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Carta Conjuntura - Manual de sobrevivência para as festas de final de ano para pecuaristas e coligados

por Sergio Raposo de Medeiros
Terça-feira, 20 de dezembro de 2016 -16h00


As celebrações familiares deste esquizofrênico ano de 2016 estão logo ali depois da esquina e, com elas, junto com os exageros gastronômicos, com a farra etílica e a alegria do reencontro de pessoas queridas, vêm as perguntas indesejáveis, as ideias pré-concebidas e as certezas absolutas formadas pela numerosa categoria de “especialistas” grau “www” sobre tudo, inclusive pecuária. Como a pecuária tem muitos detratores bons na guerra da (des)informação, o bombardeio é constante. Enfim, é algo que faz parte do pacote de fim de ano.


Neste texto, brevemente, vamos falar sobre alguns assuntos polêmicos que envolvem nosso setor de maneira a subsidiar todos aqueles que nele militam e, assim, ajudar a ter uma interação mais produtiva com “urbanoides” que conhecem o campo só pela televisão nas manhãs de domingo. Para tal, criamos alguns personagens imaginários do tipo que, provavelmente, o leitor terá que, entre uma garfada no tender e um gole no “prosseco”, enfrentar em breve:


1) A tia que só fala em regime: Essa tia, irmã da sogra (claro!), naturalmente é bem gorda e provavelmente tem um daqueles nomes hoje em extinção. A Tia Ofélia, então, vai interpelá-lo com algo como “Nossa, porque você trabalha com boi? Carne engorda e dá câncer!”. Nesse momento, é muito importante que você mantenha a calma e, especialmente, não caia na tentação de responder: “Tia...o boi, ao contrário da senhora, tem partes com bem pouca gordura!”. Muito pelo contrário, com amor, deve-se  esclarecer à Tia Ofélia que, o que engorda é comer mais energia do que gastamos, exatamente como ocorre nas festas de final de ano. Em seguida, podem-se dar boas notícia a ela. Primeiro, que a carne é um excelente alimento para ser usado em regimes, pois, comprovadamente ajuda a pessoa a suportar a restrição alimentar e, portanto, não desistir da dieta. Em segundo lugar, quanto à questão da ligação de carne e câncer, que ela é muito fraca. É provável que, neste momento alguém lembre que há pouco mais de um ano, o IARC (Agência International de Pesquisa sobre o Câncer) fez o alerta que “o consumo de 50 g de carne processada por dia aumenta a chance de câncer colo-retal em 18%”, o que, na imprensa, virou a manchete “Carne é cancerígena”. A primeira questão a ser esclarecida é que essa pessoa não tem 18% de chance de ter câncer, mas que ela tem 1,18 vezes mais chance de quem não come. É o chamado “risco relativo”. Em comparação, o risco relativo de quem fuma ter câncer de pulmão é 20 vezes maior do que um não fumante, ou seja, 1900% maior. Nessa decisão, o IARC colocou carne e cigarro na mesma categoria. Tive a oportunidade, na reunião desse ano da Sociedade Americana de Ciência Animal, em Salt Lake City, de assistir a duas palestras em sequência com especialistas que votaram para decidir se o IARC iria ou não colocar a carne na lista de cancerígenos. O primeiro, que trabalha para o governo americano, Dr. David Klurfeld, mostrou que a grande maior parte dos dados não suportava haver ligação entre carne vermelha e câncer. Além disso ele explicou que, quando o valor calculado do risco relativo é menor do que 1,2, de praxe, ele é desconsiderado. Essa margem de segurança existe, pois a maior parte dos dados tem base em estudos das populações (estudos epidemiológicos) ou estudo de intervenção na dieta, que são muito suscetíveis a terem confundimentos e a falta de compromisso dos participantes, respectivamente. Por exemplo, ele comentou que o caso da ligação entre consumo de café e aumento de risco de doença cardiovascular, apenas recentemente foi identificada como furada, depois que a reavaliação dos dados considerando o efeito do cigarro demonstrou ser esse o verdadeiro vilão. A palestra dele foi muito convincente e justificou bem porque ele votou contra a nova classificação do IARC. A palestra seguinte foi do pesquisador belga Dr. Stefaan Smet, mostrando a mesma fraca ligação e explicando que o IARC tem sua competência bem estabelecida com compostos químicos, mas que nunca tinha trabalhado com alimentos, sendo a carne sua investida pioneira. Além disso, que o grupo reunido fez apenas uma análise de risco e não uma avaliação científica aprofundada da questão. Que a carne vermelha propriamente não tinha dados suficientes para ser colocada como cancerígena, mas que a processada, sim, ainda que fracamente e com baixo risco. De maneira meio envergonhada, justificou seu voto em função de um trabalho cujas conclusões sobre determinados processos explicariam o risco (ou seja, indiretamente!). Algo importante a se notar nesse caso é como procedimento foi diferente com a carne, havendo maior rigor ao fazer o 1,18 ser tratado como se fosse maior do que dois. Enfim, fosse outro alimento, muito provavelmente não teria sido colocado na berlinda.  O resumo é que todo mundo pode aproveitar bem seu bife,  caprichando no seu acompanhamento e no estilo de vida que se leva. Esses fatores farão muito mais diferença para a saúde do que comer carne de soja o resto da sua vida.


2) O sobrinho aluno de Geografia na Federal: Eis que neto da Tia Ofélia, o Júnior, ouviu suas explicações e aproveita para fazer algo que sempre quis: constranger um dos cúmplices, na visão dele, da devastação da Amazônia. Ele, então, dispara: “... mas todo mundo sabe que a floresta amazônica é derrubada para dar lugar aos pastos!”. Respire fundo, considere que essa relação é histórica e está cristalizada na mente das pessoas, mas informe para ele que os três estados da nossa federação que mais tiveram aumento de rebanho bovino ente 2006 e 2015 foram Pará, Mato Grosso e Rondônia, respectivamente com 6,4%, 9,2% e 11,40%. Desses, apenas Mato Grosso não  tem todo seu território naquele bioma, mas é onde fica quase toda “nova” fronteira agropecuária dele. Apesar desses aumentos, entre 2004 e 2012 houve uma redução de 2,35 mil km2 de desmatamento por ano, passando de mais de 25 mil km2/ano para cerca de cinco mil km2/ano. Nos últimos anos, oscilou na faixa entre 5-6 mil km2. Por conta disso, hoje, os estudiosos falam, então, do fenômeno do “desacoplamento” entre pecuária e desmatamento. Caso ele queira saber como isso foi possível, você pode explicar que, por um lado a pecuária tem melhorado muito sua produtividade e, por outro, houve bastante esforço governamental e da sociedade civil organizada na repressão ao desmatamento ilegal. A adoção da estratégias de compra de animais produzidos exclusivamente em fazendas estritamente dentro da lei, por exemplo, teve grande impacto nesses resultados. Já na questão de produtividade, vale à pena informar que, entre 1975 e 2006, a produção de carne aumentou quatro vezes, praticamente na mesma área (na verdade, um pouco menor: 96% da área de 1975!). A tendência segue na redução da área de pastagens e melhora na eficiência da produção. Por fim, vale à pena fazer para o Júnior mais dois comentários: 1) admitir que, apesar do “desacoplamento”, o desmatamento ilegal, em que a pessoa põe abaixo a área de mata e cria boi em seguida, continuará ocorrendo, mas que o boi é apenas parte do processo cujo maior objetivo é imobiliário, isto é, vender a área e 2) que isso é um caso de polícia e por ela, e com os rigores da lei, deve ser tratado.


3) O cunhado, advogado, que se considera mais sabido que o Google: Você sempre achou que sua irmã merecia algo melhor, mas, como diz o poeta, o coração tem razões que a própria razão desconhece! Chamado pelo sobrenome, o Cunha é um leitor voraz de conteúdo da Internet. Por azar seu, ele chegou ao final das suas explicações para o Júnior sobre desmatamento e, no ringue imaginário que ele tem na cabeça, resolveu tentar colocá-lo contra as cordas levantando a questão atualíssima do aquecimento global (AG). Ele, caprichando no tom, diz: “...pois é, mas outro dia li que especialistas culpam o churrasco de domingo  como o vilão do AG!”. Evite o caminho de minimizar o assunto, pois, no final é uma crise que, na verdade, é uma grande oportunidade. A bovinocultura, como qualquer outra atividade humana, polui e tem sua parcela de envolvimento nesta questão, nisso o Cunha está certo. Outro fato é que cada vez mais dados mostram que o AG é real e, pior, seus efeitos têm chegado antes e mais fortes do que o previsto. Especificamente a fala do cunhado é literalmente a manchete da Internet para um relatório que coloca a agropecuária como a grande vilã, mas especialmente porque põe na conta dela a emissão por mudança de uso da terra (MUT), algo que, como explicado para o Júnior é injusto, uma vez que todas as cidades um dia foram floresta e elas nunca pagaram essa conta da sua própria questão fundiária, ou, por outro lado, se não houvesse boi e agricultura, haveria desmatamento do mesmo jeito.  Diretamente ligado à atividade mesmo, o valor ficaria próximo á 20% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa (GEE). O fato é que não tem nada mais globalizado nesse Mundo do que os efeitos climáticos. Um bom exemplo para mostrar como estamos interconectados pelo clima: foi identificado, recentemente, que a poeira vinda do deserto do Saara, na África, influencia na pluviosidade da Amazônia, pois partículas vindas de lá ajudam a chover aqui! Portanto, o valor global de 13% das emissões de GEE vindos da pecuária é onde devemos focar (e tentar reduzir). Para reduzir a emissão de GEE, por sorte, o melhor caminho é a intensificação dos sistemas. Quanto mais investimos em técnicas modernas de produção pecuária, menor a emissão por quilograma de carne produzida. Aliás, essa unidade é a melhor métrica para enfrentar esse desafio. Por uma feliz coincidência, no caso brasileiro, o aumento de intensificação da produção aumenta a rentabilidade do produtor, ou seja, é uma relação ganha-ganha. Mas se o Cunha pensou que as vantagens brasileiras tinham acabado por aqui, vai mais um direto de esquerda: Como nossa carne é produzida principalmente em pastagem, temos como bônus na intensificação um aumento de suas raízes, ou seja, aumentamos o carbono fixado no solo. A relação, na verdade então, passa a ser ganha-ganha-ganha.  Inclusive, um dos trabalhos mais interessantes publicados ano passado por pesquisadores escoceses e brasileiros (e que foi capa da prestigiosa Nature Climate Change) mostrou que desestimular o pecuarista faria inverter a direção, com o solo passando de dreno de C para emissor, aumentando a emissão de GEE. Mais informações sobre isso no link de um texto escrito por mim nesse mesmo espaço em Janeiro no rodapé . O interessante é que importantes organizações não governamentais (ONGs) entenderam isso e tem programas para ajudar o pecuarista a intensificar sua produção. Para finalizar, lembre ao Cunha que ele pode ajudar a combater o AG na cidade mesmo com atitudes simples: 1) Andar mais a pé ou usar mais transporte público ou solidário; 2) Trocar transporte motorizado por bicicleta; 3) Economizar energia; 4) Encher o tanque com álcool em vez de gasolina; 5) Reciclar seu lixo; 6) Evitar o desperdício (jogar menos comida fora, consertar o bem em vez de jogar fora, etc.).


4) A sobrinha com desejos de se tornar vegana: A Clarinha sempre foi um amor de menina, muito meiga e sonhadora. Nada mais revelador da sua sensibilidade do que sua “luta” para que os adultos levassem a sério que seus bichos de pelúcia tinham alma. Eis que agora, no reencontro com essa jovem adulta que acabou de tirar a habilitação, ela olha para você com reprovação e diz: “...Tio, como você pode trabalhar matando animais para viver?”. Na sequência ela revela estar seriamente considerando virar vegana. Para quem não sabe vegano é um vegetariano radical. O vegano não come nenhum alimento que tenha qualquer ingrediente de origem animal. Uma bala de mel, por exemplo, para a maioria das correntes veganas não deve ser comida! Primeira dica: Fuja da reação padrão que é a de recriminar a escolha de que a pessoa vai comer. Colocar a liberdade de escolha acima das nossas ideologias em situações como hábitos alimentares é um excelente exercício de sociabilidade e, acredite, aumenta bem a chance que seus argumentos sejam considerados. Outro encaminhamento dado a esta questão é afirmar que a dieta vegana (ou vegetariana) vai deixá-la subnutrida. Apesar de haver grandes chances de isso ser verdade, é possível ter uma dieta balanceada sem produtos de origem animal. É apenas muito mais difícil. Prova disso é que muitas mulheres vegetarianas antes da menopausa, quando assistidas por nutricionistas, tomam pílulas de ferro para complementar esse mineral. Além de ferro, a carne vermelha é responsável por grande parte do atendimento de vitaminas do complexo B, zinco, cobre e, claro, proteína de alta qualidade, com todas as unidades formadoras das proteínas (aminoácidos) que precisamos. No caso do vegano, além da dificuldade em balancear a dieta, há o desafio de saber se a comida tem ou não produtos de origem animal. Aí é fácil diferenciar o vegano novato: Ele pergunta a quem fez quais os ingredientes foram usados, examina a lista de componentes nas embalagens mesmo com as mais miúdas das letras e recusa a bala de mel. O vegano , digamos, “sênior” já se deixa enganar, presume que determinada marca não têm ingredientes de origem animal (para não ter que ler o rótulo e descobrir que tem) e aceita a bala de mel. Obviamente que essas limitações não ajudam muito na vida social, o que também é uma realidade para vegetarianos, ainda que num grau bem mais baixo. Até agora, contudo, apenas defendemos o direito da pessoa comer o que bem entender e que dietas baseadas em plantas são bem mais complicadas de operacionalizar. Há mais o que argumentar em prol de fazer uma jovem ter uma vida mais fácil, prazerosa e saudável? Um ponto importante neste caso é que a escolha vegetariana proporciona uma sensação de superioridade moral por sacrificar seu desejo em comer carne em prol de não matar um animal. Essa decisão emocional faz a pessoa ser resistente a argumentos mais racionais. Nem sempre é fácil para ela perceber que esta questão moral é bem relativizada quanto você coloca o ser humano em seu devido lugar: apenas mais um ser vivo na teia da vida. Seres vivos, de todos os reinos, são alimentos uns dos outros, não sendo razoável julgar o pássaro que pesca o peixe, o gato que come o rato e o jacaré que come a capivara, etc.. Por que seria, então, justo julgar o Homo sapiens que come boizinho que criou? Também é bom lembrar que vegetarianos e veganos não se alimentam de pedra, mas de seres vivos que morrem para que eles possam viver. Dirão “...mas alfaces não sentem!” para o quê pergunto: “Será?”.  É importante lembrar também que os animais de criação só existem por ter o fim de ser tornarem alimento, matéria prima para uma infinidade de produtos e força de trabalho. Dizemos isso de forma alguma para dar-lhes menos importância, mas para frisar que eles não existiriam se não fosse por isso. Por fim, um ponto que faz com que muitas Clarinhas por aí se sintam tentadas a deixarem de comer produtos de origem animal é porque eles acreditam que o animal seja mal tratado durante sua vida na fazenda. Isso ocorre em boa parte pela propaganda negativa feita por ativistas anti-indústria animal, que mostram as piores cenas dos piores produtores, levando a crença que elas representam a realidade. É necessário explicar que o maior interessado em prover o animal com bem estar é o próprio produtor que sabe ser esse, também, um fator de aumento de produção.


Para finalizar, alguns pontos positivos que até quem é da área, as vezes, não tem a exata dimensão e que podem ajudar no contexto dos debates das festas de fim de ano. Você sabia:


- Que menos de 10% dos animais abatidos no Brasil vem de confinamentos e que estes duram apenas entre 70-100 dias, ou seja, o gado brasileiro passa, em média, 99% da sua vida em seu  ambiente natural?


- Que além da quase totalidade da carne produzida no Brasil vir das pastagens, há baixíssimo uso de insumos, sendo um alimento muito perto do conceito de orgânico sem precisar de um protocolo especial para isso ou certificação?


- Que, segundo um trabalho britânico, uma tonelada de carne produzida no Reino Unido usa 2,5 vezes mais pesticidas, gasta cinco vezes mais energia e tem seis vezes mais potencial de acidificação do que a mesma tonelada de carne produzida no Brasil?


- Que a carne brasileira é uma das mais “limpas” do mundo conforme atestado pelo fato de exportarmos para centenas de países e praticamente não haver alertas para ocorrência de resíduos, mesmo com vários deles possuindo elevado grau de controle? Que além desse aval, temos o “Plano Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes” do Ministério de Agricultura, cujos resultados são públicos e comprovam que a nossa carne bovina é um alimento seguro?


- Que o Brasil é o único grande exportador de carne que não utiliza hormônios na produção de carne?


- Que a maior parte da produção se concentra em áreas que não representam ameaça a Amazônia e que somos o país com um dos maiores remanescentes florestais do mundo?


É isso! Esperando que possa ser útil, aproveito para desejar feliz Natal e ótimo 2017 para  as Tias Ofélias, para os Júniores, para os Cunhas e para a Clarinhas espalhadas pelo Brasil, mas, principalmente, para todos aqueles que com seu incansável trabalho ajudam a alimentar o Brasil e o Mundo!