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Scot Consultoria

Greta, sem treta!


Segunda-feira, 20 de janeiro de 2020 - 09h00

Engenheiro agrônomo, formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado pela mesma universidade. É pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste e especialista em nutrição animal com enfoque nos seguintes temas: exigência e eficiência na produção animal, qualidade de produtos animais e soluções tecnológicas para produção sustentável.


Foto: Scot Consultoria


“Aquele que ignora, afirma. O letrado, dúvida. O sábio, reflete”


Aristóteles


O que pode haver de mal num post como este abaixo?



 


Aparentemente inofensivo, pode parecer plausível, tanto nas previsões catastrofistas que não teriam se confirmado, como por poderem ser usadas para criar taxas. Essa segunda parte e até menos importante, uma vez que nunca houve falta de argumento para aumentar impostos, mas quanto ao restante, será que somos cientificamente tão incompetentes assim? Abaixo, fazemos uma checagem dos três mais importantes.


“Outra era glacial em 10 anos”


Que haverá uma próxima era glacial é consenso entre os cientistas, mas você e eu, caro leitor, não devemos presenciá-la, mesmo que você tenha acabado de aprender a ler, uma vez que a estimativa mais curta para o fim da atual era interglacial que vivemos é de 10 mil anos.


Em 2005, exatamente essa mesma manchete dos anos 1970 voltou a ocupar os jornais. O repórter científico Pat Hadfield, que tem um excelente canal de divulgação que procura desmistificar informações científicas erradas, apresenta um relato bem interessante desse caso. Hadfield mostra no seu vídeo1 que, ao buscar as informações da matéria, ficou claro que nenhum cientista ou instituição científica fez tal afirmação que pode ser totalmente atribuída a quem escreveu a matéria. Muito pior ainda foi que, cinco anos mais tarde, o mesmo jornal fez outra matéria, contradizendo a primeira, para denunciar “mais um mito da ciência”, que, na verdade, eles mesmos haviam criado!


Enfim, essa é uma invenção jornalística e o consenso científico nesse caso é que, simplesmente, ninguém sabe ao certo definir quando começa a próxima era glacial.


“A camada de ozônio será destruída”


O ozônio (03) é um gás formado naturalmente na atmosfera em elevadas altitudes, onde atua como um filtro parcial da radiação ultravioleta (UV) que, sem essa proteção, chegaria à superfície terrestre em níveis nocivos aos seres vivos. Em 1973, pesquisadores americanos descobriram em laboratório que a substância clorofuorcarbono (CFC) era capaz, não só de reagir com o 03, mas sair desse processo refeito e pronto para continuar reduzindo a presença do 03 na estratosfera, a penúltima camada da atmosfera.


Em 1978, os EUA já praticamente eliminaram seu uso, para desespero dos seus fabricantes e usuários, pois ele era largamente usado por ser seguro e muito barato. Em 1985, pesquisadores britânicos revelaram ao mundo a existência do buraco na camada de 03 sobre a Antártica, comprovando que as preocupações à época da descoberta da ação dos CFCs, 12 anos antes, eram mais que procedentes. Houve, então, um grande esforço global para o banimento dos CFCs, culminando com a assinatura do Protocolo de Montreal em 1988, quando se decidiu pelo fim total do uso desse produto a partir de 1998, mas, dada a gravidade da situação, foi antecipado para 1996.


Foi, portanto, um exemplo bem sucedido de eventos em que prevaleceu a crença na ciência e na lógica: (1) Descobriu-se um problema; (2) Constatou-se sua gravidade e (3) Ações efetivas foram tomadas para resolvê-lo. A camada de ozônio ainda hoje está recuperando-se, já com 99% do tamanho original.


Portanto, ao contrário do que está implícito no post, que ele não existiria (ou seria um erro da ciência), usado apenas como pretexto para fazer mais dinheiro, foi um problema real, evitado graças à solução do problema em função de esforços coordenados globalmente.


É verdade que ainda hoje persiste uma versão maligna que tudo seria uma armação da multinacional americana que tinha a patente do CFC que terminava em 1979. Ocorre que essa empresa e outras foram fortemente contra todos os movimentos para banimento, inclusive investindo em propaganda que tentavam colocar dúvidas nos achados científicos. Só ficaram a favor quando, forçadas pelos movimentos contra o uso de CFC, investiram US$500 milhões, conseguindo patentear substitutos ambientalmente seguros em 1986, dois anos antes da assinatura do Protocolo de Montreal. Esses substitutos custam mais caro (entre 2 a 3 vezes), mas é compreensível que um produto que precise ter diferencial ao anterior seja mais caro mesmo.


“As calotas polares acabarão em dez anos”


Essa previsão está vigente faz algum tempo, mas não para um período tão curto. Em entrevista para o canal Ciência USP em 2017, o professor Pedro Leite da Silva Dias2, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG/USP), comentou que lá pelo início dos anos 1990 era previsto que o gelo no Ártico começaria a reduzir da metade para do século XXI em diante e o primeiro verão sem gelo seria para 2060 em diante. Todavia, devido à aceleração do aquecimento global, ele comenta que haveria previsão até para antes de 2030. Agora, sim, há esse relato para daqui dez anos ou menos.


Todavia, antes de fazer a manchete “2020 - As calotas polares acabarão em dez anos”, é preciso considerar que a informação é de uma entrevista com a visão de apenas um pesquisador. É aconselhável tentar achar outras informações. Uma busca rápida na Internet retorna um artigo de divulgação da revista Scientific American3, escrito por uma qualificada cientista que cita simulações prevendo a ausência de gelo desde 2020 até 2100, em função da variabilidade natural do clima e do aquecimento global. Enfim, segundo ela vai depender de quanto CO2 vamos colocar na atmosfera daqui em diante, lembrando que historicamente o Ártico era recoberto de gelo o ano todo e, hoje, a área é metade do que costumava ser.


Com base em dados de um estudo que apregoa uma taxa de 3 m2 a menos de cobertura para cada tonelada de CO2 emitido e a atual emissão anual desse gás (35-40 bilhões de m3), ela estima que teríamos o primeiro setembro sem gelo daqui a 20-25 anos.  


Chamam a atenção, aqui, dois aspectos: (1) A grande variabilidade de projeções, mas o que está de acordo com a variabilidade de cenários possíveis e (2) como é possível manipular a informação dependendo de que dados são apresentados, seja para amenizar o problema (“Só em 2100...”), reforçar o sentido de urgência urgentíssima (“Ocorrerá já em 2030...”) ou, até, desacreditar a previsão (“Falaram 2020 e não aconteceu!”). Em nenhum dos casos, todavia, a informação científica foi dada de forma completa e contextualizada. Quando isso é feito, contudo, fica evidente que nossa janela de oportunidade para agir vai ficando, de fato, cada vez mais curta, especialmente se não alterarmos o rumo das emissões.


E os que faltaram?


Deixo as restantes, do petróleo e da chuva ácida, para quem quiser se dar ao trabalho de apurar, mas apostaria que seguem o mesmo padrão de distorção observado nas anteriores. Com as três que comentamos, creio que fica claro que vale à pena manter o espírito crítico elevado e se aproveitar da facilidade de se buscar informações na Internet para tirar algumas informações a limpo e podermos nos posicionar com mais propriedade sobre esses importantes temas.


E o que está fazendo a Greta no título? Onde ela entra nisso?


Antes de explicar, para alguém que não conheça bem, um breve resumo de como essa adolescente sueca se tornou mundialmente conhecida. Em 2018, aos 15 anos, ela criou o movimento “Sextas-feiras para o futuro” no qual faltava a aula às sextas-feiras para protestar contra a inação contra as mudanças climáticas. Em setembro desse mesmo ano, próximo às eleições suecas, ela ficou quase três semanas em frente ao parlamento do seu país protestando. Apesar de sozinha no primeiro dia, acabou angariando o apoio de muitas pessoas e esse foi o início de sua notoriedade internacional. Desde então, seu movimento ganhou a adesão de estudantes em várias partes do mundo e ela se transformou num símbolo quanto à necessidade de ações contra o aquecimento global antropogênico (AGA). O antropogênico significa que é causados em decorrência das atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis para gerar energia (aliás, de longe, o maior responsável pelo AGA).


Especialmente após seus cinco minutos de discurso inflamado na ONU, em setembro do ano passado, começou a ser bastante hostilizada nas redes sociais no Brasil, na qual ela é frequentemente identificada como representante de interesses velados dos países ricos na Amazônia e em nos atrapalhar o desenvolvimento em geral...enfim mais um lobo em pele de cordeiro. Nesse início de 2020, frequentemente ela é cobrada pelo silêncio quanto à tragédia dos incêndios na Austrália, junto com o presidente da França, Emmanuel Macron.


Quanto ao presidente francês, a bronca procede, pois ele não se manifestou mesmo e trata-se de um político que realmente fez uma intervenção oportunista à época da crise das queimadas da Amazônia e, ainda por cima, sem fundamento científico (ao comentar que seria o “pulmão do mundo”) e considerada colonialista (ao relativizar a soberania brasileira). Já com relação à Greta, ela se manifestou várias vezes sobre os incêndios na Austrália, especialmente por considerar o que ocorre por lá tem ligação com o AGA, razão da sua luta.


Na mesma linha de rever as informações do post do início do texto, fui procurar saber qual a opinião da comunidade científica sobre quanto os acontecimentos na Austrália tem a ver com o AGA. Bem resumidamente, o clima na Austrália está ficando mais quente e seco, com a ocorrência de estações de fogo mais longas e intensas. Isso é uma das previsões dos cientistas desde 2009, como registrado no relatório do IPCC4 daquele ano. Essa seca, segundo o pesquisador brasileiro Carlos Nobre, seria a segunda maior da Austrália, ocorrendo junto com temperaturas sem precedentes desde o início da coleta de dados no final do século XIX.


O tempo mais quente e seco fez com que a estação do fogo, que naturalmente ocorre todo ano, começasse antes do usual e tivesse um alcance também inédito, havendo a informação que mais de 11 milhões de hectares já foram queimados e que, infelizmente, ainda continuam a crescer. Um dos motivos para a propagação impressionante do fogo são os fortes ventos, cuja velocidade aumenta também devido às maiores temperaturas.


Pode haver outros fatores que contribuam com o desastre, sendo um deles a decisão de reduzir a área de queimadas controladas que, por reduzirem a biomassa que serve de combustível para o fogo, atuam como áreas de atenuação dos incêndios ou descontinuidade da área incendiada. Todavia, uma das razões para terem sido reduzidas é exatamente ocorrer cada vez menos dias favoráveis para fazê-las sem risco de elas saírem de controle, algo também ligado ao AGA. Enfim, seja do lado que você olhar, é inegável a relação do AGA no agravamento do fogo na Austrália.


Dado o exposto acima, mesmo que a Greta não tivesse se manifestado, a própria bandeira que ela representa já a eximiria da omissão completa.


Uma das manifestações interessante dela é que comum a acusarem de ter interesses políticos, mas que ela está apenas apoiando o que a ciência defende e, portanto, o viés político é mais de quem a acusa. Para discordar dela, teríamos que mostrar que a ciência não está do lado dela.


A bandeira defendida pela Greta encontra base na ciência?


Considerando que 195 países assinaram o “Acordo de Paris”, supostamente com o devido aconselhamento científico recebido pelos seus mandatários, parece já ser um bom indicador. Isso também está de acordo com uma revisão publicada em 20165 que mostra que entre seis diferentes estudos, o consenso de que os seres humanos estão causando o aquecimento global seria compartilhado por 90% a 100% das publicações científicas sobre aquecimento global.


Essa revisão mostrou, também, como estudos com resultados discrepantes a esse têm como um dos principais problemas incluir não especialistas nos levantamentos e que, quanto mais especializado em climatologia os respondentes são, mais o valor se aproxima da unanimidade.


Como toda unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues - inclusive essa! - é bom que haja ainda céticos, pois é graças ao ceticismo que a ciência se corrige e avança. Na verdade, o problema são os negacionistas que, sem dados e ao arrepio dos fatos, geram apenas desinformação, aparentemente em troca de alguma notoriedade e seus benefícios, com uma pregação sob medida para agradar um ou outro grupo de pessoas.


Outra informação interessante da revisão é que Academias Nacionais de Ciências de 80 países emitiram declarações endossando o consenso, inclusive a dos maiores emissores China e EUA.


Alguns fatos científicos que justificam o AGA são: (1) há uma clara tendência de aumento de temperatura em todo o globo e temos seguidos recordes de temperatura média mundial mesmo com a radiação solar baixando nos últimos anos; (2) o aumento da temperatura na atmosfera não ocorre em todas as alturas, mas sim na camada onde se concentram os gases de efeito estufa (GEE); (3) O principal GEE é CO2 e o carbono do CO2 de origem fóssil tem uma assinatura isotópica típica (relação entre o isótopo C13/C12) que permite diferenciá-lo e estimar quanto dos GEE na atmosfera são decorrentes de queima de combustíveis fósseis e (4) Apesar da temperatura ao longo de centenas de anos variar, a diferença do nosso tempo é a velocidade da mudança.


Mas a Greta não é usada pelos países ricos para frear o crescimento dos mais pobres?


Ela pode ser apoiada e patrocinada por vários grupos de interesse, mas seu discurso não permite esse tipo de conclusão, pois ela pede ações de redução de emissão dos GEE de forma geral e os três maiores emissores absolutos são China, EUA e Europa, onde a riqueza se concentra. A soma das emissões deles, baseado nos dados de 2011 representavam mais do que 45% da emissão global e nada indica que esse dado tenha se alterado significativamente hoje. O Brasil emitiria cerca de 3% dos GEE globais e, portanto, não deveríamos nos considerar alvos preferenciais dela, mas podemos nos unir a ela para cobrar mais dos grandes emissores.


Quando houve o foco na Amazônia pela detecção do aumento de desmatamento e a elevada ocorrência de queimadas, com alerta dado pelos nossos cientistas do INPE, houve grande repercussão internacional. À época ela lamentou a destruição da natureza em um elemento chave para o clima global como a floresta amazônica, o que até poderia ser interpretado como querer impedir o desenvolvimento da região, mas que deixa de ser relevante quando a própria sociedade brasileira, também por motivos ambientais, estabeleceu que apenas 20% das áreas daquela região podem ser desmatadas.


Pelos serviços ambientais, especialmente ao garantir um bom regime de chuvas em grande parte do Brasil e por sua incrível biodiversidade, cujos tesouros já estão sendo pesquisados e transformados em novos produtos no mercado, mas que ainda são apenas um ínfimo começo do que podemos lucrar em bioeconomia, evitar o desmatamento ilegal da floresta amazônica é que é um ato de patriotismo.


Agora, quem realmente deve achar ruim qualquer comentário, seja da Greta, seja de quem for, contra o desmatamento da Amazônia são as pessoas que realmente ganham muito dinheiro com ele: a especulação imobiliária.


Fazer as pazes com a Greta e com a boa ciência


Um aspecto não abordado sobre a jovem ativista é que ela é autista e boa parte do seu ativismo decorre do tipo de autismo que ela tem, pois, um dos seus sintomas é ter obsessão por determinado assunto que, no caso dela, foi o das mudanças climáticas. O autismo faz que ela também tenha um jeito bem próprio de se comunicar, seja pela fala ou pelo olhar. Isso deve ser lembrado, porque, ao estranhar o modo diferente do outro, por vezes acabamos dando uma importância grande demais para forma em detrimento do conteúdo. Se fixarmos nele, vamos ver que há muito mais chance de tê-la como uma boa aliada do Brasil do que a inimiga imaginária que estamos criando nas redes sociais.


Essa amizade pode ser bom para todos, mas especialmente para ela poder conhecer mais sobre o Brasil.


Ela é vegana e, como 70% dos veganos6, pode deixar de ser. Alguns fatos que talvez ajudem ela tomar a decisão é saber que na mesma época em que houve as maiores reduções na taxa de desmatamento na Amazônia, ocorreu o maior aumento do rebanho bovino na região, motivo pelo qual se cunhou o termo “desacoplamento entre desmatamento e produção de carne”. Outros bons motivos para ela voltar a comer carne e escolher a produzida no Brasil, é que nossa produção é feita basicamente com base em pastagens, com os animais em seu ambiente natural e produzindo uma carne mais saudável.


Ela poderá aprender, então, que produção de carne e preservação/conservação ambiental podem ser conciliados. Na verdade, talvez entender que essa é a única saída se quisermos manter o planeta Terra habitado por seres humanos num horizonte de tempo a perder de vista.


Que em 2020, a gente afirme menos, duvide mais e que a reflexão permita com que a gente erre menos, ao tomar decisões mais sensatas, a luz dos fatos e não do que queremos que eles sejam. Que isso ainda venha acompanhado com mais disposição para ouvir e entender quem pensa diferente da gente. Acreditar nisso é crer que temos futuro e que ele deve ser melhor que o presente!


1 Neste link há o vídeo com detalhes. Ele é em inglês, mas é possível configurar as legendas para português.


2 Vale à pena assistir na íntegra o vídeo em que ele deu essa declaração.


3 O artigo pode ser lido neste link.


4 O IPPC é a sigla em inglês para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, órgão da ONU composto por seus estados membros que lida com a questão das mudanças climáticas.


5 Cook et al (Environ. Res. Lett. 8 024024), 2016


6 https://www.psychologytoday.com/us/blog/animals-and-us/201412/84-vegetarians-and-vegans-return-meat-why



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