recrudescimento da conversão de terras. Isso foi confirmado em 2019 quando dados preliminares do Sistema de Alerta de Incêndio em Tempo Real (DETER) do INPE relataram um aumento de 84% nos alertas de incêndio entre janeiro-agosto, em comparação com o mesmo período de 2018 (INPE, 2019b). O aumento foi então correlacionado com a maior taxa de desmatamento anual da última década, totalizando 1,03 milhões ha de vegetação natural (INPE, 2019a). Dados preliminares recentes sobre alarmes de incêndio cobrindo o primeiro trimestre de 2020 confirmam essa preocupação (INPE, 2019b).


Os dados oficiais, portanto, são motivo de preocupação sobre a trajetória de longo prazo da Amazônia, com alguns estudiosos argumentando que o bioma pode atingir um ponto de inflexão em alguns anos (Lovejoy e Nobre, 2018). Essa deve ser a base para um debate informado sobre todas as causas do desmatamento, incluindo a ligação percebida com a demanda por carne e, por extensão, com as práticas de pecuária. Deve também examinar outros fatores legais e regulatórios ainda em vigor em torno da posse da terra.


Além do desmatamento evitado, a intensidade das emissões de GEEs de produtos da pecuária pode variar significativamente em fazendas mais ou menos eficientes, com até mesmo a possibilidade de emissões negativas quando o sequestro de carbono de pastagens com raízes profundas é incluído nos cálculos (de Oliveira Silva et al., 2016; Stanley et al., 2018). Uma eventualidade de redução da demanda pode, na verdade, ser o aumento das emissões em algumas circunstâncias, onde a redução da demanda do mercado remove os incentivos para a intensificação das pastagens e melhoria contínua da produtividade animal. Em última análise, a demanda reduzida pode incentivar o uso mais extensivo da terra.


Os incêndios brasileiros voltaram a chamar a atenção internacional para o destino de um bem do público global, mas há uma tendência a simplificar a complexidade da dinâmica do uso da terra, “demonizando” os produtores de gado e o papel da demanda do mercado. Existem bons argumentos para moderar o consumo de carne em várias regiões do mundo, mas também devemos abrir espaço para evidências sobre conexões sistemáticas para orientar uma conversa considerando as nuances sobre como concentrar a produção residual em sistemas e regiões mais eficientes, enquanto reduz a produção em outras. Parte dessa conversa é uma avaliação realista do mercado para o valor de transação vinculado a bens mercantis e não mercantis. A mudança na dieta é apenas uma parte da história e o impacto potencial não intencional das mudanças na dieta e as informações sobre intensidade de emissão de GEES implícitas fornecem algumas evidências para reequilibrar a retórica atual em torno da redução do consumo de carne. Este último pode não produzir o resultado esperado em termos de uso menos extensivo da terra.


O material complementar relacionado a esse artigo pode ser encontrado, na versão online, em doi: https: //doi.org/10.1016/j.landusepol.2020. 104949.



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