• Terça-feira, 23 de abril de 2024
  • Receba nossos relatórios diários e gratuitos
Scot Consultoria

A Rodada de Doha da OMC: Sinfonia Eroica ou Inacabada?


Quinta-feira, 3 de novembro de 2005 - 17h41

A Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi lançada na esteira da comoção causada pela tragédia de 11 de setembro de 2001. O seu mandato era ambicioso e prometia reduzir o desequilíbrio histórico entre a forte liberalização dos mercados industriais, desde os primórdios do GATT em 1947, e o persistente protecionismo agrícola, um setor literalmente posto de lado no sistema mundial de comércio. Em 2002, os EUA dobraram seus subsídios agrícolas com a aprovação da Lei Agrícola mais protecionista da sua História. Em 2003, a União Européia (UE) cortou alguns subsídios com mais uma reforma da sua Política Agrícola Comum, mas deixou setores importantes de fora (açúcar, por exemplo) e não melhorou as condições de acesso multilateral a seu vasto mercado consumidor. Às vésperas da reunião ministerial de Cancún, em 2003, EUA e UE divulgaram uma proposta que apenas somava suas respectivas posições defensivas em subsídios e acesso a mercados. Juntamente com Índia, China e outros 18 países em desenvolvimento, o Brasil constituiu o G-20, tentando resgatar o espírito de Doha na redução de subsídios e liberalização dos mercados dos países desenvolvidos. Na ocasião, escrevi um artigo para a revista Época intitulado Um Réquiem para Cancún. Infelizmente, a previsão se confirmou e a reunião ministerial terminou num impasse melancólico, com forte discordância em relação aos métodos para cortar subsídios e tarifas, agrícolas e industriais. Nos últimos dois anos, o G-20 mudou a geometria das negociações, atuando de forma coesa e pragmática, com boa representatividade política e capacitação técnica, demonstrada nas dezenas de propostas apresentadas em cada item da negociação agrícola. O Brasil soube liderar com maestria o grupo, que hoje simboliza o principal resultado da política comercial do atual governo. A chegada da reunião ministerial de Hong Kong, em dezembro próximo, finalmente deu novo impulso à rodada. EUA e UE acabam de apresentar propostas que praticamente fecham a fase dos métodos e modalidades nos principais itens da negociação agrícola. Neste momento já se sabe como serão feitos os cortes de subsídios e tarifas, mas ainda falta definir o mais importante: sua magnitude. Na minha opinião, tais propostas permitem que a rodada possa ser concluída em breve. O maior problema é definir se os cortes serão realmente profundos, qual a dimensão dos novos mecanismos de exceção que se pretendem criar para determinados países e/ou produtos e, mais importante, se a rodada afetará os níveis correntes de proteção, ou seja, se será capaz de ir além do status quo das políticas agrícolas e comerciais dos membros. O ministro Celso Amorim afirmou que “estamos nos 38 minutos do segundo tempo, com placar ainda indefinido; só que, ao contrário do futebol, na Rodada de Doha todos podem ganhar.” É verdade! E para isso é preciso que os times parem de jogar na retranca. - Em acesso a mercados, o maior esforço precisa vir do Continente Europeu. Sob pressão, na semana passada a UE apresentou um documento totalmente desequilibrado, que apenas mostra seu negociador com as mãos amarradas pelos países membros. Além disso, suas ex-colônias da África, do Caribe e do Pacífico não querem perder as condições preferenciais de acesso ao mercado europeu e lutam, ao lado da UE, contra uma abertura ampla e sem discriminações. - O papel central desempenhado pelo G-20 obriga o grupo a ser menos defensivo em acesso aos mercados dos países em desenvolvimento. Como esses 20 países respondem por 70% da população rural do mundo, é de esperar que alguns de seus membros temam reduzir suas próprias tarifas de importação e ainda tentem abrir múltiplos mecanismos de exceção, que se acumularão sobre um pequeno conjunto de produtos. A leitura isenta e racional dos números indica, porém, que há muito espaço para o G-20 aceitar cortes mais ambiciosos e regras mais simples e limitadas para o tratamento de produtos sensíveis. - Em subsídios domésticos, é necessário apertar os EUA na aceitação de cortes mais profundos e disciplinas adicionais que evitem novos escapes, além de forçar a imediata implementação das decisões do contencioso do algodão e avançar na proposta feita por Pedro de Camargo Neto, cujas bases já foram apresentadas em entrevista ao Jornal “O Estado de São Paulo”. - Na área de bens manufaturados, também há espaço para avanços por parte dos países em desenvolvimento, desde que o dossiê agrícola caminhe a contento. É injusta a crítica dos países ricos de que estaríamos travando a rodada. Basta comparar os temas que estão sendo discutidos em agricultura e em bens manufaturados para concluir que sem maiores avanços na primeira área não há por que avançar na segunda. Enfim, nesta fase pré-Hong Kong, o que dará ambição à Rodada de Doha é o nível de afinação das orquestras nacionais e a sua harmonia dentro das principais coalizões. O Congresso americano deixará o seu negociador (USTR) avançar na redução dos subsídios? A França deixará a Comissão Européia avançar em acesso a mercados? A Índia e a China não vão colocar o G-20 excessivamente na defensiva? Se os maestros e músicos não desafinarem demais dentro de casa, acredito que, desta vez, o encontro das 148 orquestras não vai terminar em outro Réquiem, em Hong Kong. A melhor opção seria que este megaencontro de orquestras terminasse tocando algo parecido com a revolucionária Sinfonia Eroica, de Beethoven, que levou o público da época a uma viagem para muito além das águas seguras de suas predecessoras. A pior opção seria uma conclusão similar à da Sinfonia Inacabada, de Schubert, que, ao contrário de Beethoven, com pouco apoio dos grandes patronos da época, não conseguiu lutar por sua música. A primeira audição da obra inacabada de Schubert só foi ouvida 37 anos após a morte do compositor! Alea jacta est.
<< Notícia Anterior Próxima Notícia >>
Buscar

Newsletter diária

Receba nossos relatórios diários e gratuitos


Loja