Scot Consultoria
www.scotconsultoria.com.br

Os limites da vaca

por Otaliz
Quinta-feira, 25 de setembro de 2008 -19h01
Os concursos leiteiros estão merecendo um destaque especial nas exposições agropecuárias em alguns Estados do Brasil. Há registros de desempenhos fantásticos – vacas produzindo até mais de 70 kg de leite/dia, para orgulho dos criadores. Além de afagar o ego de alguns ou a vaidade de outros e catapultar o preço de venda dos animais premiados, quais seriam as vantagens objetivas desses concursos? Quando criança de 3 ou 4 anos, diante de fatos, constatações ou notícias para ela de difícil interpretação, uma de minhas filhas costumava indagar curiosa – mas...isto é bom ou é ruim? Pois a mesma pergunta me assalta quando me deparo com relatos de produções leiteiras individuais extremamente elevadas.

SIMULAÇÃO

Na busca de argumentação e respostas, simulei uma situação. Vaca holandesa, 550 kg de peso vivo, segunda lactação, condição corporal 2, produção diária de 70 kg de leite no pico da lactação. De acordo com o NRC 1989, os requerimentos nutritivos diários desse animal seriam os seguintes – ingestão de matéria seca (IMS): 29,3 kg; 59,6 Mcal de energia (ENL) ou seja, uma concentração de 2,03 Mcal/kg de MS na dieta; 6,65 kg de proteína bruta ou 22,6% na dieta; 252 g de Ca e
158 g de P.

Não é à toa que problemas como febre vitular, cetose, acidose ruminal, torções de abomaso, anorexia, ausência de cios, acentuados desequilíbrios na relação serviços/prenhez, metrites, mastites, etc... estão, com freqüência cada vez maior, presentes na rotina das propriedades leiteiras.

É obvio que, em termos práticos não há como elaborar uma dieta capaz de atender requerimentos tão elevados. O animal passa então a mobilizar à exaustão suas próprias reservas corporais de energia, proteína e minerais para atender a essas demandas exageradas. Daí para a manifestação clínica ou sub-clínica de desordens metabólicas é meio passo.

Não é à toa que problemas como febre vitular, cetose, acidose ruminal, torções de abomaso, anorexia, ausência de cios, acentuados desequilíbrios na relação serviços/prenhez, metrites, mastites, etc... estão, com freqüência cada vez maior, presentes na rotina das propriedades leiteiras.

Nesses animais, a linha que separa a saúde da doença é tênue, quase imperceptível. É interessante observar que muitos desses concursos leiteiros limitam-se apenas a avaliar o item produção diária como elemento de competição. Outros critérios não menos importantes como período parto/concepção, intervalo entre partos, histórico reprodutivo e sanitário, persistência e produção total da lactação, qualidade do leite (sólidos totais e CCS) e custos de produção são sonegados ou ignorados.

Por oportuno, quero esclarecer que de nenhuma forma me posiciono contra os avanços da ciência genética nem das práticas de seleção e melhoramento. No entanto, considerando que o processo produtivo da pecuária leiteira é resultante da interação dinâmica dos segmentos alimentação, reprodução, qualidade genética e sanidade, devidamente gerenciados pelo homem, o desenvolvimento exacerbado de um segmento isolado certamente provocará desequilíbrios no processo, com prejuízos ao objetivo final.

E, é inegável, que ultimamente os avanços na área da genética vêm sendo obtidos numa velocidade muito superior aos das áreas de nutrição, reprodução e sanidade. Quando concursos ou competições privilegiam de forma unilateral um segmento isolado do processo produtivo, estão colaborando para intensificação desse indesejável desequilíbrio.

Sabe-se, por exemplo, que existe um certo grau de antagonismo entre produção leiteira e o desempenho reprodutivo. Considerando que a lactação é uma conseqüência do parto, é indispensável que se busque um ponto de equilíbrio entre as performances produtiva e reprodutiva, sem prejuízos à saúde e à longevidade dos animais.

Parece-me que é sob esta ótica que devemos definir qual é o perfil de animal que desejamos para o rebanho leiteiro nacional – vacas saudáveis, com bons desempenhos produtivo e reprodutivo (representados por lactações anuais durante 5 ou 6 anos consecutivos), produzindo leite com boa qualidade e baixos custos ou, as “vacas-estrelas” com excelentes desempenhos nos concursos leiteiros, com freqüência sob o efeito de aditivos ou hormônios, mas com elevado grau de predisposição a problemas nas áreas da saúde e reprodução que implicam em acentuados incrementos nos custos de produção.

Para não ficar apenas na posição de crítico, atrevo-me a registrar algumas sugestões aos organizadores de concursos leiteiros:

- Deverão participar apenas vacas sob controle leiteiro oficial.
- O item produção deverá ser avaliado por desempenhos em lactações de 305 dias (passadas ou projetadas de acordo com os recursos estatísticos validados pela pesquisa).
- O histórico do desempenho reprodutivo terá peso importante na pontuação final.
- Deverão ser avaliados itens relativos à qualidade do leite (teor de sólidos totais, bem como a contagem de células somáticas).

Para concluir, é necessário que se consolide entre os produtores leiteiros o princípio de que sob o ponto de vista administrativo e econômico, a avaliação das médias de rebanho são muito mais importantes do que o desempenho eventual desta ou daquela vaca de forma individual.

Obs: Este artigo foi publicado nesta coluna na edição de outubro de 2001. Decidi resgatá-lo quando constatei que na última edição da EXPOINTER-ESTEIO-RS, a vaca vencedora do concurso leiteiro produziu 93 litros de leite em três ordenhas. Até quando vamos continuar explorando de forma desumana nossos animais?



Otaliz de Vargas Montardo é médico veterinário e instrutor do Senar – RS