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Uma visão crítica sobre o (alegado) caráter propter rem da obrigação de recomposição do dano ambiental

por Maria Fernanda Dozza Messagi
22/08/2025 - 06:00

A ideia de que “todas as obrigações ambientais possuem natureza propter rem” consolidou-se como um mantra repetido nas discussões jurídicas sobre o meio ambiente - da regularização fundiária de imóveis rurais à imputação de responsabilidade por danos ecológicos.

No entanto, essa generalização, muitas vezes aceita sem exame crítico, encobre distinções jurídicas fundamentais e pode conduzir a interpretações injustas e descoladas do que efetivamente prevê o ordenamento jurídico e, até mesmo, do que é exequível na realidade.

A natureza da obrigação propter rem no Direito Ambiental é um exemplo clássico desse fenômeno: originalmente bem delimitada, tornou-se objeto de aplicação indiscriminada e de forma acrítica - muitas vezes sem que se compreenda, com exatidão, o que a expressão significa ou em que hipóteses ela efetivamente se aplica.

O problema se agrava quando até mesmo os profissionais responsáveis por aplicar ou interpretar o Direito Ambiental - advogados, promotores, autoridades ambientais, juízes, desembargadores, ministros - acabam adotando essa expressão como se ela fosse uma espécie de regra universal no Direito Ambiental.

É importante deixar claro: este texto não trata da responsabilidade civil do causador direto do dano nem pretende esgotar o tema acerca da recuperação do dano ambiental, temas que possuem características próprias e bem definidas – mais considerações sobre essa questão serão feitas ao fim.

Certamente, na prática, a análise deve ser ampla e integrada - afinal, a realidade não se compartimentaliza -, mas o foco aqui é outro: compreender em que casos uma obrigação ambiental se vincula diretamente à propriedade (isto é, possui natureza propter rem) e quando isso não ocorre. Pois, para entender o todo, é preciso, antes, compreender a parte.

A obrigação propter rem

O conceito de obrigação no direito civil envolve a ideia de um vínculo entre duas partes: alguém está submetido a um dever, enquanto outra pessoa tem um direito de exigir determinado comportamento. Nesse contexto, toda obrigação ou decorre de um ato humano (como um contrato) ou diretamente da lei.

A expressão latina propter rem significa, literalmente, “por causa da coisa”. Na prática, trata-se de uma obrigação que acompanha a propriedade de um bem - ela não se relaciona com pessoa em si, mas com sua qualidade de proprietária (ou possuidora) do bem.

O conceito é amplamente utilizado no direito civil brasileiro, são obrigações propter rem clássicas: as dívidas condominiais em relação à unidade condominial; a servidão de passagem (quando se obriga o direito de passagem de um imóvel para outro, encravado); as dívidas de ITR e IPTU em relação ao imóvel rural e urbano, respectivamente. Os exemplos são inúmeros.

A obrigação propter rem no Direito Ambiental

O ramo do Direito Ambiental, é bastante novo quando comparados aos demais, de forma que é natural que tenha sido construído com base em institutos que não são próprios dele, mas sim “importados” e adaptados.

Ainda antes do Código Florestal de 1934 – as primeiras leis aplicadas no Brasil que tratavam da vegetação remontam ao Século XVII – a proteção às “mattas” não tinha qualquer motivação ambiental propriamente dita. Prevalecia uma visão puramente antropocêntrica, em que o direito tutelado não era o meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas sim os interesses da Coroa portuguesa e - depois da independência - a soberania nacional, a segurança energética e os interesses patrimoniais privados.

Mas já nesse Código se nota algo que se aproxima de uma obrigação ligada à propriedade: o proprietário não podia desmatar mais de três quartos de sua mata e, em isso ocorrendo, estava sujeito a pagar uma indenização que seria revertida no replantio da mesma área, prioritariamente.

Após quatro séculos de evolução da legislação ambiental, hoje, o Código Florestal de 2012 é mais explícito ao determinar que “as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural”.

As Obrigações Previstas no Código Florestal

As mais famosas obrigações previstas no Código Florestal são as de manutenção e recomposição das Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal e elas são, sem dúvida alguma, obrigações propter rem.

Além dessas obrigações, o Código Florestal também traz regras sobre áreas de uso restrito, manejo de apicuns e salgados, proibição de queimadas e controle do desmatamento, mas elas são, em sua maior parte, procedimentais, e não criam, diretamente, obrigações de recomposição por danos ambientais.

Especificamente a Obrigação de Recomposição do Dano Ambiental

O ponto central deste texto é analisar, criticamente, a afirmação de que todas as obrigações ambientais possuem caráter propter rem, incluída aí eventual obrigação de recomposição do dano ambiental.

De forma a ilustrar a questão, parte-se da análise do caso abaixo, hipotético, mas possível e recorrente:

Uma propriedade rural de 100 hectares no Estado de São Paulo, no bioma Mata Atlântica. O imóvel cumpre com sobra suas obrigações legais: 20 hectares de Reserva Legal ocupada por vegetação nativa, dos quais 10 são APP, e ainda preserva outros 50 hectares de vegetação nativa primária.

O restante do imóvel (30 hectares) é utilizado para plantio de cana-de-açúcar e nele, respeitando a legislação estadual, são mantidos aceiros com dimensão e limpeza adequadas, há plano de prevenção de incêndio, plano de ação mútuo com os imóveis vizinhos, monitoramento ativo de incêndios, enfim, são adotadas todas as medidas exigíveis do proprietário.

Suponha-se que em meio a longo período de estiagem, em dia cuja umidade relativa do ar é baixíssima e com alta velocidade de ventos, terceiros de má-fé ateiem fogo na propriedade, em situação que ocasiona a queima de toda a sua área, a despeito das medidas preventivas e de combate ao incêndio.

Esses terceiros são identificados, especialmente em razão do monitoramento ativo realizado pelo proprietário. Eles serão processados criminalmente e também no âmbito administrativo. Mas qual é a repercussão jurídica para o proprietário?

Sem dúvidas, as obrigações de recomposição das Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal são inafastáveis pois, como visto acima, surgem para o proprietário em razão de sua condição como tal.

Já as áreas de plantio de cana-de-açúcar não são protegidas pela legislação ambiental, nenhuma atitude sendo necessária em relação a elas.

A questão que se põe à análise é a eventual obrigação de recomposição da área de 50 hectares de vegetação nativa primária que não é Área de Preservação Permanente ou Reserva Legal.

As Repercussões Para o Proprietário

Em primeiro lugar, é bastante óbvio que o proprietário não pode se aproveitar do dano para ampliar sua plantação, considerando que a vegetação em questão não poderia ser licitamente suprimida em virtude de seu regime jurídico – dado pela Lei da Mata Atlântica.

Nesse caso, é certo que a área seria embargada pelo órgão ambiental competente e, embora os efeitos desse embargo para o proprietário da área sejam discutíveis – o que pode ser objeto de outro artigo –, suponha-se que o proprietário respeite a medida cautelar de embargo, propiciando a regeneração natural da vegetação.

A revegetação da área seria suficiente para afastar qualquer questão posterior – como o ajuizamento de uma ação civil pública.

Por outro lado, qual seria a repercussão se a área apresentasse características que tornassem impossível a regeneração natural?

É evidente que os terceiros que causaram o incêndio podem ser obrigados a recompor a área, situação em que caberia ao proprietário franquear sua entrada ao imóvel para, exclusivamente, executar os atos de recomposição.

A posição majoritária da doutrina e da jurisprudência, entretanto, entende que também o proprietário – apenas por sê-lo – também poderia ser obrigado a efetuar, diretamente, a recomposição da área.

E é nesse ponto que o presente artigo sugere que a solução jurídica mais adequada é outra, a de inexistência de natureza propter rem da obrigação de recompor o citado dano.

A Lei da Mata Atlântica – a única lei federal que disciplina o regime de uso e proteção de um bioma brasileiro – é bastante rigorosa e, de fato, o incêndio causado por terceiros violou seus dispositivos. No entanto, não há, nessa lei - nem em qualquer outra norma legal aplicável ao caso - previsão de que o proprietário, quando não responsável pelo dano, tenha o dever de promover a recuperação ambiental da área degradada.

A Necessária Distinção:  Responsabilidade Civil

Como já afirmado, por ora devem ser afastadas questões relativas à responsabilidade civil ambiental, pois sobre ela são necessárias outras considerações que, por si, merecem o devido estudo.

É certo que nesse âmbito, outros fatos devem ser analisados: a eventual omissão do proprietário com o dever de cuidado do bem ambiental; a aplicação da teoria do risco integral a quem exerce atividade econômica potencialmente poluidora (e o seu afastamento para quem não pode ser considerado potencialmente poluidor); a irrelevância da culpabilidade; a necessidade de conduta, dano e nexo causal; entre outros.

Conclusão

A repetição indiscriminada da tese de que toda obrigação ambiental é propter rem leva a distorções sérias.

Essa repercussão se vê, por exemplo, nos textos diminutos do Enunciado 623[1] da Súmula do Superior Tribunal de Justiça e da tese firmada pela mesma Corte no Tema 1204[2].

Esses precedentes qualificados, a despeito de terem suas razões de decidir fundadas no regime jurídico da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente, omitem tal circunstância e agravam os efeitos danosos de entendimento desprovido de fundamento legal.

A análise isolada do caráter propter rem das obrigações ambientais pode parecer desprovida de sentido, afinal, como já se disse, a realidade também traz outras considerações que não foram abordadas aqui.

Ocorre que atribuir caráter propter rem a todas as obrigações ambientais automaticamente afasta a necessidade de se discutir esses outros aspectos: sob tal argumento decisões acabam por olvidar a necessária apuração da responsabilidade civil, também é mal compreendida, que exige a demonstração de outros requisitos para implicar em responsabilidade, como a conduta, o nexo e o dano, ao menos.

Nem toda obrigação ambiental é propter rem. Distinguir o que é - e o que não é - pode fazer toda a diferença, especialmente para quem lida com grandes áreas e grandes riscos.


¹“As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor.”

²“As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente.”