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Serviço útil

por Rogério Goulart
Quarta-feira, 2 de setembro de 2009 -10h09
Os números indicam que o preço da arroba vem caindo desde o ano passado. Aos trancos e barrancos, subindo e descendo, animando e esfriando, com chuvas e com a falta delas, a arroba caiu R$18,00 desde junho-08.

Mas os números são frios, insensíveis. Eles não contam toda a história. Eles são como um extrato bancário — os débitos e créditos a se acumularem na medida em que os dias passam, mas eles não refletem o esforço que você fez para formar o seu saldo atual. Não. Quem olhar a sua conta-corrente verá apenas uma parte incompleta de quem você realmente é.

Assim também são os números da pecuária. Eles não revelam a dinâmica, o trabalho de milhares de pessoas em vários segmentos que compõem nosso negócio. Essas pessoas trabalham com apenas um propósito: dar o melhor de si para melhorar o seu próprio padrão de vida fornecendo um serviço útil para a sociedade e também disponibilizando um alimento nobre e nutritivo.

Serviço útil? Alimento nobre? Sim, é só você pensar que uma fazenda que produz mil cabeças ao ano para abate, produz carne suficiente para alimentar 3.500 pessoas durante um ano. Seria a hora de mudar o enfoque do produtor — ao invés de dizer que abate, por exemplo, 5 mil cabeças, ele bem que poderia dizer: “Eu alimento 17.500 pessoas durante um ano.” Pode ter certeza que essas pessoas ficam muito contentes ao visitar o supermercado e encontrar seu corte preferido esperando por elas na gôndola de frios.

Qual é a história da pecuária nos dias de hoje?

Todos os bovinos que nascem, sejam eles fêmeas ou machos acabam indo para o frigorífico. Obviamente alguns animais morrem na fazenda, seja por doenças, raio, picada de cobra, perna quebrada ou são abatidos para consumo próprio, mas a esmagadora maioria é enviada ao abate.

Uma parte desses animais abatidos é proveniente de fazendas que não são sensíveis ao preço. Quero dizer que muitas fazendas simplesmente vendem seus animais, independentemente do nível do preço da arroba no momento. A venda desses animais é feita dessa maneira porque nessas fazendas o principal negócio não é necessariamente ganhar dinheiro na venda para o frigorífico, mas sim aliviar os pastos ou para dar espaço para os outros animais jovens. São fazendas em que a venda para abate representa uma pequena parcela do rebanho médio da propriedade, ou seja, vende até 25% do rebanho ao ano como animal gordo.

Existe outra parcela de produtores que são muito sensíveis à variação do preço da arroba. São os produtores que tem como seu principal negócio a engorda dos animais, sejam machos ou fêmeas. Eles dependem do preço da arroba para determinar seu lucro, pois é somente na venda para o frigorífico que ele consegue girar seu capital. São produtores que giram de 50% até 200% do seu rebanho por ano, ou seja, usam e abusam da famosa taxa de desfrute. Para esses produtores, os três principais “ingredientes” da receita de sucesso é preço de compra do bezerro, custo de produção e preço de venda do boi gordo. É sobre esses produtores que a nossa história irá tratar.

De um modo geral a engorda de animais é uma atividade relativamente estável. O cara não ganha muito dinheiro, mas o que ganha é previsível, pois a relação entre esses três ingredientes acaba favorecendo o negócio ao longo do tempo. É difícil os três ingredientes serem desfavoráveis AO MESMO TEMPO.

Como assim ao mesmo tempo? Tem hora que o boi está subindo, mas está bom para repor. Tem hora que está ruim a reposição e o preço de venda, mas o custo de produção dá uma aliviada. Com o passar dos anos a dinâmica entre os ingredientes se alterna de forma a dar ao produtor certa estabilidade de resultados.

O que está ocorrendo hoje é diferente. Essa história da pecuária está alterada. Os preços do boi e do bezerro estão pressionados. Os custos estão pressionados. De fato, não há registro nesses últimos 14 anos de uma discrepância tão grande entre os três ingredientes nessa atual fase do ciclo pecuário. Alguma coisa está ocorrendo. O que é ainda não sei, e é nisso que venho pensando ultimamente.

Só para dar um exemplo para você entender meu argumento. Vou fazer três contas simples aqui para você notar a relação entre os três ingredientes.

Para facilitar as contas vamos imaginar um cenário onde não existem impostos e nem comissão e frete de transporte do gado. Só existem três ingredientes: preço do boi magro, custo de produção e preço de venda da arroba do boi gordo. Vou usar aqui um boi de 16,5 arrobas.

Só a título de curiosidade. Para quem não sabe, uma arroba, ou o símbolo @, equivale a 15 kg de carne. Um boi vivo, gordo, pesa aproximadamente 470 kg, mas quando é abatido e retirado tudo o que não faz parte da carcaça, ele pesará aproximadamente 16,5 @ x 15 kg = 247,50 kg, o que daria o que a gente chama de “rendimento de carcaça” de 52,66% (247,50 / 470 = 0,5266).

Observe a tabela 1. Olhe como somente alterando os ingredientes a gente chega ao mesmo lucro final.

1) Boi magro a R$750,00, custo a R$18,00 ao mês e arroba a R$66,00.
2) Boi magro a R$850,00, custo a R$18,00 ao mês e arroba a R$72,00.
3) Boi magro a R$850,00, custo a R$12,00 ao mês e arroba a R$68,00.



Olha só que interessante. Nesses três cenários o lucro final é o mesmo. É por isso que a engorda é relativamente segura, pois a dinâmica entre os ingredientes concorrem a favor da manutenção do resultado final. Obviamente estou simplificando muito aqui essa conta, mas espero que com esse exemplo você tenha pegado a idéia da coisa. É muito importante entender essa tabela. Ela é a chave para a compreensão da história atual da pecuária.

A fase atual do ciclo pecuário é de estabilidade, isso já sabemos. A arroba hoje vale próxima de “0%” da inflação, como demonstrado no gráfico 01, o que está dentro do normal para o mercado consumidor. Confesso que não está normal agora na entressafra, obviamente, pois imaginava que o mercado consumidor conseguiria absorver uma arroba valendo até uns +10% da inflação nesse período do ano, mas paciência! Está normal para o cenário mais amplo de precificação da arroba e é o que nos interessa aqui.



Repare que disse acima MERCADO CONSUMIDOR e é isso mesmo. O gráfico mostra como a arroba está se comportando frente ao mercado consumidor. Mas a arroba é mais que isso, não é? Sim, o preço de venda do boi gordo depende também do custo de produção. Nos últimos anos os custos subiram muito e essa é a primeira evidência concreta que existe uma distorção forte ocorrendo na pecuária. Observe o gráfico 02.



Note que os custos atuais estão pressionando para baixo a arroba de uma forma muito mais intensa que no ciclo pecuário anterior. De fato, a arroba nesse ciclo atual nem sequer chegou perto do pico do ciclo anterior. Isso mostra a fraqueza do mercado neste momento. Se por um lado a arroba para o mercado consumidor está relativamente dentro da normalidade, para o produtor a realidade está bem diferente para pior. O que falta? Dos três ingredientes, o preço da arroba está dentro da normalidade para o mercado consumidor, o custo de produção está alto demais, pressionando o resultado da engorda. Mas falta o terceiro ingrediente, não é mesmo? Falta o preço do bezerro.

O preço do bezerro está no gráfico 03.



Se você observar desde 2000 para cá no gráfico, o bezerro teve dois picos. Um em meados de 2003 e outro em meados de 2008. O pico de 2003 foi simbólico porque marcou o início da fase de baixa do ciclo pecuário anterior. O pico de 2008 terá a mesma marca? Ainda não sabemos. A única coisa que sabemos é que os preços estão caindo desde 2008 praticamente sem parar.

Como você pode observar no gráfico 04, a velocidade da queda atual está bem maior do que a queda anterior.



Esses gráficos são importantes para quem é criador, mas não vou me estender muito aqui porque não é nosso foco neste momento. Nosso foco é a engorda e para isso temos obrigatoriamente que comparar o bezerro com o boi gordo usando o famoso gráfico da taxa de reposição. Quantos bezerros se compram com um boi gordo? É o que o gráfico 05 nos diz.



Observe que aqui temos a segunda distorção na pecuária atual — a taxa de reposição está muito baixa, e muito baixa também em relação ao passado.

Porque os custos de produção e a taxa de reposição estão tão ruins assim? Essa pergunta, caro leitor, ainda não tem resposta. Confesso que se você tiver alguma opinião gostaria muito de escutar, porque tenho gastado bastante tempo tentando entender a razão de o mercado estar dessa forma e até agora não consegui chegar a nenhuma conclusão convincente.

A primeira idéia que tive foi a crise mundial de crédito. Pode ser, mas seria o suficiente para distorcer o mercado dessa maneira? A segunda idéia que me ocorreu foi o abate de fêmeas. De repente o abate voltou a aumentar, mas até as últimas estatísticas do IBGE o que nos mostram é exatamente o contrário — o abate ainda está caindo.

A terceira hipótese que pensei é na nova onda de animais de reposição entrando no mercado a partir de 2008. Faz sentido se pensarmos que a retenção de fêmeas está “no ar” desde 2006. Três anos segurando bezerras e novilhas é o suficiente para a mamãe natureza as fazer produzirem um monte de bezerros.

Ainda estou pensando nessas coisas, mas ainda bem que tenho uma certeza. Os fundamentos da pecuária ainda prevalecem, mesmo com seus ingredientes distorcidos. Pode ser que daqui a uns meses alguma coisa mude nessa relação, que algum ingrediente entregue os pontos e a equação final volte a ficar boa. O mercado tem a tendência de voltar ao status quo de longo-prazo, e hoje estamos fora dele.

Enquanto fico com essas coisas dentro da cabeça, paralelamente notei uma coisa interessante no preço da arroba do boi. Tecnicamente estamos muito próximos do pior preço desde o PIOR preço da safra ao redor de R$76,18. Hoje a arroba vale R$76,55. Será que irá furar para baixo isso daí? Não sei. Lá atrás segurou, mas agora a pressão de oferta concentrada de animais de coxo pode frustrar as expectativas otimistas. Observe o gráfico 06 abaixo.



Esse suporte de R$76,18 tem que segurar, senão a arroba pode cair mais. Repito, esse suporte tem que segurar!

Um lado positivo disso tudo é essa divergência positiva demonstrada no gráfico. No passado quando a arroba caiu abaixo de –5% ela diminuía a queda até voltar a subir. Será que veremos o mesmo movimento agora? É algo a observar nas próximas semanas.