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Scot Consultoria

Mais vale um dado duvidável na mão do que bois engordando no pasto?


Segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020 - 05h50

Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.


Foto: Scot Consultoria


No último dia 30 de janeiro, em São Paulo, foram apresentados os resultados de dois estudos encomendados pelo Instituto Escolhas no evento intitulado “Do pasto ao prato: subsídios e pegada ambiental da carne bovina”.  


A gerente do Instituto Escolhas (IE), Jaqueline Ferreira, abriu o evento explicando que o IE se propôs a analisar os impactos da cadeia produtiva da carne e os subsídios que ela receberia, que são ônus compartilhados com toda a sociedade. O objetivo seria qualificar o debate e dar transparência ao uso do recurso público e, assim, ajudar na adoção de melhores práticas. Por exemplo, revendo se esses subsídios não acabam ajudando a manter produtores ineficientes, que causam maior impacto ambiental, conforme externou o diretor executivo do IE, Sergio Leitão, durante o evento.


Neste texto, vamos: (1) relatar os dados apresentados no evento, mas colocando um indicador que chamaremos de “Opções potencialmente insanáveis”, a partir de agora referidas como “Opis!”; (2) relatar os principais pontos trazidos pelos debatedores e (3) finalizar com uma breve avaliação se os objetivos do IE foram alcançados.


Relato sobre os trabalhos apresentados:


Trabalho sobre subsídios:


O Dr. Peterson Molina Vale, um dos responsáveis pelo estudo sobre subsídios, fez a primeira apresentação do dia. Ele relatou que os subsídios concedidos à cadeia da carne no Brasil custaram R$123 bilhões aos cofres públicos entre 2008 e 2017, que foi o período considerado no estudo.


Da média anual de R$12,3 bilhões em subsídios, R$7,9 bilhões (64%) seriam renúncia fiscal e R$4,4 bilhões (36%) seriam subsídios creditícios, subsídios de preços e anistias. Fazem parte dos subsídios creditícios, os fundos constitucionais regionais (FCO, FNE e FNO; do centro-oeste, nordeste e norte, respectivamente), o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e outros. A maior parte do subsídio creditício é para os fundos constitucionais (46,4%), ficando o PRONAF em segundo (29,8%). Em ambos os casos, o crédito é para equalização das taxas de juros de financiamentos, isto é, o dinheiro público é usado para pagar a diferença entre o custo da captação do dinheiro no mercado e o juro subsidiado. No caso do PRONAF, por exemplo, em que essa ajuda é a mais intensa, cerca de 25% dos juros foram pagos pela sociedade.


A maior parte, portanto, é de renúncia fiscal e, desses R$7,9 bilhões/ano, quase metade (46,8%) são de renúncias no Programa de Integração Social (PIS) e na Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins); além de 28,6% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e, os 25% restantes, do imposto de renda, imposto previdenciário rural (Funrural) e imposto territorial rural (ITR).  


Quando relacionado ao total em impostos arrecadado pela cadeia pecuária da carne bovina o resultado são impactantes 79%, ou seja, a contribuição líquida seria de apenas R$1,05 a cada R$5,00 arrecadados. Em relação ao preço médio do quilo da carne bovina, seriam 9,7%. O valor de 1,9% do valor bruto da produção de carne deixa esse valor ainda menos bombástico.


Trabalho sobre impactos ambientais:


Os dados da parte sobre pegada ambiental foram apresentados pelo biólogo Roberto Strumpf, que coordenou o estudo. Ele iniciou relacionando algumas das premissas usadas:


  Para a pegada de C, considerou-se todo o território nacional, mas com cálculos por estados, combinados em três regiões: (1) a Amazônia Legal, com exceção do Piauí e Maranhão, (2) o Matopiba e (3) os demais estados.


  Para a pegada hídrica, considerou-se só um sistema de produção cria-recria e engorda em confinamento (Opis!#1).


  Foram usados dados secundários, a principal fonte sendo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas também contaram com a ajuda de especialistas. Os dados de abate foram baseados nos dados oficiais.


  Para os dados de desmatamento foram usados dados do sistema de monitoramento da Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o PRODES, e da rede colaborativa Mapbiomas.


Pegada de carbono


Foram criadas cinco classes de manejo de pasto: Pasto degradado (PD), Pasto Estável (PE), Pasto Bem Manejado (PBM) e Sistemas Integrados (SI). O degradado seria emissor de carbono (C), o estável, teria emissão zero e, os dois sistemas mais intensivos restantes, causariam remoção líquida de C, em vez de emissão.


No caso das pastagens, a estratégia para alocar para cada uma dessas classes foi a taxa de lotação municipal do IBGE (Opis!#2). Outra decisão que foi tomada é que a maior parte das emissões associadas ao desmatamento seria alocada no PD (Opis!#3).


Nos dez anos considerados, apesar do rebanho ter aumentado 10%, as áreas de pastagem e de desmatamento reduziram. O resultado é que a pegada de carbono em 2017 seria quatro vezes menor do que a de 2008.


Os resultados obtidos são apresentados na Tabela 1, não na métrica original (kg de CO2-eq/ kg de carne), mas em relação ao resultado médio para todo o Brasil.


Tabela 1.
Resultados da pegada de carbono por região e sistema produtivo colocado em relação ao valor para o Brasil e todos os sistemas. A subdivisão “Com” e “Sem”, refere-se a considerando ou não o desmatamento, respectivamente.


Portanto, os valores da tabela 1 representam quantas vezes mais (valores positivos) ou quantas vezes menos (valores negativos) é a pegada em relação ao valor do Brasil em geral (todas as regiões e todos os sistemas) sem desmatamento, cujo valor, portanto, é igual a um (em destaque na tabela). As razões para essa transformação são explicadas na última parte do texto. Os dados deixam claro que, quanto mais intensiva a pecuária, menor o impacto ambiental.


Deixa claro, também, o grande efeito negativo do desmatamento na pegada ambiental da carne. Quando incluídas as emissões do desmatamento, mesmo o PBM fica emissor na Amazônia legal e no Matopiba. 


Pegada hídrica


Para a pegada hídrica, na produção extensiva a “água cinza”, referente àquela que dilui os poluentes até níveis aceitos pela legislação antes do retorno aos corpos d´água, não foi considerara porque não seria significativa em função da produção eminentemente em pastagens (Opis!#4). A água cinza do abate também não foi considerada baseada na premissa que a legislação já obriga que o frigorífico tenha que retornar a água tratada para o ambiente. Foram consideradas, então, a “água azul”, a água doce retirada de corpos d´água superficiais ou de aquíferos, e a “água verde” que é a soma das águas transpirada pela cultura vegetal e evaporada pelo solo.


De maneira semelhante ao feito com os dados de pegada de carbono, os dados são apresentados de forma relativa, com base no dado mais geral que é o “Total com abate”.


Tabela 2.
Resultados da pegada hídrica em porcentagem do total de água usada por quilo de carne.


Sistema Verde Azul Total
Pastagem 92,93% 0,23% 92,62%
Confinamento 7,32% 0,03% 7,35%
Total 99,71% 0,26% 99,97%
Abate   0,03% 0,03%
Total com abate 99,71% 0,29% 100,00%


Como pode ser observado na Tabela 2, a pegada verde é quase a totalidade do uso de água estimada.


Ao considerar o risco de seca, de acordo com dados da Agência Nacional de Águas (ANA), o Mato Grosso do Sul e o sul de Mato Grosso seriam as regiões mais preocupantes, com risco médio. O fato é que, em regiões de déficit hídrico pronunciado, como o sertão nordestino, a pecuária bovina baseada em pastagens, naturalmente, é incipiente.


Participação dos debatedores:


O debate foi mediado pelo diretor executivo do IE, Sergio Leitão, com a participação dos apresentadores dos trabalhos sobre subsídios e da pegada ambiental, da senadora por Tocantins, Kátia Abreu e do economista Bernard Appy, idealizador da proposta de reforma tributária atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados.


Comentários da senadora Kátia Abreu:


A senadora Kátia Abreu fez vários comentários interessantes, por ser uma grande conhecedora da cadeia da pecuária, tanto por ser empresária rural, como pela atuação política, em especial por ter sido ministra da Agricultura. Destacamos os principais:


Ela lembrou que o Brasil era importador de alimentos até a década de 1970 e que, nessa época, 40% da renda média do trabalhador brasileiro eram gastos com alimentação. Foi graças aos investimentos em pesquisa e às políticas públicas adotadas deste então (incluindo os subsídios) que nos tornamos um grande exportador de alimentos e, hoje, a parcela gasta em alimentação fica entre 15-18% da renda. Também fez uma defesa enfática da política de preços mínimos, sem a qual, segundo ela, a agricultura brasileira talvez nem existisse mais, uma vez que competimos com países que subsidiam fortemente seus produtores rurais. De acordo com a senadora, por conta disso, nesses países, o próprio sistema privado de seguros oferece proteção barata ao produtor rural. Assim, enquanto nos EUA, praticamente 100% dos produtores são protegidos por capital privado, no Brasil, a senadora comentou que apenas 15 milhões de hectares, dos 65 milhões cultivados, são segurados.


Comentando sobre os 1,9% do valor bruto da produção de carne em subsídios disse que, além deles serem menores do que a média dos países da OCDE, de 2,7%, esse valor é quase uma piada quando comparados ao valor da China, com subsídios que chegariam a 15% do valor bruto da produção, e dos Estados Unidos que seria de 9%.


A senadora, ao ser questionada pelo moderador se o fato da arrecadação líquida do setor pecuário ser de apenas 21% poder indicar que a sociedade estaria financiando produtores ineficientes, discordou do valor por conta da maior parte dos subsídios virem da desoneração da cesta básica (o que é verdade particularmente à partir de 2013). Mesmo assim, ela concorda que, a atividade sendo competitiva, não há por que dar subsídios, pois isso seria o que se chama “vazamento”, ou seja, dar dinheiro para quem não precisa.


Com relação a não haver necessidade de desmatamento para aumentar a produção, ela concordou, mas fez questão de lembrar que o proprietário tem o direito de desmatar a área franqueada por lei em cada bioma. Ela defendeu isso fazendo um paralelo hipotético em que, em uma determinada cidade poderia não haver déficit habitacional, mas o empresário dono de um terreno tem o direito de fazer um novo empreendimento imobiliário.


Para ela, há tecnologia de sobra disponível, mas faltaria crédito aos produtores para poderem colocá-las em prática. Lembrou, ainda, que 80% das propriedades rurais no Brasil são de pequenos produtores e que, aqueles sem recursos para aumentar a produtividade, mantém-se na atividade ampliando a área para produção, desmatando pequenas áreas em sequência a cada ano. Chamou atenção, então, para que não tenhamos preconceito e saber diferenciá-los do desmatamento relacionado por madeireiros e mineradores e, também, para a necessidade de regulamentação fundiária na Amazônia (em muito não feita, no caso dos pequenos produtores, também porque faltariam a eles recursos).


Comentários do economista Bernard Appy


Appy comentou que, apesar de admirar o trabalho hercúleo realizado, que os dados gerados em relação aos subsídios não seriam úteis para orientar políticas públicas. Ele explicou que o grande problema do trabalho foi ter criado um sistema tributário de referência, isto é, ele assumiu um cenário comum para ter como base para fazer os cálculos, mas, segundo Appy, esse cenário é incapaz de representar minimamente a realidade. Para exemplificar apenas um ponto, citou o caso do imposto de renda que um produtor com renda muito baixa: ele é isento se escolher declarar como pessoa física, mas pagaria 15%, caso declare como empresa rural. Todavia, segundo ele, haveria inúmeras outras situações que, qualquer que fosse o caminho para simplificação em um sistema de referência padrão, resultaria em distorções insolúveis.


O segundo problema apontado por ele seria o fato de estarem consideradas as desonerações de muitos tributos indiretos, como PIS e Cofins, cujo objetivo é o da redução do custo da cesta básica, como também comentado pela senadora Kátia Abreu.


Appy demonstrou forte desaprovação com relação ao uso de subsídios, citando o caso da “Bolsa Família” como uma opção muito mais eficiente de política pública social, afinal o benefício vai mais direcionado a quem precisa e o próprio beneficiado decide como usar o recurso. Ele defende que o sistema de cobrança de impostos seja o mais uniforme possível, e havendo externalidades negativas, criem-se taxas específicas para combatê-las, o que ele chamou de “bastão”, ou políticas de incentivo para práticas que reduzam as externalidades negativas que, em oposição ao primeiro, seria a “cenoura”. Usou o desmatamento ligado à pecuária como exemplo, inclusive deixando claro que hoje a questão ambiental seria o principal fator para ser levado em consideração mesmo.


Com relação à reforma tributária, comentou que, se for bem feita, o setor pode até ter sua carga de impostos majorada, mas que o resultado dela pode ser maior renda para a sociedade, que acabará aumentando a demanda por carne, com possíveis benefícios líquidos aos produtores. Isso faz a questão ambiental ainda mais importante e com a necessidade de aumentar a eficiência de produção, chave para redução dos impactos ambientais.  


Observações sobre os dados


Antes das observações, repasso a conexão eletrônica do IE em que todos os dados podem ser conferidos nas apresentações e relatórios dos trabalhos. 


Os dados apresentados sobre subsídios foram categoricamente colocados como não válidos para os objetivos pretendidos do IE, graças à competência e clareza do debatedor especialista na área. Importante lembrar que Bernard Appy é membro do Conselho Científico do IE, o que faz mais admirável a franqueza como colocou sua opinião.


Infelizmente, não havia, no caso dos dados de pegada ambiental, um debatedor com a mesma envergadura, capaz de impor um filtro equivalente, mas, pela conversa com diversos colegas pesquisadores que trabalham na área, caso houvesse, o trabalho da parte ambiental talvez acabasse tendo avaliação semelhante.


Baseado em breve interação com esses colegas que fizemos essa pequena lista das “Opis!”, mas com a forte sensação que, ao colocar mais especialistas para escrutinizar o trabalho, muitos outros pontos de questionamento acabariam aparecendo.


A Opis!#1 tem relação em usar um sistema cria-recria-terminação em confinamento como base do estudo, uma vez que apenas cerca de 13% dos animais abatidos são  terminados em confinamento em que, em média, passam somente seus três derradeiros meses de vida.


Já a Opis!#2, referente à escolha da taxa de lotação como indicador de pastagem degradada, sem dúvida é a com maior potencial de invalidar o trabalho. A associação que foi feita é que a explicação para os municípios terem lotação baixa seria terem pastagens degradas e vice-versa. Apesar de, de fato, pastagens degradadas terem como uma de suas características não serem capazes de manter a produção e/ou muita carga animal, “baixa lotação” também pode representar pastos bem manejados e “alta” lotação pode representar pastos sendo degradados. Os adjetivos seguem entre aspas, porque os dados são todos relativos, mesmo.


Aliás, essa é mesmo uma das questões mais polêmicas da pecuária brasileira: simplesmente não há uma definição objetiva do que um PD seja. Sintomático disso foi o fato da senadora Kátia Abreu considerar que o dado usado no estudo, em que pastagens degradadas corresponderiam a 19% do total de área de pastagem, seria o dobro do valor real.


No caso da Opis!#3, com a atribuição do desmatamento maior para o PD, haveria dois aspectos a considerar. O primeiro, é que, obviamente, ele carrega as incertezas comentadas acima da Opis!#1. Em segundo lugar, a própria atribuição do desmatamento para pecuária parece injusta, pois, se imaginarmos que, por mágica, conseguíssemos inibir a produção pecuária em áreas recém-desmatadas, elas deixariam de ser abertas?


O Opis!#4, em relação às demais, até pode ser considerada perfumaria, pois realmente, a “água cinza” deve ser relativamente bem menor que as demais classes, mas fizemos questão do destaque para incluir uma das críticas dos colegas especialistas em pegada hídrica e como esse indicador ambiental, tamb&eacut✔e;m, pode ser melhorado com a contribuição deles.


Foi, em função das muitas críticas ao trabalho, que se optou por apresentar os dados não como obtidos, mas de forma relativa. Os dados relativos, mesmo que possam também prescindir de exatidão, estão de acordo com o que já foi identificado faz um bom tempo pela comunidade científica: a saída para a pecuária bovina, não só para ter futuro, mas para ajudar a ser um futuro melhor para todos, é facilitar que se consiga investir em práticas de intensificação sustentável, melhorando a produtividade e, simultaneamente, reduzindo o impacto ambiental.


O Dr. Peterson Vale, na difícil situação de responder às críticas a sua parte do trabalho, elegantemente aceitou-as, mas se defendeu dizendo que, se outros geram esse dado, como a OCDE, ele também teria o direito de gerar um e que, melhor que não ter dado nenhum, é ter um que, ainda que incerto, permita o debate.


A única maneira de dar razão à defesa quanto a ter um dado duvidável é se ele servir para avançarmos na obtenção de dados melhores. Considerando as críticas também à parte ambiental, o IE só vai obter seus objetivos, com o louvável esforço feito até aqui, se mantiver acessa a chama do debate, especialmente ouvindo os “Bernards Appys” que temos nas áreas de pegada de carbono e pegada hídrica!


Vamos continuar o debate?


Agradeço às sugestões e correções dos colegas da Embrapa Dr. Júlio César Pascale Palhares, Dr. Roberto Giolo de Almeida e Dr. Davi Bungenstab.



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