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O couro bovino brasileiro no cenário global: entre a tradição, a inovação e a sustentabilidade

por Marcelo Roschel
14/10/2025 - 17:00

Panorama nacional: produção e desempenho econômico do couro bovino

Sustentada pelo segundo rebanho bovino comercializável do mundo, a cadeia produtiva no Brasil se destaca como uma das maiores produtoras globais, gerando empregos e divisas para o país. Uma análise aprofundada da estrutura interna deste setor é importante para compreender suas capacidades produtivas, potencial de agregação de valor e os desafios intrínsecos que moldam seu desempenho no cenário internacional.

É preciso conhecer o processo de transformação da pele animal em couro, cuja segmentação em etapas progressivamente agrega valor ao produto. A estrutura produtiva brasileira, contudo, revela uma concentração significativa nas fases iniciais, representando uma oportunidade estratégica de verticalização. As quatro principais etapas do processamento são:

Couro Salgado: Esta é a fase inicial de conservação, onde a pele recém-retirada do animal é tratada com sal para evitar a decomposição até chegar ao curtume. É o produto básico, de menor valor agregado, comercializado como matéria-prima bruta.

Wet Blue: Nesta etapa, o couro passa pelo primeiro processamento químico em um curtume, que remove pelos e gorduras e realiza o curtimento com sais de cromo, conferindo ao material uma coloração azulada e úmida. Embora já tenha passado por uma transformação industrial, ainda é um produto de baixo valor agregado, servindo como insumo para outras indústrias. Historicamente, o wet blue detém uma participação majoritária nas exportações brasileiras em volume, o que representa uma considerável perda de divisas para o país, pois o valor final é capturado pelos países importadores que o transformam em produto acabado.

Crust: Após o estágio de wet blue, o couro passa por processos de recurtimento, tingimento e engraxe, tornando-se um produto semiacabado. O crust possui características mais definidas de cor e textura, mas ainda não recebeu o acabamento que determina sua aplicação.

Acabado: Esta é a etapa de maior agregação de valor. O couro crust recebe um tratamento de superfície que lhe confere as propriedades finais desejadas pelo mercado, como brilho, toque, cor uniforme e resistências específicas. A exportação de couro acabado, embora em menor volume, representa um faturamento significativamente maior e é a estratégia que permite ao país capturar o máximo de valor da sua vasta matéria-prima.

O setor de couro e calçados tem apresentado consistentemente superávits comerciais, reforçando sua importância para a balança comercial brasileira. No entanto, a conjuntura macroeconômica recente impôs desafios significativos. A partir de março de 2020, a pandemia de covid-19 – seguida pelos impactos da guerra na Ucrânia, lockdowns na China e o aumento da taxa de juros no Brasil – levou a uma deterioração e posterior flutuação na produção. Segundo Mendes Júnior (2024), a recuperação foi desigual, e o crescimento positivo da produção na Bahia (5,7%) e no Nordeste como um todo (1,3%), durante um período de declínio nacional (-2,9%) em dezembro de 2023, é uma evidência tangível do sucesso e da resiliência dessa estratégia de diversificação geográfica. 

Historicamente, as regiões Sul e Sudeste concentraram a maior parte da produção, com destaque para o polo do Vale do Sinos, no Rio Grande do Sul. Nas últimas décadas, observa-se uma tendência de deslocamento das plantas industriais, acompanhando a expansão da pecuária em direção ao Centro-Oeste e o crescimento de novos polos no Nordeste, impulsionados pela busca de mão de obra competitiva e pela proximidade de portos estratégicos. Estados como Ceará, Bahia e Paraíba emergiram como importantes centros produtores e exportadores.

Os destaques do segundo trimestre de 2025 estão nas quantidades de couro inteiro de bovino curtido produzidos pelos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que registraram, respectivamente, 1,2 milhões e 1,6 milhões de unidades produzidas, segundo dados do IBGE. Para a primeira semana de outubro deste ano, considerando preços com prazo e livres de impostos e frete, o couro verde esteve cotado em R$0,50/kg no Brasil Central e em R$0,90/kg no Rio Grande do Sul, o que representa estabilidade em relação ao mesmo período de setembro.

A compreensão deste panorama doméstico, com suas forças produtivas e desafios conjunturais, é o ponto de partida para avaliar como essa estrutura se posiciona e compete no dinâmico mercado internacional. Para além da expressiva capacidade produtiva, a competitividade de uma nação no mercado global é definida por sua inserção estratégica nas cadeias de valor, pela diferenciação de seus produtos e pela habilidade de superar concorrentes. Analisar o posicionamento do Brasil nesse contexto é fundamental para identificar tanto as vantagens consolidadas quanto as vulnerabilidades que necessitam de atenção estratégica.

Dados recentes confirmam a posição de destaque do Brasil na indústria coureira mundial, com diferentes níveis de proeminência em cada segmento. Até setembro de 2025, o Brasil foi o terceiro exportador mundial de couro, atrás apenas da Itália e dos Estados Unidos. Considerando os dados da Secex e as categorias de couro salgado, wet blue, semi-terminado e acabado, os principais destinos das exportações brasileiras, sob a ótica da geração de divisas, foram China (US$240,8 milhões), Estados Unidos (US$106,5 milhões) e Itália (US$87,4 milhões). Em setembro de 2025, a cotação média desses couros esteve em R$1,29/kg, uma queda de 17,8% em relação ao mesmo período de 2024.

O Brasil detém vantagens estruturais que formam a base de sua competitividade no setor. A principal delas é a vasta disponibilidade de matéria-prima, garantida pelo segundo rebanho bovino do mundo. Essa autossuficiência é complementada pela capacidade de deter internamente todas as etapas do processo produtivo, desde o abate até a confecção de produtos acabados de couro e calçados. 

Apesar de suas forças, o setor enfrenta desafios na arena internacional. A concorrência mais acirrada vem dos países asiáticos como China, Vietnã e Indonésia. Essa competição é frequentemente baseada em fatores como mão de obra de baixo custo e legislações ambientais e trabalhista mais frágeis, o que pressiona as margens de lucro dos produtores brasileiros. Há também uma preocupação recorrente com práticas comerciais desleais, como a suspeita de “triangulação de embarques” chineses para contornar medidas de defesa comercial. Nesse contexto, a adoção de práticas de sustentabilidade e rastreabilidade emerge como uma oportunidade e como a principal arma estratégica do Brasil para se diferenciar e combater a concorrência.

Análise dos mercados-chave de parceiros como Itália e China

A análise aprofundada das relações comerciais com a Itália e a China é vital, pois esses dois mercados representam os polos opostos da cadeia de valor do couro. A Itália simboliza a excelência em qualidade e o maior valor agregado, enquanto a China representa o volume e a escala de produção. O sucesso estratégico do setor coureiro brasileiro depende diretamente da forma como se relaciona e se posiciona em cada um desses mercados distintos e complementares.

O mercado italiano de couro é globalmente reconhecido pela excelência em qualidade, artesanato, design e inovação. Com uma longa tradição, a Itália se especializou em produtos de luxo, utilizando métodos de curtimento sofisticados, como o vegetal, que conferem ao couro características únicas de textura e durabilidade.

A relação comercial entre Brasil e Itália é complexa e de grande importância. A Itália é, ao mesmo tempo, o principal concorrente do Brasil e o segundo principal destino das exportações de couro brasileiro. O mercado italiano, focado no segmento de alto padrão, privilegia a importação de couro acabado, tornando-se um canal crucial para as exportações brasileiras de maior valor agregado, evidenciando a relevância de longa data desta parceria. Por exemplo, de janeiro a setembro deste ano, as exportações de couro do Brasil para a Itália alcançaram a expressiva marca de US$87,4 milhões.

Diferentemente da Itália, a China demanda predominantemente couros em estágios iniciais de processamento, como o wet blue, utilizados como matéria-prima para sua gigantesca indústria de calçados, móveis e automotores. Embora essa relação comercial garanta volume e escoamento da produção, ela reforça o papel do Brasil como fornecedor de commodities de baixo valor agregado.

As tendências recentes, no entanto, apontam para uma oportunidade de reposicionamento estratégico. O mercado chinês apresenta vetores de crescimento, como o rápido desenvolvimento do setor automotivo e o foco do governo na promoção do consumo de couro. Mais importante, a indústria chinesa, que produz para grandes marcas internacionais de vestuário, está cada vez mais atenta às questões de procedência e sustentabilidade. Isso abre uma janela de oportunidade para o Brasil se posicionar além de apenas um fornecedor de matéria-prima, alcançando o status de parceiro estratégico comprometido com a inovação e, fundamentalmente, com a sustentabilidade. Essa conjuntura posiciona a relação com a China em nítido contraste com a parceria italiana, que serve como canal principal para exportações de couro acabado de alto valor, destacando o desafio estratégico central para a indústria brasileira: mover o volume da primeira categoria para a segunda.

A sustentabilidade como vetor estratégico para a indústria coureira brasileira

A sustentabilidade deixou de ser um mero requisito regulatório para se tornar o principal vetor de diferenciação, competitividade e acesso a mercados para o setor coureiro brasileiro neste século. Em um cenário global, onde consumidores e grandes marcas demandam mais transparência e responsabilidade, responder aos desafios ambientais e éticos da cadeia produtiva é a chave para acessar os segmentos de maior valor e fortalecer a imagem do couro brasileiro no mundo.

O setor enfrenta desafios significativos de sustentabilidade que, se não forem endereçados, representam riscos operacionais e reputacionais. Os principais pontos de atenção são referentes aos impactos do processamento e à associação com o desmatamento.

Quanto aos impactos, o processo de curtimento é intensivo no uso de água e gera resíduos químicos. A preocupação central reside no descarte irregular de efluentes, especialmente aqueles contendo cromo, um agente curtente amplamente utilizado que pode contaminar solos e recursos hídricos, se não for devidamente tratado. 

Em relação ao segundo ponto de atenção, a prática da "triangulação do gado", na qual animais criados em áreas de desmatamento ilegal são movidos para propriedades legalizadas antes do abate para mascarar sua origem, representa um grave risco reputacional para toda a cadeia de valor.

A indústria brasileira tem respondido a esses desafios de forma proativa, transformando-os em oportunidades de diferenciação e liderança no mercado global. A adoção de ferramentas e práticas de sustentabilidade tem se tornado um diferencial competitivo. As principais iniciativas e ferramentas em implementação incluem rastreabilidade, certificações e atendimento a requisitos de proteção ao meio ambiente, sustentabilidade e governança (ESG, na sigla em inglês).

O Brasil demonstrou sua capacidade de vanguarda com o envio do primeiro contêiner de couro 100% rastreado para o mercado europeu, um marco para o setor. O uso de técnicas inovadoras, como o blockchain, permite armazenar de forma segura e imutável todas as informações da cadeia produtiva, garantindo transparência total desde a fazenda de origem até o produto final, reforçando a confiança dos compradores internacionais.

A adesão a padrões reconhecidos globalmente é fundamental. O selo Leather Working Group (LWG) é o padrão global para boas práticas ambientais em curtumes, auditando critérios como uso da água, gestão de resíduos e rastreabilidade. Adicionalmente, o Brasil conta com a certificação Origem Sustentável, a única no mundo voltada para toda a cadeia calçadista com foco em indicadores ESG.

A conformidade com práticas ESG é uma tendência incontornável. Grandes marcas e consumidores conscientes exigem produtos com baixa pegada de carbono, fabricados com insumos livres de substâncias perigosas e que respeitem os direitos sociais em toda a sua cadeia. Empresas que se alinham a esses requisitos ganham preferência e acesso a mercados premium.

De fato, o setor coureiro brasileiro ocupa posição estratégica no cenário global, apoiado em sua vasta matéria-prima, tradição produtiva e capacidade de inovação. No entanto, a indústria também enfrenta desafios relacionados à agregação de valor, competitividade e sustentabilidade. O futuro depende da verticalização da produção, da adoção de práticas sustentáveis e rastreáveis e do posicionamento estratégico em mercados-chave como China e Itália. Dessa forma, o Brasil tem a oportunidade de consolidar seu protagonismo global como fornecedor de matéria-prima, além de se posicionar como referência em qualidade, inovação e sustentabilidade, garantindo competitividade e resiliência a longo prazo.

Bibliografia consultada:

MENDES JUNIOR, B. de O. Couro e Calçados. Caderno Setorial ETENE, Fortaleza, CE: Banco do Nordeste do Brasil (BNB), Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE), ano 9, n. 326, fev. 2024.