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Âncora Verde

por Xico Graziano
Quinta-feira, 10 de julho de 2014 -14h58

Toda a Nação, orgulhosamente, comemorou na semana passada os 20 anos do Real. Na história da moeda que serviu à estabilização da economia brasileira, um capítulo especial, a ser reconhecido, cabe à agropecuária. Sua capacidade de produção ajudou, decididamente, a segurar o preço dos alimentos. Âncora verde.


Excluindo quem vivia do mercado financeiro, tudo era muito difícil naquela época de inflação galopante. É verdade que, no campo, o agricultor ganhava com a valorização de seu principal patrimônio, a terra. Mas sua renda, que importa no bolso, regra geral se comprometia pelo controle existente seja no preço mínimo dos produtos agrícolas, seja nos preços do varejo. Todo governo teme a carestia e sonha com o alimento barato na mesa do povo. Sempre se esquecem, porém, da justa remuneração aos produtores rurais.


Existem características próprias do ciclo de produção no campo. Primeiro, a natural demora do crescimento vegetal, desde o plantio até a colheita ou, na pecuária, até completar o ciclo animal. Segundo, a sazonalidade da safra, em função da estação do ano, da época de chuvas e do calor. A indústria e o comércio enfrentam a inflação reajustando os preços rapidamente; no agro, tal procedimento é impossível. Aqui mora o perigo constante do descasamento entre custos e receitas rurais. A margem de lucro quase sempre fica com o intermediário.


A superinflação iludia. Os produtores rurais tomavam créditos que os endividavam sem perceber: juros sobre juros, correção monetária, mata-mata de empréstimos, cheque especial se misturando com capital de giro, perdia-se a verdadeira conta dentro daquela ciranda financeira. Na década de 1990, os sucessivos, e desastrados, planos econômicos do governo Collor complicaram a situação. Os bancos, espertamente, se aproveitaram das crises para imputar débitos irregulares na conta dos agricultores. O produtor financiava um trator, pagava várias prestações, mas quando ia apurar sua dívida, o extrato bancário indicava que ele, ainda, devia o valor correspondente a três tratores. Parece gozado, mas era uma tristeza.


Quando, finalmente, chegou a estabilização da moeda em 1994, a grande maioria dos agricultores nem sabia, ao certo, o tamanho de seu problema. Seu endividamento, porém, sem a fumaça da inflação, se tornou gigantesco. Para piorar, no início do Plano Real os contratos de financiamento foram corrigidos em cerca de 40,0%, sem nenhuma correspondência com os preços agrícolas. Nesse contexto, com a rentabilidade ameaçada e os bancos lhes apertando o calo, estourou a primeira grande manifestação pública dos ruralistas em Brasília, apelidada de "tratoraço". O recálculo das dívidas bancárias era sua principal bandeira.


Na confusão, em meados de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou o atendimento de algumas reivindicações dos ruralistas, reconhecendo que a agricultura havia cumprido papel decisivo no êxito do Plano Real. "Só não posso aceitar o calote", afirmou FHC. A frase tinha endereço certo: as sanguessugas do poder público, aqueles malandros que, em qualquer setor, se enriquecem com o dinheiro do Tesouro e depois inventam uma causa altruísta para exigir o "perdão" das dívidas. Nada a ver com a esmagadora maioria dos agricultores que protestavam. Porém, como soe acontecer, o discurso acabou distorcido, como se o presidente tivesse chamado, a todos, de caloteiros. E a opinião publica passou a condenar os ruralistas, acusando-os de querer mamata.


O professor Fernando Homem de Melo (USP), um dos maiores economistas agrícolas do país, acompanhava de perto os acontecimentos. Seus cálculos mostravam que entre 1984 e 1985 havia ocorrido uma "impressionante redução" de 25,8% na receita do setor agrícola vegetal, atestando que a choradeira ruralista partia de bases concretas. Verificara-se, de fato, uma deterioração na renda agregada da agropecuária, um forte tranco causado pela conjunção de vários fatores, incluindo a política cambial e a redução de tarifas na importação de certos produtos, como trigo e algodão. Vértebras quebradas.


O governo, impulsionado pelo Congresso Nacional, acertou nas medidas corretivas, principalmente ao promover a securitização (alongamento) de boa parte das dívidas, incluindo aquelas assumidas pelas cooperativas agropecuárias. Aos poucos as coisas foram se acomodando no campo, como de resto em toda a economia brasileira. Eliminado o monstro inflacionário, o esforço produtivo começou a render mais que a aplicação financeira. A moeda estável dera um golpe de morte no patrimonialismo. Doravante valeria o trabalho, o empreendedorismo, a tecnologia. O real mudou o Brasil.


Com o programa Moderfrota, operado através do BNDES a partir de 2000, os produtores rurais conheceram a maravilha da prestação fixa no financiamento de máquinas e implementos agrícolas. Ninguém, jamais, havia visto aquilo acontecer: você comprava uma colheitadeira, e pagava as prestações sempre com o mesmo valor. Agora banal, na época parecia um sonho.


Feita a transição, com muito sacrifício, a safra nacional de grãos bateu, em 1999, um recorde de 82,4 milhões de toneladas. Quatro anos depois, estabilizada a economia e arrumada a casa, a colheita da safra plantada no último ano do governo FHC atingiu 123,2 milhões de toneladas, vertiginoso crescimento de 49,5% em apenas quatro anos. A luz do futuro se acendera.


Hoje a agropecuária brasileira se superou: abastece o mercado interno e exporta para o mundo. A âncora verde continua ativa: o superávit na balança comercial agrícola, de U$83,0 bilhões, paga a conta das importações nacionais. Sem o campo, não se moveria a cidade.