Scot Consultoria: O que você considera ser os principais desafios para a pecuária brasileira em resposta à suspensão da importação de carne de fêmeas pela União Europeia?
Laís Abreu: Contextualizando, a eficiência reprodutiva dos rebanhos é um fator determinante para o aumento da produtividade e para o crescimento sustentável da pecuária. A performance reprodutiva da fazenda de cria está diretamente vinculada à produção de bezerros, que são destinados para produção de carne e à reposição do rebanho. No entanto, vacas criadas a pasto em condições tropicais, como é o caso da maior parte do rebanho brasileiro, possuem alta incidência de anestro pós-parto, o que resulta em aumento do intervalo parto-concepção, do intervalo entre partos e, consequentemente, redução da eficiência reprodutiva. A inseminação artificial em tempo fixo (IATF) utiliza protocolos de sincronização da ovulação que mimetizam o estro fisiológico de novilhas e vacas. Dessa forma, é possível realizar a inseminação artificial em momentos pré-determinados, sem a necessidade de observação de estro e em fêmeas em anestro, aumentando significativamente a utilização da inseminação artificial para o melhoramento genético dos rebanhos. No Brasil, os protocolos de sincronização para IATF e para TETF (transferência de embriões em tempo fixo) utilizam o tratamento com doses fisiológicas de estradiol. Os dados das pesquisas realizadas por nosso grupo, demonstram que a remoção do tratamento com estradiol nos protocolos de sincronização da ovulação, promove impacto negativo na fertilidade das novilhas e das vacas inseminadas artificialmente (redução da prenhez à IATF em aproximadamente 30%, menor oferta de bezerros em quantidade e com qualidade, perdas na produtividade e maior dificuldade operacional nos programas de reprodução assistida). Sendo assim, a proibição do uso do estradiol gera uma relevante desvantagem econômica devido ao desestímulo à menor utilização da IATF e da TETF, com perdas significativas no melhoramento genético dos rebanhos e na eficiência geral da pecuária. A suspensão da importação de carne de fêmeas tratadas com estradiol pela União Europeia (UE) pode resultar em ajustes na cadeia de suprimentos, desafios regulatórios e de certificação com impactos sociais e econômicos.
Scot Consultoria: Como a prática de Inseminação Artificial em Tempo Fixo (IATF) está sendo adaptada pelos pecuaristas brasileiros para se alinhar com as novas exigências da União Europeia? Quais alternativas estão sendo consideradas no lugar do uso de estradiol?
Laís Abreu: A IATF é uma técnica amplamente utilizada na pecuária brasileira para melhorar a eficiência reprodutiva e genética do rebanho. Na atualidade, mais de 25 milhões de procedimentos de sincronização para IATF são realizados por ano no Brasil. Os dados da nossa linha de pesquisa demonstram que novilhas e vacas da raça Nelore, tratadas com estradiol no início do protocolo e na retirada do dispositivo de progesterona, apresentaram maior espessura do endométrio uterino (importante para o estabelecimento da gestação), maior taxa de expressão de estro e maior taxa de prenhez à IATF. Esses efeitos positivos são evidenciados principalmente no início da estação de monta, quando as vacas estão recém paridas e com elevada incidência de anestro. Além disso, estudos que realizamos anteriormente, demonstram claramente que o uso de IATF no começo da estação reprodutiva aumenta o desempenho reprodutivo de vacas de corte quando comparada ao serviço natural. Altas taxas de prenhez no início da estação de reprodução são cruciais para o aumento da produtividade e da lucratividade da pecuária de corte. Assim, para atender aos mercados de exportação que não possuem restrições quanto a utilização do estradiol, os protocolos tradicionais devem ser mantidos devido sua elevada eficiência. Todavia, aos mercados que apresentam limitações em relação a utilização de estradiol, protocolos adaptados a essa nova realidade podem ser desenvolvidos. Entretanto, a remoção do estradiol no protocolo de sincronização acarreta aumento de custo, dificuldades operacionais e redução na eficiência. Uma alternativa à não utilização do estradiol seria o tratamento com o hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH), aceito como tratamento reprodutivo pela UE. Apesar das dificuldades, novos estudos estão sendo realizados pelo nosso grupo na tentativa de desenvolver protocolos que se ajustem às novas regulamentações e apresentem eficiência reprodutiva similar aos protocolos com estradiol, além de aplicabilidade econômica e operacional.
Scot Consultoria: Qual é a evidência científica atual sobre a segurança e a eficácia do estradiol na IATF, e como isso contrasta com as preocupações levantadas pela União Europeia?
Laís Abreu: Os estudos científicos demonstram claramente que o tratamento com estradiol (com moléculas bioidênticas e que possuem exatamente a mesma estrutura química e molecular encontrada nos hormônios produzidos pelas fêmeas bovinas) em doses fisiológicas (quantidades semelhantes às produzidas pela fêmea durante o estro) nos protocolos de sincronização para aplicação de biotecnologias da reprodução, não compromete a saúde animal e a saúde humana quanto ao consumo dos produtos (carne e leite). Os tratamentos farmacológicos com estradiol, procuram mimetizar o ambiente endócrino de uma fêmea em estro. As regulamentações existentes para o uso de estradiol são rigorosas e visam garantir que esses resíduos estejam abaixo dos limites de segurança estabelecidos, o que ocorre quando o tratamento de estradiol é utilizado para fins de reprodução. O contraste entre a evidência científica que apoia o uso de estradiol nos protocolos de sincronização e as preocupações da eu, reflete uma diferença fundamental na abordagem regulatória, enquanto o uso do estradiol é recomendado pela ciência em termos de eficácia e segurança quando usado corretamente em doses fisiológicas. Essas informações suportam que as decisões da UE possuem contexto protecionista.
Scot Consultoria: Qual é a sua visão sobre o impacto potencial desta decisão da União Europeia na competitividade do setor de carne bovina brasileiro no mercado global?
Laís Abreu: O Brasil atingiu volume recorde de carne bovina exportada no ano de 2023, alcançando a marca de 2,26 milhões de toneladas que foram vendidas para mais de 150 países. Atualmente, o mercado europeu representa apenas 6,9% das receitas totais de exportação de carne bovina brasileira. As restrições que estão programadas são apenas para fêmeas que receberam tratamentos com estradiol. Machos e fêmeas que não foram sincronizadas estão fora desse contexto. Os protocolos de sincronização alternativos ao estradiol, por apresentarem eficácia inferior nas condições brasileiras de manejo, poderão afetar a eficiência reprodutiva das matrizes inseminadas e das receptoras de embrião. Consequentemente, ocorre redução na evolução genética e na eficiência reprodutiva do rebanho, limitando a produção e a oferta de carne bovina. Para manter o canal de venda de fêmeas para o mercado europeu, os exportadores brasileiros precisarão adaptar suas práticas de manejo reprodutivo e utilizar protocolos de sincronização sem o tratamento com estradiol. Isso pode envolver custos adicionais e ajustes operacionais que podem afetar a eficiência e a competitividade. Alternativamente, os exportadores brasileiros podem concentrar a venda de fêmeas que foram sincronizadas para mercados alternativos, como Ásia e Oriente Médio.
Scot Consultoria: O que você acha que poderia ser feito para melhorar o diálogo entre os exportadores brasileiros e as autoridades regulatórias da União Europeia para evitar situações semelhantes no futuro?
Laís Abreu: Estabelecer fóruns de discussões para embasar as decisões regulatórias pautadas em informações científicas, e buscar apoio do governo brasileiro e da iniciativa privada para auxiliar na negociação com as autoridades da UE. Com isso, é possível participar ativamente na formulação de políticas para o setor e garantir aos exportadores uma legislação estável. Essas ações podem ajudar a prevenir problemas futuros, facilitar a conformidade com as regulamentações e fortalecer a competitividade do setor de carne bovina brasileiro no mercado global.