A ideia de que “todas as obrigações ambientais possuem natureza propter rem” consolidou-se como um mantra repetido nas discussões jurídicas sobre o meio ambiente - da regularização fundiária de imóveis rurais à imputação de responsabilidade por danos ecológicos.
No entanto, essa generalização, muitas vezes aceita sem exame crítico, encobre distinções jurídicas fundamentais e pode conduzir a interpretações injustas e descoladas do que efetivamente prevê o ordenamento jurídico e, até mesmo, do que é exequível na realidade.
A natureza da obrigação propter rem no Direito Ambiental é um exemplo clássico desse fenômeno: originalmente bem delimitada, tornou-se objeto de aplicação indiscriminada e de forma acrítica - muitas vezes sem que se compreenda, com exatidão, o que a expressão significa ou em que hipóteses ela efetivamente se aplica.
O problema se agrava quando até mesmo os profissionais responsáveis por aplicar ou interpretar o Direito Ambiental - advogados, promotores, autoridades ambientais, juízes, desembargadores, ministros - acabam adotando essa expressão como se ela fosse uma espécie de regra universal no Direito Ambiental.
É importante deixar claro: este texto não trata da responsabilidade civil do causador direto do dano nem pretende esgotar o tema acerca da recuperação do dano ambiental, temas que possuem características próprias e bem definidas – mais considerações sobre essa questão serão feitas ao fim.
Certamente, na prática, a análise deve ser ampla e integrada - afinal, a realidade não se compartimentaliza -, mas o foco aqui é outro: compreender em que casos uma obrigação ambiental se vincula diretamente à propriedade (isto é, possui natureza propter rem) e quando isso não ocorre. Pois, para entender o todo, é preciso, antes, compreender a parte.
O conceito de obrigação no direito civil envolve a ideia de um vínculo entre duas partes: alguém está submetido a um dever, enquanto outra pessoa tem um direito de exigir determinado comportamento. Nesse contexto, toda obrigação ou decorre de um ato humano (como um contrato) ou diretamente da lei.
A expressão latina propter rem significa, literalmente, “por causa da coisa”. Na prática, trata-se de uma obrigação que acompanha a propriedade de um bem - ela não se relaciona com pessoa em si, mas com sua qualidade de proprietária (ou possuidora) do bem.
O conceito é amplamente utilizado no direito civil brasileiro, são obrigações propter rem clássicas: as dívidas condominiais em relação à unidade condominial; a servidão de passagem (quando se obriga o direito de passagem de um imóvel para outro, encravado); as dívidas de ITR e IPTU em relação ao imóvel rural e urbano, respectivamente. Os exemplos são inúmeros.
O ramo do Direito Ambiental, é bastante novo quando comparados aos demais, de forma que é natural que tenha sido construído com base em institutos que não são próprios dele, mas sim “importados” e adaptados.
Ainda antes do Código Florestal de 1934 – as primeiras leis aplicadas no Brasil que tratavam da vegetação remontam ao Século XVII – a proteção às “mattas” não tinha qualquer motivação ambiental propriamente dita. Prevalecia uma visão puramente antropocêntrica, em que o direito tutelado não era o meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas sim os interesses da Coroa portuguesa e - depois da independência - a soberania nacional, a segurança energética e os interesses patrimoniais privados.
Mas já nesse Código se nota algo que se aproxima de uma obrigação ligada à propriedade: o proprietário não podia desmatar mais de três quartos de sua mata e, em isso ocorrendo, estava sujeito a pagar uma indenização que seria revertida no replantio da mesma área, prioritariamente.
Após quatro séculos de evolução da legislação ambiental, hoje, o Código Florestal de 2012 é mais explícito ao determinar que “as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural”.
As mais famosas obrigações previstas no Código Florestal são as de manutenção e recomposição das Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal e elas são, sem dúvida alguma, obrigações propter rem.
Além dessas obrigações, o Código Florestal também traz regras sobre áreas de uso restrito, manejo de apicuns e salgados, proibição de queimadas e controle do desmatamento, mas elas são, em sua maior parte, procedimentais, e não criam, diretamente, obrigações de recomposição por danos ambientais.
O ponto central deste texto é analisar, criticamente, a afirmação de que todas as obrigações ambientais possuem caráter propter rem, incluída aí eventual obrigação de recomposição do dano ambiental.
De forma a ilustrar a questão, parte-se da análise do caso abaixo, hipotético, mas possível e recorrente:
Uma propriedade rural de 100 hectares no Estado de São Paulo, no bioma Mata Atlântica. O imóvel cumpre com sobra suas obrigações legais: 20 hectares de Reserva Legal ocupada por vegetação nativa, dos quais 10 são APP, e ainda preserva outros 50 hectares de vegetação nativa primária.
O restante do imóvel (30 hectares) é utilizado para plantio de cana-de-açúcar e nele, respeitando a legislação estadual, são mantidos aceiros com dimensão e limpeza adequadas, há plano de prevenção de incêndio, plano de ação mútuo com os imóveis vizinhos, monitoramento ativo de incêndios, enfim, são adotadas todas as medidas exigíveis do proprietário.
Suponha-se que em meio a longo período de estiagem, em dia cuja umidade relativa do ar é baixíssima e com alta velocidade de ventos, terceiros de má-fé ateiem fogo na propriedade, em situação que ocasiona a queima de toda a sua área, a despeito das medidas preventivas e de combate ao incêndio.
Esses terceiros são identificados, especialmente em razão do monitoramento ativo realizado pelo proprietário. Eles serão processados criminalmente e também no âmbito administrativo. Mas qual é a repercussão jurídica para o proprietário?
Sem dúvidas, as obrigações de recomposição das Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal são inafastáveis pois, como visto acima, surgem para o proprietário em razão de sua condição como tal.
Já as áreas de plantio de cana-de-açúcar não são protegidas pela legislação ambiental, nenhuma atitude sendo necessária em relação a elas.
A questão que se põe à análise é a eventual obrigação de recomposição da área de 50 hectares de vegetação nativa primária que não é Área de Preservação Permanente ou Reserva Legal.
Em primeiro lugar, é bastante óbvio que o proprietário não pode se aproveitar do dano para ampliar sua plantação, considerando que a vegetação em questão não poderia ser licitamente suprimida em virtude de seu regime jurídico – dado pela Lei da Mata Atlântica.
Nesse caso, é certo que a área seria embargada pelo órgão ambiental competente e, embora os efeitos desse embargo para o proprietário da área sejam discutíveis – o que pode ser objeto de outro artigo –, suponha-se que o proprietário respeite a medida cautelar de embargo, propiciando a regeneração natural da vegetação.
A revegetação da área seria suficiente para afastar qualquer questão posterior – como o ajuizamento de uma ação civil pública.
Por outro lado, qual seria a repercussão se a área apresentasse características que tornassem impossível a regeneração natural?
É evidente que os terceiros que causaram o incêndio podem ser obrigados a recompor a área, situação em que caberia ao proprietário franquear sua entrada ao imóvel para, exclusivamente, executar os atos de recomposição.
A posição majoritária da doutrina e da jurisprudência, entretanto, entende que também o proprietário – apenas por sê-lo – também poderia ser obrigado a efetuar, diretamente, a recomposição da área.
E é nesse ponto que o presente artigo sugere que a solução jurídica mais adequada é outra, a de inexistência de natureza propter rem da obrigação de recompor o citado dano.
A Lei da Mata Atlântica – a única lei federal que disciplina o regime de uso e proteção de um bioma brasileiro – é bastante rigorosa e, de fato, o incêndio causado por terceiros violou seus dispositivos. No entanto, não há, nessa lei - nem em qualquer outra norma legal aplicável ao caso - previsão de que o proprietário, quando não responsável pelo dano, tenha o dever de promover a recuperação ambiental da área degradada.
Como já afirmado, por ora devem ser afastadas questões relativas à responsabilidade civil ambiental, pois sobre ela são necessárias outras considerações que, por si, merecem o devido estudo.
É certo que nesse âmbito, outros fatos devem ser analisados: a eventual omissão do proprietário com o dever de cuidado do bem ambiental; a aplicação da teoria do risco integral a quem exerce atividade econômica potencialmente poluidora (e o seu afastamento para quem não pode ser considerado potencialmente poluidor); a irrelevância da culpabilidade; a necessidade de conduta, dano e nexo causal; entre outros.
A repetição indiscriminada da tese de que toda obrigação ambiental é propter rem leva a distorções sérias.
Essa repercussão se vê, por exemplo, nos textos diminutos do Enunciado 623[1] da Súmula do Superior Tribunal de Justiça e da tese firmada pela mesma Corte no Tema 1204[2].
Esses precedentes qualificados, a despeito de terem suas razões de decidir fundadas no regime jurídico da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente, omitem tal circunstância e agravam os efeitos danosos de entendimento desprovido de fundamento legal.
A análise isolada do caráter propter rem das obrigações ambientais pode parecer desprovida de sentido, afinal, como já se disse, a realidade também traz outras considerações que não foram abordadas aqui.
Ocorre que atribuir caráter propter rem a todas as obrigações ambientais automaticamente afasta a necessidade de se discutir esses outros aspectos: sob tal argumento decisões acabam por olvidar a necessária apuração da responsabilidade civil, também é mal compreendida, que exige a demonstração de outros requisitos para implicar em responsabilidade, como a conduta, o nexo e o dano, ao menos.
Nem toda obrigação ambiental é propter rem. Distinguir o que é - e o que não é - pode fazer toda a diferença, especialmente para quem lida com grandes áreas e grandes riscos.
¹“As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor.”
²“As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente.”